BLUES DO TEMPO (NÃO TEM ERRO)
A geladeira tá vazia vai lá na venda da Maria,
não tem erro
Quer folhas verdinhas e saldáveis é na banca da Rosinha,
não tem erro
Aquela carne de primeira só tem no açougue do Pereira,
não tem erro
E o leite da vaquinha encomenda da dona Maricotinha,
não tem erro
Casório no domingo faz o terno com o alfaiate Abílio,
não tem erro
Tá com depressão ou pressão alta é na farmácia do Rubão,
não tem erro
Se a coisa piorar chama em casa, então, o Doutor Pilar,
não tem erro
Para todos os problemas sempre haverá alguém à mão,
não tem erro
Mas daí, um belo dia, você vem e me pergunta:
Onde é que toda essa gente foi parar?
E eu respondo tranquilamente: preocupa não
No hipermercado tem de tudo e é muito mais popular
("tudo os carrinho se batendo e aquela criançada chorando")
Lá tem gôndolas para toda ocasião, não tem erro
Tem carne maturada, sardinha enlatada em promoção
Faz a festa da dona de casa, à molecada e do patrão, não tem erro
Compra-se até calça importada e gardenal à prestação,
não tem erro
E se ao pegar o produto derrubá-lo no chão
Logo o alto-falante vai anunciar a solução,
Chega o funcionário de escovão e balde na mão, a salvação
E limpa tudo em 10 segundos e vai embora sem oi ou tchau irmão
Não tem erro, não, não tem erro
- Cadê o cara que tava aqui?
- Esquenta não, já repuseram o produto
Mas daí, sempre insatisfeito, você me pergunta:
Qual era mesmo o nome daquele funcionário?
E eu respondo tranquilamente, sem pestanejar
Identidade em hipermercado só existe na hora de pagar
- Eu quero pagar com cheque
- Ai! Vai ter de mostrar os documentos
- Eu te mostro os documentos
Quando vê a fila pra pagar percebe que nem tudo nessa vida é sorte
E decide passar a comprar em outro lugar
E descobre que a Internet pode lhe facilitar
Basta um clique e um cartão de crédito para festejar
Não tem erro, não
Na primeira vez a encomenda pára em outro lugar
(culpa da companhia aérea)
E na segunda chega outro produto e não tem a quem reclamar
(liga pro 0800)
E na terceira sua senha é descoberta por um vírus popular
(cavalo do que?)
E o saldo da sua conta bancaria nem o Google pode achar
Não tem erro
E bate a saudade do leiteiro, da feirante, e do açougueiro
E cada nome que se perde é trocado por um site diferente
E o Abílio, e a Rosinha e a Maria já ficaram obsoletos
E estão comprando as próprias roupas e frutas pela rede
- O que é essa tal de rede aí? É de dormir?
- Não, mané! Tá ligado, não? Internet, computador, essas coisas.
- Ah! É que eu prefiro máquina de escrever.
- Que é isso!? Nunca usou um iPod, um iPad, um iPhone?
- Um “ai” o quê?
- IPhone. É tipo um celular.
- Eu não gosto dessas coisas aí porque eu acho que elas foram inventadas pra criar necessidades.
- Ih! Melhor não enveredar por essa história porque já deu até briga em mesa de bar
E, então, um belo dia, você me pergunta:
Mas, ora, o que, diabos, é que nós “tamo” fazendo
E eu respondo com calma: nada demais
Só digitalizando as coisas pra caberem em nosso tempo
Tempo, tempo, tempo
Falta de tempo, só um momento, tempo
Senhor, pode aguardar um minutinho? tempo
0800, Chat na rede, email, tudo é tempo
Tempo é dinheiro, tempo é dinheiro, tempo
Tempo é dinheiro, tempo é dinheiro, dinheiro
Tudo é mais fácil, tudo é dinheiro, dinheiro
Compra em casa, recebe em casa, dinheiro
Sem vendedor, sem contratempo, tempo
Sem intermédio, até pra remédio, dinheiro
Só num botão, só num clicar, tempo
Sem complicar, até sem falar, é só receber
Pra que sair, pra que se irritar com o tempo
Evita-se o trânsito, evita-se o contato, tempo
Tempo é dinheiro, tempo é dinheiro, dinheiro
Tchau pro João, tchau pra Maria, Tchau
Adeus pro Rubão, adeus pro Pereira, adeus
Cadê o José, a Maricotinha e o tio Roberto
E a dona Flora, e a dona Geni e a tia Mara
E a Zeferina, o Luis Otavio e o seu Lourenço
E todos aqueles que moravam lá perto de casa
Adeus
(Ouça a música em http://cronicasdobeto.blogspot.com/search/label/musicasdobeto)