Amarelo Gelo 6

6.

Sentado em casa com a maleta sobre a mesa, ele olhava e olhava o objeto. Meditava sobre o que poderia ter ali dentro, qual a importância dela e porque mataram Dick. Teria a ver com a maleta? Mas se tinha porque não a levaram depois de terem feito aquilo com ele? Será que Dick tinha conseguido fugir dos assassinos? Como alguém naquele estado teria fugido? Ainda por cima havia marcas de luta pela casa toda. Eram muitas perguntas e provavelmente a única pessoa que poderia responder a todas elas estava morta.

De um salto resolveu voltar à casa do amigo, eram dez da manhã e com certeza Sombra não iria trabalhar hoje. Jogou uma ducha fria sobre a cabeça para tirar o suor do corpo junto com o cansaço. Ainda não tinha dormido. Voltou ao morro com as mesmas calças velhas que usava na noite anterior.

O sol forte no juízo fazia-o contrair os olhos. Tentava observar cada pessoa da rua de forma discreta, desconfiava de quem estava por ali. Poderia um deles ser o assassino de seu amigo? Não tinha como saber. Subindo a ladeira não conseguia notar nada de anormal. Era de se esperar um burburinho, um amontoado de gente aqui e ali comentando o ocorrido da madrugada. Mas nada soava como imaginava, como comumente era.

Se aproximando da casa do Dick pensou rapidamente, “não posso entrar, se um deles tiver voltado para procurar a maleta eu entro num problema que nem sei qual é, vou só passar na frente”. Continuou andando, olhando discretamente para o muro, o portão, tentando ver o interior do quintal, mas não havia nada, nem manchas de sangue, nem pessoas ou polícia na frente da casa.

- É esquisito num é? – disse uma voz ao lado dele.

Ah não! Você de novo não disse a cabeça do rapaz. Lá estava o mesmo vagabundo, com o mesmo cigarro amassado no bico, a barba igual, como se fizesse questão de manter a mesma aparência.

- O que é esquisito? – perguntou dando ares de que nada sabia.

- Ah moleque você tá procurando sangue em veia de barata. Não tem nada aí pra tu ver, ele já foi embora. Ainda tinha lua no céu quando saiu daí aquele cara corpulento com uma mulher gostosinha.

Coelho olhou bem o velho tentando adivinhar o quanto de cana ele tinha tomado.

- Acho que você tá falando da pessoa errada. Meu amigo nem voltou, você que me disse ontem.

O velho riu com dois ou três atacantes na boca, quase deixando o cigarro cair do bico, a pele negra se contraiu mostrando as rugas de uma idade já avançada.

- Você é muito burro mesmo. – levantou a vista para o céu, algum sinal invisível – Bom moleque, tenho que ir, a gente se esbarra por aí.

Sombra tinha a impressão de que o velho sabia mais do que parecia, ou era um bêbado fofoqueiro como tantos que existem soltos pelo mundo. Em uma coisa o vagabundo tinha razão, não havia mancha de sangue no portão. Alguém tinha limpado. Com certeza era isso iludia-se Coelho.

De novo em casa, meditando com o pouco visto na rua, nas palavras do velho bêbado, imaginava o que de tão valioso havia naquela maleta. Um demônio atiçava seu desejo de abrir o objeto, mas a promessa feita a um moribundo era muito valiosa, apesar das atuais tradições dizerem o contrário Sombra manteria a palavra.

Seu celular berrando Born to be wild novamente. O jovem quase caiu do alto do sofá onde tinha se empoleirado. Então notou a sala toda escura, apenas a luz da tela do aparelho telefônico junto com a pouca iluminação dos postes da rua clareavam sua sala. Aproximou-se dele sem problemas, já habituado com a posição dos móveis. Número desconhecido. Um frio na espinha subiu rapidamente. Quem seria?

- A-a-alô?

Silêncio por um tempo, só uma respiração fraca do outro lado.

- Q-q-qu-quem é? – tremia por dentro, por fora, por todos os lados o jovem.

A outra pessoa ainda em silêncio.

Desligou, jogou o aparelho para qualquer lado olhando na direção que tinha atirado. Assustado fitava o canto escuro que supunha estar o celular. Suava frio, a camisa encharcada de suor.

“Não posso ficar aqui – pensava – tenho que ir para qualquer lugar, contanto que seja longe.”

Num salto acendeu as luzes da sala, correu para o quarto tirando as roupas dos cabides com violência, escolhendo uma ou outra ao acaso, deixando tudo num caos completo. Abriu uma mala surrada colocando de qualquer jeito as peças dentro dela. Tomou um banho rápido, sempre olhando para a porta, para a janela pequena que servia apenas para circular o ar.

Apressadamente foi até o ponto de táxi mais próximo. Nada. Que horas eram? Que dia era aquele? Noite ou madrugada? Sombra transitava de um ponto a outro de sua cabeça. Parado em um ponto de ônibus, olhando para cada nuance das trevas da noite, cogitava sobre todas as possibilidades. Nunca havia se metido numa enrascada dessas, nunca tinha usado drogas na adolescência, nem feito nada de ilícito. Um menino de família diziam aqueles que o conheciam, um donzelo diziam outros, mas ainda assim matinha suas posições firmes, não se deixava influenciar pelas opiniões alheias. Porque tinha se metido nisso?

Amizade.

Subiu no bacurau. Além dele, do motorista e do cobrador não havia ninguém mais. Rodou um tempo, descendo em uma parada a esmo, pegando um táxi pra qualquer lugar, pegando outro bacurau, até não saber mais onde estava, ou supor não saber. Conhecia sua cidade. “Será que despistei? – pensava – Despistei quem? Estava tentando despistar alguém? Quanto despistasmento! O que queria dizer despistar?”

O sono já estava tomando conta de sua cabeça. Sete da manhã e ainda não havia dormido. Andou mais um pouco procurando o primeiro motel que encontrasse. Qualquer um. Hypnos Hotel, amor vinte e quatro horas! “Que coisa brega!” – pensou antes de entrar e desabar num quarto qualquer.