O PRAGMATISMO LINGUÍSTICO E A VELHA TRADIÇÃO GRAMATICAL PORTUGUESA: UMA ILHA LINGUÍSTICA ENTRE DOIS SERES QUE HABITAM NA MESMA RESIDÊNCIA
Ao lermos Cunha & Cintra (1985:220), na tentativa de reflectir e analisar criticamente muito daquilo que a tradição gramatical considera como "bom português", discredibilizando e depreciando certas realizações sintactica e pragmaticamente consagradas pelos falantes tendo em conta a sua realidade linguística, encontramos a seguinte — e assustadora — advertência:
"No português contemporâneo só se usa a passiva pronominal quando não vem expresso o agente, nomeadamente em frases do tipo 'vendeM-SE casas' e 'compraM-SE imóveis', considerando CASAS e IMÓVEIS como os sujeitos das formas verbais VENDEM e COMPRAM, razão por que na linguagem cuidada se evita deixar o verbo no singular". Foi possível, também, à semelhança do que vimos acima, encontrarmos tal chamada de atenção em Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa.
À entrada da rua da Universidade Jean Piaget, Luanda, Viana, Kapalanga, está estampada, aí mesmo no prédio do Banco BIC, o seguinte: 'Vende-se apartamentos'.
Ora, já temos, de facto, duas frases totalmente diferentes.
A primeira, consagrada pela gramática; a segunda, efectivamente consagrada pelo uso.
VendeM-se casas?
Quem vende o quê? Será que as próprias casas vendem-se a si mesma?! É notório, caro leitor, o problema semântico, sintáctico e pragmático causado pela própria gramática?
Contextualizando, apesar de a gramática tradicional recomendar o uso do verbo no plural, julgando e defendendo como a forma mais "correcta", sabe-se que, em Angola, tal regra é, deveras, completamente desrespeitada e anulada, pois é, situacionalmente falando, dificílimo encontrarmos aspectos do que se disse acima numa terra tão bela chamada Angola. Por aqui, utiliza-se, desde longe, frases em que o verbo VENDER aparece, indubitavelmente, no singular, mas assumindo uma nova ordem canónica. A título ilustrativo, como exemplo, temos:
Vende-se casas.
Naquele exemplo, os falantes só têm demonstrado que, em certos enunciados semelhantes, estamos diante da ordem 'verbo-objecto', contrariando o que a prescrição gramatical diz. A inversão sintáctica do sujeito, para Marcos Bagno (1997:156), confere à frase uma elegância incrível, bem como um realce maior ao acto exercido.
Enquanto a gramática analisa aquela frase na ordem "verbo-sujeito", os falantes, por sua vez, por uma questão de intuito, analisam na ordem canónica "verbo-objecto", fazendo com que haja dois olhares diferentes a um só enunciado. De um lado, está a idosa gramática com as suas roupas velhas à espera de uma doacção; por outro lado, estão os falantes, seres completamente competentes no que tange à realização pragmática, sintáctica e semântica da sua língua. Invertendo, sintacticamente falando, não há razão por que, embora a gramática não aprove, empregar o verbo no plural. Com aquela inversão, o falante faz com que problemas ao nível sintáctico, semântico e pragmático sejam inexistente, conferindo, de igual modo, uma expressividade mais coerente, realçando, é claro, a ideia de que há, por trás daquela frase, um ser sujeitíssimo desconhecido.
Em "vende-se casas", dá-se a ideia de que há alguém que esteja por trás disso e que — na realidade — a sua cara é, com certeza, desconhecida.
Assim, para a gramática, é um erro crasso — só para não dizer que é crime — escrever ou falar 'vende-se casas', pois o sujeito do verbo VENDER, segundo ela, é 'casas' que, por sinal, encontra-se no plural. Logo, para que esteja correcta, deve-se, tradicionalmente, empregar, também, o verbo "vender" no plural.
Tendo-se estabelecido o cenário acima, apraz-nos dizer, na qualidade de estudante (s) e amante(s) de língua portuguesa, mormente o português falado em Angola, que no nosso país — terra que também é/foi de Njinga Mbandi e Ngola Kiluanji —, actualmente, tal aviso gramaticista, ou seja, tal regra gramatical, para os falantes, é como se fosse Deus para os ateus: sem importância e com uma inutilidade extrema.
Na mesma linhagem, tomamos como exemplo a seguinte sentença frásica:
'Fecharam-se as crianças'. Neste exemplo, para a gramática, seguindo a ordem 'verbo-sujeito', 'crianças' é o sujeito do verbo 'fechar'. Afinal, foram elas que se fecharam?! Não há, por aí, um problema semântico? Meu Deus! Em equivalência, teríamos: 'Crianças foram fechadas'. Não há, de facto, duas frases totalmente diferentes?! Não seria, e melhor, dizer que "fechou-se as crianças", remetendo para ideia da ordem 'verbo-objecto', visto que aí "se" assume, e sem sombras de dúvidas, o índice de sujeito indeterminado, remetendo, uma vez mais, para ideia de que há alguém, embora se desconheça, que as tenha fechado? Pois... Mas não é assim que a 'múmia' gramatical pensa.
Vamos analisar, por ora, estas duas frases:
1a. Nesse 'Stand' se vende uns carros bons;
2a. Nesse 'Stand' se vendem uns carros bons.
Verifica-se, na primeira frase, quanto à análise intuitiva que os falantes têm feito, a ordem canónica 'sujeito-verbo'. Na segunda frase, nota-se, claramente, de acordo com a tradição gramátical, a ordem 'verbo-sujeito'.
Ora, segundo a gramática, a primeira frase é, deveras, agramatical. A segunda, é claro, de acordo com ela, é a correctíssima, visto que há concordância entre o verbo e sujeito.
A primeira frase, aquela que a idosa e caduca tradição gramatical considera erro tendo em conta aquela ordem, efectivamente traduz uma sonoridade assaz natural em relação à frase dois com o seu sujeito, segundo a gramática, invertido sintacticamente:
Nesse 'Stand' se vendem (verbo) uns carros bons(sujeito).
Na primeira frase com a ordem 'verbo-objecto' analisada intuitivamente pelos falantes, no Brasil, de acordo com o nosso Professor, Autor, Escritor e Sociolinguista (obs.: grafou-se com inicial maiúscula por uma questão de respeito e consideração), Marcos Bagno, a partícula "se" assume, apesar do tradicionalismo não admitir e reconhecer, a função sintáctica de um 'pronome-sujeito'. Aquela frase número um, enunciado que a gramática considera errado e desaconselha o seu uso, apesar de os falantes e o pragmatismo linguístico consagrarem-na, torna ou não a frase mais expressiva e coerente em comparação à frase secundária? Claro que sim.
Para se comprovar isso, para Marcos Bagno, já que na segunda frase verifica-se uma inversão sintáctica do sujeito, torna-se relevante colocar a frase dois na sua ordem canónica, a fim de se analisar, semanticamente, o resultado final:
Frase 3: Nesse 'Stand' uns carros bons se vendem.
Repare, caro leitor, o problema semântico, embora sintacticamente a frase (3) esteja correcta, causado pela gramática. Afinal, 'uns carros se vendem'? Não é, veridicamente falando, engraçado? Pode sorrir, caro leitor! Está à vontade!
É possível um carro se vender (perceba a lógica da questão!), caro leitor?
O carro por si só é capaz de se vender?
A frase três (3), a velha gramática tradicional considera de correcta mas que, com o sujeito e verbo na posição canónica, assume, para o nosso autor, semanticamente, um papel cómico — é claro que só será cómico para alguém que conseguir analisar critica e profundamente. (risos)
Após a apresentação dos exemplos acima, Marcos Bagno, em A língua de Eulália, Novela Sociolinguística, num olhar 'linguístico-gramatical', com fundamentações precisas e convincentes, conclui:
"Juntando nossas três explicações — a manutenção da “ordem canônica” SVO da língua, a ausência de sentido das frases com verbo no plural e a intenção que governa as escolhas do falante, podemos dizer que:
1.°) o pronome 'se' em frases deste tipo não é uma “partícula apassivadora”, mas sim o sujeito da oração, e por estar no singular, o verbo também deve estar no singular;
2.°) conseqüentemente, o verbo no plural torna a frase incoerente, deixa-a sem sentido, ilógica;"
3.°) frases deste tipo não estão na “voz passiva”, mas sim na voz ativa porque correspondem a uma clara intenção da parte do falante de enfatizar a ação praticada.
Mais detalhes em A língua de Eulália, novela sociolinguística, de Marcos Bagno, 1997.
Por Caetano de Sousa João Cambambe.