O USO CONSAGRADO DO 'MIM (PELOS FALANTES BRASILEIROS E ANGOLANOS)' COMO PRONOME-SUJEITO

Engana-se, a nosso ver, todo aquele que pensa que o MIM — conhecido como um pronome oblíquo tónico —, não faz nada e que é um pronome preguiçoso. Na verdade, os falantes, na sua maioria, têm mostrado o oposto daquilo que a gramática diz, indicando que os "preguiçosos" e "os que não fazem nada", na realidade, são os puristas e que o MIM, indubitavelmente, faz alguma coisa e que não é — tal como os puristas acusam-no — um pronome preguiçoso. (risos)

Afinal, não é só em Angola que a construção "para mim fazer" é predominantemente usual na fala. No Brasil, de acordo com Marcos Bagno (1997:210), verificou-se, graficamente, pela primeira vez, em 1872, o uso de "para mim (com um verbo no infinitivo, assumindo, deste jeito, a função sintáctica de sujeito do verbo no infinitivo)" no livro Inocência, escrito por Visconde de Taunay. Esse tipo de construção, para aquele autor, Marcos Bagno, é mesmo antiquíssima por aquelas bandas (região).

Usa-se, embora seja também comummente presente na linguagem escrita, em Angola, construções sentenciais com o pronome oblíquo tónico "MIM" assumindo a função sintáctica de um pronome recto. Repare, caro leitor, que não é simplesmente os lavadores de carros — só para não mencionar os 'camponeses', que se servem do MIM como sujeito de um verbo no infinitivo, pois até os mais escolarizados, chamamos atenção aqui para os Mestres e Doutores, em Angola, por certas razões, usam — e bem — tal construção.

Ex.: Mãe, este arroz é para MIM comer?

Construções semelhantes àquela, só demonstra o uso consagrado de MIM, pelos falantes, como um pronome sujeito. Isso, de facto, a gramática tradicional desconhece e por uma questão de inveja e velhice — podemos assim dizer — considera erro o seu uso.

O MIM, como pronome-sujeito, é comummente, de acordo com aquilo que Marcos Bagno nos apresenta em Língua de Eulália, Novela Sociolinguística, uma construção de referência no Brasil, algo que se assemelha ao nosso país, Angola. É bem verdade aquilo que dizem: Brasil e Angola são dois países irmãos.

De acordo com Cunha & Cintra (1985:216), o entrosamento de duas sentenças indubitavelmente gramaticais (isto não é trabalho para eu fazer versus isto é trabalho para mim), nasceu, efectivamente, uma outra construção frásica (isto não é trabalho para mim fazer). De acordo com aqueles autores, essa sentença é geralmente conhecida no Brasil; todavia, por outro lado, totalmente desconhecida em Portugal. Os puristas vêm isso como um atropelo à norma padrão da língua — aquela que está, há muito, desactualizada e que precisa, a nosso ver, de uma roupa nova.

Esse caso de querer empregar MIM antes de uma preposição, no caso de PARA, foi propriamente causado pela própria gramática — até porque ela recomenda também o emprego de PARA antes de MIM. Só que, nalguns contextos, deixa o falante — coitado —, totalmente confuso e sem saber o que usar, pois a tradição gramatical recomenda que, para sujeito, só se deve empregar os pronomes do caso recto.

Assim, no caso abaixo, ele, o falante, fica totalmente embaraçado:

Ex.: Mãe, este arroz é para [×××] comer?

Atinente àquele exemplo, Marcos Bagno (1997:213) explica:

'Na produção desse enunciado, quem aparece primeiro, na fala, é a preposição para. Ora, existe uma regra na língua que diz: “depois de preposição, pronome oblíquo”. Também existe uma outra regra que diz: “na função de sujeito de um verbo, o pronome deve figurar no caso reto”. São duas regras para serem obedecidas. A qual delas o falante vai obedecer? A que veio primeiro, à que foi acionada em primeiro lugar. Uma vez ocupada a vaga conforme a primeira regra, a segunda regra perde a chance de se impor. Estabelece-se uma hierarquia por ordem de chegada. Então o que temos é uma vaga para dois candidatos, ambos exercendo uma pressão para preencher a lacuna: Mãe, este peixe é para [×××] comer? — A preposição para, por ter chegado primeiro, pôde empurrar para dentro do espaço vago o pronome mim, que ela rege. O infinitivo, coitadinho, ficou a ver navios'.

Resultado: 'Mãe, este arroz é para MIM comer?'.

É assim que inúmeros falantes, por esta Angola, falam. E isso, de facto, é motivo mais que suficiente — até porque são eles, os falantes, que fazem a língua e que sem eles, com certeza, uma língua morre —, de não se considerar formas como aquela em discussão como se fossem verdadeiros atropelos à língua e quando se nota também, em abundância, no plano gráfico da língua. É questão de, pelo menos, a gramática revisar o que anda aí a prescrever, pois muito daquilo que prescreve, actualmente, na fala, é arcaica. A língua, cada dia que passa, evolui. Assim, está simplesmente à espera que a gramática — a conservadora, evolua também a fim de andar(em) juntas. Enquanto a gramática estiver estática e não acompanhar o dinamismo e a evolução da língua, estará sempre no passado, pois enquanto a língua voa, ela, a gramática, estagna-se, à semelhança do famoso ex-rio Coelho, em Luanda, Angola. Por isso, a distância entre o uso e a norma padrão é, por certo, totalmente extensa.

Deve-se procurar conversar com os alunos, na visão de Marcos Bagno (1997:218-219), a fim de os esclarecer acerca da complexidade que habita no fenómeno linguístico, para que o professor não tenha um ataque "histérico" sempre que algum deles usar uma frase com o MIM assumindo, plenamente, a função sintáctica de "pronome-sujeito". Isso, para Marcos Bagno, "não significa dizer que o professor deve ensinar as pessoas a usar esse tipo de construção, até porque não é preciso: elas já falam assim... Trata-se de explicar o fenómeno, mostrar que ele tem lógica, que também existem regras gramaticais agindo sempre no mesmo ponto: ali, mas que são simplesmente regras de uma outra gramática e não da gramática normativa tradicional. Ao mesmo tempo, destacar o valor social que é atribuído aos usos linguísticos: para mim fazer sofre preconceito, é considerado erro, é estigmatizado... A construção para eu fazer goza de prestígio, abre portas... Por isso deve ser ensinada aos alunos. Ensinada mesmo, como algo estranho, que não pertence à língua materna da maioria deles. Essa mudança de atitude é muito importante... Não podemos mais, como ainda é feito, querer simplesmente eliminar da realidade linguística o para mim fazer, um esforço totalmente inútil porque cada vez mais gente usa e usará essa construção. Podemos, sim, mostrar que há duas formas em uso, em concorrência, e que cada uma delas tem um valor diferente. Não um valor linguístico, porque são duas construções gramaticais perfeitamente lógicas e coerentes. Mas um valor social determinado pelo tipo de sociedade em que vivemos. Embora a forma para mim fazer seja usada pela ampla maioria da nossa população, essa ampla maioria não tem poder de influência nas decisões políticas, económicas, educacionais, culturais. Por isso o considerado bom, bonito, certo é o que pertence a uma minoria reduzida de cidadãos. Se assim é, vamos apresentar essa forma linguística elitizada, minoritária, a todos os nossos alunos, para que ela não seja usada contra eles no processo perverso de exclusão social baseada no preconceito linguístico. Em suma, sou a favor do ensino da norma-padrão, mas de um ensino crítico da norma-padrão, de um ensino que mostre que essa norma-padrão não tem, linguisticamente, nada de mais bonito, de mais lógico, de mais coerente que as variedades usadas pelos falantes menos cultos ou analfabetos. E, ao mesmo tempo, proponho a valorização dos usos linguísticos não-padrão, sobretudo porque a língua que uma pessoa fala, a língua que ela aprendeu com sua família e com sua comunidade, a língua que ela usa para falar consigo mesma, para pensar, para expressar seus sentimentos, suas crenças e emoções, faz parte da identidade dessa pessoa, é como se a língua fosse a pessoa mesma..."

CaetanoCambambe
Enviado por CaetanoCambambe em 01/09/2016
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