ULISSES E OS ARGONAUTAS

Numa noite calma de primavera ou outono
Um homem deslizou seus pés
Por ruas semeadas de pedras e folhas secas
Ao longe ele ouviu junto ao uivar do vento
Um piano tocar entrecortado por gritos estridentes
Atiçado por sua curiosidade se aproximou para ver o que era.

E já era tarde demais
Já não era mais dono de si.

A história se repetiu inúmeras vezes
Como quem esperando por Ulisses
Um homem de poucas palavras sem sorrisos
Não tinha amigos
Sua vida era uma mentira
Iludia as meninas pra tentar desencantar
Inventava nomes, desenhava suas conversas
Articulava sentimentos, induzia e induzia.

Tinha o dom de escutar
A manha de convencer
Mas seu dom lhe traiu, aprontou como um danado saci
Sua arma apontada para a própria testa
O obrigou a se afogar.

Ulisses
Eu também sou Ulisses
Tenho muito de Ulisses
E esse é o fim da minha história.

Ouvi seu canto me atrair
Pra algum lugar bem longe daqui
Sempre tive receio do mar
Quando era criança quase me afoguei
Fugi então para uma cidade de concreto
Quem dera fosse Asgard
Mas o mar nem sempre foi feito de água
E na beirada transbordado em dúvidas me esgueirei.

O que devo fazer?
Pra onde devo ir?
Alimento ou enganador
Quem eu devo ser?
Onde estão os Argonautas?
Quem jurou me proteger?

Ser forte sozinho nunca foi pra qualquer um
Era o máximo que eu conseguia raciocinar
E mesmo com os ouvidos cobertos de algodão
Com as mãos amarradas pela corda do capitão
Com a vontade resistindo a sua indução
Me vi devorado por dentro
Senti um gozo interminável
Uma enorme vontade de gritar.

Senti teu perfume desenhado no vento
Como quem vê o cheiro da comida em uma colorida animação
Ouvi seu canto me atrair pra algum lugar bem longe
Em soprano chamando meu nome
Ulisses
Venha para mim.

E quem não iria?
Candura, brancura, harmonia
Esse é o seu nome
Lígia, Parténope, Leucósia
Três em uma
Uma para mim.

Você é o meu canto, minha teia
Cuidado com o canto da sereia
Você pode nele se perder.

Eu sou Ulisses
E me apaixonei por sua doçura
Como nunca me apaixonei por ninguém.
Não devo fugir?
Devo ceder?
Onde estão os Argonautas?
Quem jurou me entreter?

Mesmo defendido não existem armas contra o coração
Nem mesmo notas musicais de um canto de adoração
Precisam se esforçar pra vencer homens da terra
Homens em guerra, homens sem guelras
Que não conseguem respirar diante da sua persuasão.

Ouvi seu canto me atrair
Pra algum lugar vazio bem longe daqui
Pra algum poço quentinho
Onde eu tenho só você
E só você sobrevive em mim.

Meu país morreu, minha família também
Esqueci o que beber e esqueci o que comer
Nunca mais fui visto e me tornei mais um rosto impresso em papel.

A cidade cinza embranqueceu com os ossos de todos que pereceram ali
O tocar do piano entrecortado por gritos estridentes
De tempos em tempos desaparecia e voltava sem avisar
Com seus desejos instintivos
Submergindo ao pouco de humano que ainda lhe restava.

Não houve um caminho de volta pra você e tão pouco para mim
Eu fui Ulisses
Ouvi seu canto amoroso
E desse jeito, ninguém nunca foi capaz de ouvir.

Ouvi seu canto amoroso 2x
Quem morreu fui eu 2x
E mais ninguém.
Kadu Leayza
Enviado por Kadu Leayza em 14/07/2015
Código do texto: T5310822
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