A desuniformidade da língua portuguesa e a descontextualização sociolinguística da Norma Padrão Europeia em Angola
A língua portuguesa, em Angola, não é uniforme. É possível, se fazermos um estudo rigoroso, detectarmos diversas variedades do português falado em Angola. O português, por aqui, é falado em 18 províncias. É possível, por certo, que se encontre, também, dezoito variantes do português falado em Angola. Assim, se formos mais abaixo, surpreender-nos-emos com a riqueza discrepancial lexical, prosódica e semântica existente nestas 18 parcelas do território nacional. Algumas variedades, nalguns casos, convergem; noutros, não, não convergem. É o caso da variedade malanjina e luandense do português. Acontece, por exemplo, uma divergência lexical entre "mufongo" e "loengo", mas uma convergência semântica unânime entre ambas variedades: uma fruta tipicamente angolana; ora doce, ora azeda; com uma cor semelhante à (da) uva.
Quanto à prosódia, apraz-nos dizer que há, também, alguns aspectos próprios, ou seja, modos de falar/pronunciar que caracterizam cada variante do português não-padrão local. Por intermédio desses "falares", é possível que, de facto, encontremos o seu território no qual pertence, isto é, dá-se conta, por exemplo, que este ou aquele falar é do Sul, do Norte, do Oeste ou Este
Os do Sul de Angola, mormente os falantes do Huambo, Benguela, Bié, etc., têm, indubitavelmente, uma prosódia assaz semelhante. Por intermédio de algumas razões, e talvez também uma grande influência das línguas bantu, o falante sulista tende a ter uma prosódia extraordinária que o faz distinguir-se dos demais falantes do Norte, Oeste e Este.
Cometeu-se, deveras, um erro imperdoável pelo facto de se ter adoptado e escolhido a variante do outro lado do continente, variedade europeia do português, como norma padrão a ser seguida por todos os sectores e cidadãos de Angola, sem levar em conta certas considerações. Nas línguas bantu, mormente o kimbundu, essa externalidade linguística não acontece. O kimbundu, em Angola, é falado nas províncias de Malanje, Luanda, Kwanza Norte, Bengo, nalgumas partes do Uije e do Kwanza Sul. Repare, caro leitor, que a variante padronizada foi eleita, ou seja, escolheu-se uma dessas variantes a fim de ser padronizada e seguida, em termos formais, pelos demais falantes das províncias em apreço. Mesmo que o kimbundu fosse uma língua bantu internacional, de facto que jamais se teria ido à busca de uma variante moçambicana, por exemplo, a fim de ser tida e vista como um ideial linguístico e que deveria ser seguido por todos angolanos, de Cabinda ao Cunene, pois cada cultura é uma cultura; pois cada povo é um povo, com os seus custumes e hábitos distintos. Como variante do kimbundu padronizada, temos, no entanto, a variante "mbaka", do Kwanza Norte. Embora ela seja a variante institucionalizada, as restantes variantes não-padrão decerto que não são desprestegiadas, estigmatizadas e vistas como um erro, tal como o português padrão, que é também uma variante, considera as outras variantes. Nas línguas bantu, mormente aquela que fizemos alusão, respeita-se todos os falares, de Malanje a Luanda, do Bengo ao Kwanza Norte, enfim.
Ficamos assaz triste por não acontecer com a língua portuguesa em Angola. Há tantas variedades do português de Angola; então, por que não se escolheu uma variedade a fim de ser normatizada e oficializada, à semelhança do Brasil, com os 'falares' da nossa terra para que, finalmente, todos falassem a mesma "língua"?
Somos, de facto, linguisticamente falando, um país que pode – e deve – manter-se autónomo quanto à língua. O que falta, por aqui, é mesmo um incentivo do Estado angolano, bem como coragem, força, meios, vontade, etc., por parte de alguns pesquisadores, estudantes e amantes do português, para que nós, estudantes e professores, possamos reflectir e desreflectir profundamente a respeito da nossa língua, que não é de Portugal, a fim de prescrevermos, mas baseando-se no uso da língua falada pelos falantes, normas linguísticas que permitiriam, independentemente da cultura, questões geográficas e sociais, todos a usarem-na.
Essa norma padrão vigente em Angola, claro que está desadequada e descontextualizada, visto que, em momento algum, coaduna e se adequa à realidade e à necessidade dos falantes desta linda Angola. É uma norma que se baseia no "bom" falar de grandes escritores e políticos de Portugal, mormente os de Coimbra, de Lisboa, etc. Assim, mesmo estando em continentes e países diferentes, com realidades nada a ver, para se estar dentro da "elite social angolana (escolar, política, empresarial, etc.)", somos obrigados, devido ao nosso Governo - angolano - desatento, despreocupado e preguiçoso, a usar um ideial que nada tem a ver com o nosso país e connosco mesmo, os seus habitantes.
Essa norma, por aqui, é mais usual no plano gráfico, embora não falte termos propriamente não-padrão. Ao nível do plano fónico, nota-se, sobretudo, em contextos formais, mormente em conferências, debates, enfim. É um ideial linguístico que na fala, deveras, raríssimas vezes faz-se recurso.
Cada língua, sim, tem uma norma. Padronizada ou não, caro leitor, é uma norma, é um ideial linguístico; ideial esse que respeita a sua gramática normativa e que os seus utentes, isto é, os seus falantes seguem-na e respeitam-na. Assim, há que se lembrar de que o português não-padrão, embora depreciado e estigmatizado, é autónomo, tem sua norma e gramática, não depende do português padrão. Aliás, o português padrão acha-se superior a ele, que é o melhor, que é bom e que todos devem segui-lo; gosta de sobrepor-se ao português não-padrão; gosta de estigmatizá-lo, depreciá-lo, enfim. O português padrão é igoísta, não aceita concorrência, não aceita adversários e acha que é o único que merece respeito, consideração, enfim. Todo aquele que não dança a sua música é visto como um deliquente linguístico, mal-educado, ignorante, iletrado, etc. Sebem, kudurista angolano, dizia: "Ninguém é melhor que ninguém". Mas, o português padrão, o Presidente, o rei, o 'todo-poderoso', acha-se melhor ao não-padrão. Até quando isso vai durar? Aceitar o outro tal como ele é, é mal? Até quando as suas diferenças serão razões de problemas? Até quando toda essa discriminação e preconceito linguístico vai durar?