Português Angolano: o que é? (por Caetano de Sousa João Cambambe)
Entende-se por Português Angolano o conjunto de todas as variantes do português falado nas dezoito províncias de Angola. Ndombele (2014, pág. 149), define-o como sendo ‘’(...) a variante da língua portuguesa falada e escrita em Angola‘’.
Os contactos permanentes dessas variantes com as línguas africanas de Angola conferem-lhe um novo rosto, fazendo com que haja aspectos particulares do português oral de Angola. "O português falado em Angola encontra-se em permanente transformação. A própria dinâmica da língua, as interferências linguísticas, a criação de novas palavras e expressões forjadas pelo génio inventivo popular, certos desvios à norma portuguesa imprimem-lhe uma nova força, vinculando-a e adaptando-a cada vez mais à realidade do país". (Irene, 2010, apud Ndombele, 2014, pág. 149)
Este entrosamento faz com que haja distinção entre o que por aqui é falado em detrimento do que se fora se fala. Embora não institucionalizado, embora não tenha um cunho político e normativo (pelo menos externo, pois já possui uma gramática interna), ao contrário do que muito enganosa e equivocadamente se afirma, tal variante existe; só diz o contrário quem carece de uma boa visão e de uma má formação linguística. Variante essa que é falada por uma boa parte de Angolanos, sobretudo aqueles com status social, escolar e económico distinto da ‘’elite angolana’’.
Dentro dessa variante, o calão, como uma variação linguística, é muito predominante. Em outras palavras, o calão tem fortemente contribuido, mas à moda dele, para o fortalecimento e engrandecimento da variante linguística em abordagem.
Há, em Angola, à semelhança das línguas bantu locais, determinadas variantes do português de Angola. Assim, assiste-se, o que é muito normal, (a) algumas discrepâncias no que diz respeito à prosódia, à semântica e ao campo lexical dentro das nossas variantes (quanto ao português). Por exemplo, em Malanje (Malanji) e em Luanda (Luwanda), utiliza-se dois léxicos diferentes (naile e mica) com o propósito de se referir, semanticamente, à mesma ideia: um fio meramente de plástico usado pelas nossas crianças, a fim de fazer com que o papagaio, por intermédio daquele fio, vá para longe. Embora utilizassem léxicos diferentes, notou-se que o papel semântico não difere. Outro exemplo, nas variedades do sul do país, aí mesmo nas zonas dos ovimbundu, há uma tendência enorme de alguns falantes, na oralidade, devido a certos factores e talvez uma grande influência psicológica ou regional, recorrem para troca de algumas "letras", por exemplo em "enTender", por outras "enDender", embora escrevessem correctamente "entender". Em muitos casos, do ponto de vista psicológico, a dislexia e a dislalia surgem frequentemente.
Por não ser ainda uma variante convencionalizada, os diferentes modos de falar, que para Bagno (2007) têm, do ponto de vista científico, uma boa explicação, alguns militares de bantas brancas disfarçados de professores e que têm a gramática como um quartel general (é assim, pelo menos, que o meu amigo, Osvaldo, diz), por se denotar aspectos sintácticos, morfológicos, fonéticos, lexicais e semânticos discrepantes da língua do colonizador, ou seja, do padrão externo vigente em Angola, vêem como erro. Há até alguém que tristemente, talvez por desconhecer a Linguística, chame de um ‘’lixo’’ e tantos outros nomes depreciativos, arrogantes, feios e preconceituosos por aí. Errado, na verdade, é a concepção que eles têm a respeito. Falando ainda daqueles tradicionalistas, nota-se uma preguicite linguística no que diz respeito ao estudo do português falado em Angola. Cada gramática dos nossos tradicionalistas, a nosso ver, é só mais um "copy-past" daquelas do ocidente. É só mais uma cópia autêntica das demais gramáticas existentes (é a coisa mais fácil de se fazer!). Uns até, sem vergonha, passam a vida a caçar erros de português em cartazes, em debates na tv ou na rádio, alguns desvios ortográficos em jornais, alguns falares que se demonstram estranhos, que para ciência, de acordo ainda com Bagno (2007, pp. 112-113 ), não existe, com o propósito de depreciar e estigmatizar todo aquele que comete um crime ao nível da gramática (é isso que eles dizem, enganadamente, é claro!). Quanto a isso, falando mesmo em cartazes, por exemplo aí na Estalagem, arredores de Viana, há um cartaz que faz alusão a uma Clínica de Oftamologia, no qual se nota em ponto grande o mais velho Salu Gonçalves, radialista, como rosto utilizado para que a Clínica, por intermédio daquela publicidade, ganhe mais ‘’pacientes’’.
No cartaz, mais abaixo, encontra-se o nome daquela figura pública grafada da seguinte forma: ‘’Salú Gonçalves’’. Do ponto de vista prosódico, não se nota erro algum em ‘’Salú’’, embora se grafasse "Salú" com um acento agudo na segunda sílaba. Apesar da existência daquele sinal, pronuncia-se mesmo "Salu" e nunca "Saló", por exemplo. Do ponto de vista ortográfico, sim, nota-se um erro de acentuação, que não é taxativamente de português, porque, pelo ‘’U’’ de SalU ser já tónico, não há razão por que se deve acentuar graficamente.
Lá mais para frente, é possível, quase semelhante ao caso que anteriormente reportamos, encontrar estampado, aí na SGO - Viana, o seguinte:
‘’Sejam-bem vindo‘’.
Do ponto de vista da fala, a comunicação flui, sem chegar mesmo a apresentar problemas semânticos ou de qualquer coisa parecida. Não é meramente um erro (quanto àquela vertente, é claro!). Todavia, no plano gráfico da língua, há uma incorrecção no que diz respeito à colocação do hífen entre a flexão verbal (sejam) e o elemento a seguir (bem). E não há, do ponto de vista comunicativo, alguém que possa entender o oposto daquela nota.
Voltando para o ponto acima, precisamos, e é urgente, de uma variante local padronizada, de uma variante nossa, que não discrimina o que por aqui se fala. Embora muitos apelos se tenha lançado e que o nosso Estado, todo doentio, ainda esteja a marcar passos de tartaruga (só para não dizer que está parado) a fim de perceber, digamos, que há uma necessidade enorme de olharmos para o nosso país linguisticamente. Há, ainda, uma outra necessidade: afugentarmos, de uma vez por todas (permitam-me), este fantasma colonial linguístico. Talvez não haja isso, até agora, porque o nosso Nguerno (é assim que muitos ovimbundu, um grupo etnolinguístico de Angola, pronunciam o nome Governo) ainda acha tal língua, essa que o poder político obriga-nos a aprender na escola, uma língua ‘’civilizada’’, ‘’emancipadora’’, etc., tal como se lê abaixo:
"A língua europeia escolhida como oficial desempenharia um importante papel na construção dessa identidade, afinal as nações africanas eram resultados do choque cultural europeu e africano. No entanto, não podemos nos esquecer de que essa língua dita europeia, não era mais tão europeia, já que em solo africano sofreu influências e transformações, formando muitas vezes uma nova língua, como o crioulo de Maurício, Seicheles a Cabo Verde ou uma variação da língua europeia. (Silva, 2009, apud Ndombele, 2014, pág. 140)
‘’Essa escolha foi baseada no que Mariani chama de “ideologia do déficit linguístico nas línguas africanas” (MARIANI, 2007:241), isto é, na ideia de que a língua europeia é “emancipada, emancipadora e desenvolvida, enquanto as línguas africanas são tidas como primitivas, tradicionais e subdesenvolvidas” . Ou seja, para as elites, as línguas europeias estão mais preparadas e têm inclusive um potencial maior para representar a realidade do mundo atual, com seus avanços tecnológicos e científicos. Tal medida baseia-se na concepção centrista ocidental de mundo e a língua europeia aqui é vista como um instrumento civilizatório e como critério para o desenvolvimento da África’’. (idem)
Para isso, torna-se assaz relevante, não ainda de um ponto de vista normativo, descrever linguisticamente o português que por aqui se fala e, só assim, após de se levantar tantas hipóteses, olharmos para vertente normativa.
ALGUMAS CARACTERÍSTICAS (e divergências entre o Português Europeu e de Angola) DO PORTUGUÊS FALADO EM ANGOLA
1- No português falado em Angola, pelo menos nas variedades de Luanda e Malanje, a supressão da desinência verbal ou nominal de certas palavras é completamente, à semelhança do que se vê no Português Brasileiro e Moçambicano, notória. Os tradicionalistas dizem que os angolanos gostam muito de comer o "S" e o "R" em situação final.
Exs.:
a) Nós estamo(×) bem;
b) Vou *falá(×) depois.
c) Vou *fazê(×) mesmo.
2- A concordância frásica, por vezes, não se denota, por exemplo, em todos os contituintes frásicos (SN, SV, etc.). O determinante (ou qualquer pronome) que inicia a frase, às vezes, é que indica que a frase está no plural, embora os demais constituintes estejam, nalguns casos, no singular. Noutros casos, quanto ao género, não se denota uma ligação entre o feminino × feminino (elA é muito boM naquilo que faz; A minhA blusA é pretO), masculino × masculino, etc.
3- Assiste-se, também, a uma troca de regência verbal quanto à norma (estrangeira) vigente em Angola. Enquanto o padrão europeu diz que os verbos A, B, C e D regem, por exemplo, simplesmente as preposições K, T, G e P, respectivamente; no português angolano acabam por ganhar uma nova ordem, fazendo com que se coloque para trás a ordem estabelecida pelo PE. Para isso, prestemos atenção para o caso do verbo ‘’IR’’ (e outros):
- No PE, no sentido de se deslocar de um lugar para o outro, vai-se A.
a) Eu vou À (a[prep.] + a [det. art. fem.]=à) escola;
- No sentido de se deslocar de um lugar para o outro a fim de uma temporada enorme, o PE exige que se deve ir PARA.
b) Vou PARA Kashitu (Caxito).
- No sentido de "em direcção a um ponto", o PE exige que se vai EM
c) Vá EM frente.
Ora, no português falado em Angola, decerto que acontece o contrário, pois sempre que há uma ideia de movimento de um ponto para o outro, não se faz questão, embora não seja taxativamente, de se colocar em causa o que vimos nos pontos A, B e C, pois, por aqui, vai-se mesmo EM, PARA e A, sem levar em conta o que o PE exige quanto à estadia permanente, temporária, enfim. Em Angola, todo e qualquer movimento de um local (ou direcção) para outro indica ir EM, ir A e ir PARA. Embora se notasse tal discrepância entre o PE e o PA, a ideia de problemas comunicativos, na variante angolana, não é notório.
4 - No PE, o verbo assistir, no sentido de ver, presenciar e testemunhar, pede a preposição simples A. Assim, para o PE, assiste-se Às novelas, Aos filmes, etc.
No sentido de ajudar e prestar assistência é um verbo transitivo directo. Logo, os médicos assistem o doente.
Face ao que acima se estabeleceu, apraz-nos dizer que, no sentido de ver e prestar ajuda, contrariando o PE, o verbo assistir é simplesmente transitivo directo, embora se note, com pouca frequência, outro lado da moeda. Em outras palavras, no PA, tal verbo dispensa aquilo que, normativamente, o PE leva em conta.
Ex.: Assisti ontem, no Zap Viva, o jogo do Petro × 1.° D' Agosto.
5- O pronome VOCÊ, embora alguns tradicionalistas dizem que pertence à terceira pessoa e outros, contrariando-os (é o caso de D' Silvas Filho, 2011; e Magnus Bergstrom, 1997; Bagno, 2006), dizem que pertence à segunda pessoa. Assim, no português falado em Angola, é utilizado, nalguns casos, como um pronome-sujeito da segunda pessoa e com a flexão verbal também na segunda pessoa.
Ex.: Você disseste o quê?
6- O PE diz que o verbo ‘’nascer’’ é intransitivo. Por outras palavras, não exige um objecto directo ou indirecto para lhe completar a acção. Mas, na variedade angolana, é às vezes utilizado como um verbo que exige um agente e um paciente. Doutra forma, é usado como um verbo transitivo.
Ex.: A Antónia nasceu um bebé lindo.
Tal como acontece em Latim e em Português (europeu), há verbos que no PE são intransitivos, mas que na variedade angolana não, vice-versa.
7- Enquanto no PE o verbo ‘’cortejar’’ equivale a uma outra coisa, na variante angolana equivale também a uma outra coisa.
Ex.: Deves cortejar bem o tomate, filha.
Há muito que se falar a respeito. Entretanto, julgamos apresentar simplesmente o que se viu.
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Referências Bibliográficas:
BAGNO, Marcos. (2006) A língua de Eulália : novela sociolinguística. 15a. ed. São Paulo: Contexto.
BAGNO, Marcos. (2007) Preconceito Linguístico — o que é, como se faz. 49a. ed. São Paulo: Loyola.
BERGSTROM, Magnus. (1997) Prontuário Ortográfico E Guia da Língua Portuguesa. Lisboa: Notícias.
FILHO, D' Silvas. (2011) Prontuário de Erros Corrigidos de Português. 4a. ed. Luanda: Textos Editores.
NDOMBELE, Eduardo D. T. (2014). Políticas Linguísticas em Angola: uma reflexão sobre a identidade sociolinguística nacional. (Tese de Doutoramento em Linguística). Universidade San Lorenzo, San Lorenzo.