Morte e vida Severina
Era uma tarde silenciosa quando me deparei com a melodia melancólica de Chico Buarque, que dava vida aos versos de João Cabral de Melo Neto. "Funeral de um Lavrador" não é apenas uma música; é um lamento profundo, uma crônica ritmada das agruras e da resignação de quem, em vida, teve pouco ou quase nada.
Esta cova em que estás, com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
A letra começa com a cova, pequena e limitada, simbolizando a insignificância do que foi conquistado em vida. A reflexão é inevitável: quanto vale a vida de um trabalhador rural, de alguém que viveu e morreu à sombra da terra que nunca lhe pertenceu?
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
Ao ouvir estes versos, me vejo transportado para o campo, visualizando a terra vasta e inexplorada que, ironicamente, só é "dividida" após a morte. É um retrato cru da desigualdade social, onde o trabalhador, que dedicou a vida à terra, recebe apenas uma pequena porção dela ao falecer.
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
A tristeza dos versos não vem só da morte em si, mas da amarga ironia de que a única divisão justa da terra acontece no final da vida. Esta cova, “medida”, é finalmente a parte que cabe ao trabalhador, um pedaço de terra que ele desejava ver repartido entre muitos enquanto ainda respirava.
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo
No refrão, o paradoxo é evidente. O trabalhador, que sempre teve tão pouco, finalmente encontra mais espaço na morte do que jamais teve em vida. "Estarás mais ancho que estavas no mundo" ressoa em minha mente como um eco de justiça tardia e insuficiente.
Mas a terra dada não se abre a boca
E é aí que a resignação atinge seu ápice. A terra, agora dada, não reclama, não protesta. A terra aceita silenciosamente aquele que trabalhou e sonhou com uma divisão justa que nunca veio.
Esta canção, com sua melodia tocante e letra profunda, é uma crônica musical que nos faz refletir sobre a vida, a morte e a justiça social. Ao escutá-la, não posso deixar de pensar na importância de valorizar o trabalho e o trabalhador, de lutar por uma sociedade onde a divisão justa da terra e das riquezas aconteça em vida, e não apenas na morte.
Enquanto a música toca, fecho os olhos e me deixo levar pelos acordes e palavras. Cada nota, cada verso, carrega a história de muitos que, como o lavrador do poema, mereciam mais do que a pequena cova que lhes cabe ao final. E assim, na minha reflexão, reafirmo meu compromisso com a justiça social, na esperança de que um dia, o latifúndio seja dividido não por uma cova, mas por mãos que trabalham e merecem viver dignamente.