Pau-de-Arara (Comedor de Gilete)

Eu um dia cansado que eu tava da fome que eu tinha

que eu num tinha nada que fome que eu tinha

que seca danada no meu Ceará...

Eu peguei e juntei os restinho de coisas que eu tinha:

duas calça véia e uma violinha

e num pau-de-arara toquei para cá...

E de noite eu ficava na praia de Copacabana

Zanzando na praia de Copacabana

Dançando o xaxado pra moças oià...

Virge Santa que a fome era tanta Que nem voz eu tinha

Meu Deus quanta moça Que fome que eu tinha

Mais fome que eu tinha no meu Ceará...

“-Foi aí que eu arresorvi comer gilete. Tinha um compadre meu

lá de Quixeramobim, que ganhou um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana.

De dia ele ia de casa em casa pedindo gilete véia e de noite ele comia aquilo tudinho pro pessoar ver.

Eu num sei não Elis, mas eu acho que ele comeu tanto, que quando eu cheguei lá na praia, aquele pessoar já tava até com indigestão, de tanto ver o camarada comer gilete.

Uma vez, eu tava com tanta fome que falei assim

prum moço que ia passando:

--Decente, deixa eu cume uma giletezinha, pra vosmecê vê?

Então ele me arrespondeu assim:

-- Sai prá lá pau-de-arara. Tú não te manca não?

-- Oh! Distinto, só uma, que eu num comi nadinha inda hoje.

-- Tú enche, hein, pau-de-arara?

Aquilo me deixou tão aperriado, que se num fosse o amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha arrebentado ela na cabeça daquele pai-d'égua.”

Puxa vida não tinha uma vida pior do que a minha

Que vida danada, que fome que eu tinha

Zanzando na praia pra lá e pra cá.

Quando eu via toda aquela gente num come que come,

eu juro que tinha saudade da fome,

da fome que eu tinha No meu Ceará...

E daí eu pegava e cantava e dançava o xaxado

E só conseguia porque no xaxado

A gente só pode é mermo se arrastá...

Virge Santa

Que a fome era tanta que até parecia

que mermo xaxando meu corpo subia

igual se tivesse querendo avoar...

“ -Às veiz a fome era tanta, que vorta e meia a gente rumava uma briguinha pra ir comer a bóia no xadrez.

Êta quentinho bom na barriga!

Mas, com perdão da palavra, a gente devorvia tudo dispois, porque a bóia já vinha estragada...

Mas enquanto ela ficava

ali dentro da barriga, quietiinhaa... Que felicidade!

Não, mas agora as coisas tão miorando, tão miorando...

Tem uma senhora muito bondosa lá no Leblon,

que gosta muito de ver eu comer é caco de vrido.

Isso é que é bondade da boa!

Com isto eu já juntei uns 500 mil réis.

Quando eu tiver mais um poquinho,

vou simbora, vorto pro meu Ceará...”

Vou simbora pro meu Ceará

Porque lá tenho um nome

Aqui num sou nada, sou só Zé com fome

Sou só pau-de-arara, nem sei mais cantá...

Vou picar minha mula, vou antes que tudo arrebente

porque to achando que o tempo tá quente,

Pior do que anda num pode ficar...

Intérprete: Ary Toledo

Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (1965)
Enviado por Sétimo Filho em 13/03/2021
Código do texto: T7206181
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