Pai sem Computador
PAI SEM COMPUTADOR
(capítulo do livro "Pai sem Computador", novela juvenil, São Paulo, Atual Editora, 6ª. ed., 1999, 74 pág.)
Capítulo 4, Quando se pode assistir (de graça) ao primeiro jogo do campeonato, entre o Alvorada e o Litoral
O Zé Carlos veio falar comigo antes do jogo. Ele é o goleiro do nosso time de futebol de salão, o Alvorada. Estávamos no vestiário do ginásio de esportes do clube nos preparando para a partida de estréia no campeonato. O Everaldo, técnico da nossa equipe, já tinha dado as instruções finais e dito o que esperava da gente:
- A vitória, nada além da vitória. Precisamos começar com o pé direito. Temos muito mais time que eles, todo mundo sabe disso. E eles respeitam demais a nossa camisa. Agora, a partir deste exato momento, fica proibido ficar nervoso. Eles estão mais nervosos do que nós, lembrem-se disso, e tivemos a sorte de pegar o primeiro jogo em casa. O Zé Carlos é nossa garantia no gol. Olha aí, Zé: cuida nas saídas de bola, procura sempre alguém mais livre lá na frente, enquanto o André se desloca para receber. O André vai ser o artilheiro do campeonato, tenho certeza. Mas não precisa ser fominha, viu, André? Vai chutar em gol quem estiver melhor colocado. Pode ser o Gustavo ou o Marcelo, vindos de trás, ou mesmo o Joel, de pivô. Primeiro vamos pensar em ganhar o campeonato; depois, o jogo; por último, a medalha de artilheiro. Futebol de salão é trabalho de entrosamento, de equipe. E ninguém tem um time melhor que o Alvorada. Muito menos o Litoral. Confiança, gente, e façam lá dentro o que vocês sabem fazer muito bem!
O Zé Carlos chegou e me disse:
- Precisamos conversar, André.
- Alguma coisa que o Everaldo esqueceu de dizer?
- Não, bicho. Aí tá tudo legal. É coisa lá do colégio.
- Faz favor, né(1), Zé. Isso é hora de falar em colégio?
- É o negócio do líder.
- Aqui nós temos que pensar é em capitão, e não em líder. E, até onde eu sei, o Joel tem se saído muito bem na função.
- É, o Joel tem sido legal. Ele sabe incentivar o time, vê o jogo como se estivesse do lado de fora.
- Isso aí, cara. Assim é que se fala. Vamos dobrar aqueles pernas de pau.
- Sei, sei. Vamos, é lógico.
- Animação, Zé Carlos! Confiança, homem!
- Tô meio preocupado com a Física, André.
- Não! De novo?!
- O velho disse que me tira do futebol de salão se eu não for bem nos estudos.
- E quem falou que não vais bem?
- Não sei, a Física...
- Olha aqui, escuta uma coisinha só: agora nós vamos entrar na quadra e jogar uma partida. Partida de campeonato. Temos que ir bem, agora, é aqui dentro. Nosso negócio é o Litoral. Dane-se todo o resto: pai, mãe, namorada, estudos, colégio, Física, o diabo.
- É, eu sei.
- Porra, cara, desliga e se liga. Esquece o mundo lá fora e te liga no jogo.
- Eu sei que vai ser assim no momento em que a gente entrar. Quando piso na quadra não penso em mais nada.
- Então? Pra que criar minhocas agora?
- É que não viste a bronca que levei do meu pai antes de vir para cá.
- Olha, Zé, esquece teu pai, viu? Ele não sabe nada de futebol de salão, não conhece o Alvorada e não tem o menor direito de complicar não só a tua vida, mas especialmente a nossa. Estamos afim de ganhar a taça, e pra isso vamos fazer o máximo. TODO mundo, está claro?
- Lógico, André, lógico. Não vou ser eu que vai dar pra trás agora. Parece até que não me conheces.
- Conheço, claro. Olha, faz o seguinte: leva um papo depois com o Everaldo, amanhã ou depois, no próximo treino. Mas agora, PELO AMOR DE DEUS, o assunto é bola.
- Deixa comigo, bicho. Agora, escuta só uma coisinha: pouco vai adiantar eu pegar todas lá atrás se não fizeres nada na frente.
- Eu marco dois gols(2).
- E eu não tomo mais do que dois.
Isso aí ainda vai dar merda, pensei. O cara não tá muito legal. Não sei por que tem pai e mãe por aí que decide discutir os problemas na pior hora possível: se o sujeito não vai bem na escola, querem que ele vá pior ainda no futebol. Se não for no futebol, que se ferre no namoro, ou no prestígio com a turma, ou em qualquer coisa que faça. Parece que gostam de ver o filho humilhado, derrotado e desacreditado. Precisavam falar na porcaria das notas na hora em que ele está saindo para jogar? Só porque ele estava todo entusiasmado com a partida, cheio de esperanças, tinham que fazer isso com o pobre coitado, como se ele não passasse de um pobre coitado? Acho que sacanagem tem hora.
Com um minuto de jogo estávamos perdendo de um a zero.
Aquilo já me deixou muito puto da vida. Pior é que o Zé Carlos nem teve culpa do gol que tomamos. Os carinhas do Litoral foram rápidos demais, pegaram todo mundo ainda meio frio, sem ter entrado bem no ritmo do jogo. Não posso culpar nosso goleirão, pois o Marcelo entregou mal uma bola para o Joel: entregou na fogueira, eles tomaram antes que o Joel pudesse fazer alguma coisa, o Gustavo, mal colocado, não conseguiu dar a cobertura necessária e eu já tinha me mandado para a frente, certo que o Joel iria me passar a bola. Eles subiram em massa, todos ao mesmo tempo - correram o grande risco, inclusive, de, perdida a bola pelo ataque deles, eu estar totalmente livre à frente do goleiro, o que poderia muito bem ser o nosso gol - e fuzilaram. O Zé Carlos não teve culpa, lógico, mas acho que, em condições normais, ele poderia ter saído um pouco melhor, fechado o ângulo de chute, dificultado o passe deles e impedido o gol. Um escanteio que ele tivesse arrancado naquela jogada já teria permitido que o time todo se recompusesse em suas posições, marcando o ataque deles com o bloqueio quase infernal que a gente sempre consegue montar.
Tá bem, acabou sendo uma falha coletiva. Mas o fato estava lá, no marcador: um a zero para o Litoral. Olhamos para o Everaldo: nem piscou, não se desesperou, não xingou a mãe de ninguém, não culpou quem quer que fosse nem ameaçou fazer substituições. Também nem tinha sentido trocar alguém, convenhamos, com apenas um minuto de partida.
Equilibramos o jogo a partir daí, como uma decidida resposta à força que o técnico nos deu. Ele confiava na gente e tínhamos a obrigação de virar o jogo. Era uma questão de honra e um compromisso com a camisa azul e branca do Alvorada.
Perto do final do primeiro tempo o Marcelo empatou. Foi uma bela jogada: o Zé Carlos agarrou a bola num ataque em que o Litoral queria decidir as coisas ainda antes do intervalo e foi em peso para o ataque, certo de conseguir o segundo deles. Ficou só um jogador deles atrás, e mais outro já no meio da quadra. O Zé Carlos, ainda deitado, deu uma espiada e descolou o Joel, que já corria, desmarcado. Mesmo no chão, soltou a bola para ele. O Joel passou num toque rápido para mim. O último homem deles veio em cima de mim. Devolvi para nosso pivô. Enquanto o pivô deles corria na tentativa de marcação, o Joel deu só um toquezinho para o lado, por onde ele tinha certeza que subia o Marcelo, de posição trocada com o Gustavo para confundir ainda mais o adversário. Não deu outra: na corrida, a bola no lugar certinho, na medida, o Marcelo só teve o trabalho de soltar a bomba certeira, sem apelação para os "pescadores", como a gente chamava o pessoal do Litoral. (Descobrimos que eles detestavam ser chamados de pescadores. Ficavam uma arara e, com raiva, acabavam fazendo besteira.)
A besteira que fizeram, logo em seguida, foi marcar o segundo gol. Ainda estávamos comemorando o empate quando eles liquidaram o primeiro tempo. Litoral 2, Alvorada 1. Lá no alto, no placar, para todo mundo ver. Para vergonha nossa.
Agora o Zé Carlos estava totalmente absolvido de qualquer culpa. A bola foi absolutamente indefensável, chutada em diagonal, após um passe rápido, cruzado do outro lado. Ele pulou e ainda chegou a tocar na bola, o que já seria praticamente impossível, mas ela entrou no cantão superior. Se não fosse contra a gente, seria um belíssimo gol, merecedor de ir para a televisão (se tivesse televisão filmando) para ser visto de vez em quando. O jogador deles, depois de marcar, ainda foi cumprimentar o Zé Carlos pela tentativa de defesa. Sem qualquer ironia, que eles não seriam bestas de fazer isso dentro de nossa casa. Todo mundo concordou que o Zé Carlos fez muito mais do que se poderia exigir dele naquelas circunstâncias.
No vestiário ele veio falar comigo:
- Já fiz a minha parte.
- Como assim?
- Só levei dois. Ficas devendo os dois gols que ias marcar.
- Miserável! - falei, brincando. - Só que o jogo ainda não terminou. E, se a coisa ficar preta, sou capaz de marcar contra só para te desmascarar.
No segundo tempo saiu uma falta com barreira contra o Litoral. Quase desmontaram o pobre do Gustavo num lance duro pelas costas. De qualquer forma, era muito longe da meta adversária, difícil imaginar que alguém quisesse bater direto em gol. Resolvido o princípio de encrenca que estava para se formar, com peitadas de lado a lado, a bola foi colocada no chão. Combinamos rapidamente a jogada.
O Joel se afastou uns quatro passos. O Marcelo se colocou à esquerda da barreira, eu saí um pouco mais pela direita, no meio da quadra. O Joel correu. A potência de chute do Joel é reconhecida e respeitada. Uma autêntica patada, um verdadeiro coice de mula. Como esperavam uma cacetada (talvez até como vingança ou revide legal pela entrada que o Gustavo levou), a barreira se encolheu toda, todo mundo protegendo com ambas as mãos, muito firmes, aquela parte mais sensível do corpo masculino e que ninguém admite machucar. Uns se viraram de costas na hora torturante do chute, oferecendo o traseiro que, pela natural fofura (e muitas vezes pelo treinamento de infância), aceita pancadas com danos substancialmente menores para a saúde e para a virilidade; outros baixaram a cabeça, para livrar a cara e os olhos (provavelmente o segundo órgão masculino dentro da hierarquia de importância universalmente aceita). O Joel correu aquela distância toda de quatro passos, enorme dentro de uma quadra de futebol de salão, ainda mais se considerarmos o avantajado comprimento de suas pernas, e deu um toquezinho de leve, à minha frente. Como combinado.
Conforme combinado, empatei o jogo.
Voltei-me para o Zé Carlos e lhe fiz um sinal com o polegar da mão direita virado para cima - não era o sinal de "ok", e sim o aviso de que o primeiro já tinha entrado.
A partir daí o Alvorada tomou conta do jogo. O empate, que já era um excelente resultado para o Litoral, fez com que toda a equipe se plantasse atrás, na esperança de segurar o marcador. Com essa tática, as coisas ficaram mais difíceis para nós: não só para jogar, como também para evitar as entradas mais ásperas. Começamos a ficar um pouco irritados com aquilo. Sabíamos que tínhamos condições de vencer, que era apenas uma questão de tempo, mas não conseguíamos cultivar a paciência necessária para esperar a hora certa, o momento correto de colher o fruto maduro.
Irritado, sempre acabo fazendo coisas que, normalmente, procuraria evitar. Decidi partir para a humilhação dos adversários. Em parte, também, a intenção era que eles acabassem perdendo a cabeça, facilitando a penetração de nosso ataque. Percebi que o meu marcador sempre procurava bloquear a minha saída pelo lado direito. Além disso, como sempre ficava na espera, plantado mais atrás para evitar algum contra-ataque deles, ou o Gustavo ou o Marcelo, sobrava um jogador do Litoral que marcava a bola, isto é, ia sempre atrás de quem estivesse recebendo o passe.
Assim determinado, correndo pelo lado esquerdo de nosso ataque, recebi a bola entregue pelo Gustavo. Fugi em direção à lateral do campo, levando comigo meu marcador e atraindo o rapaz deles que vivia atrás da bola. De frente para a lateral, com o marcador me acossando pela direita, esperei a chegada do outro. Todos os nossos estavam severamente marcados. No momento certo, dei um toquezinho curto com o calcanhar, para trás, ou seja, em direção ao meio da quadra. No mesmo instante girei rapidamente de 270 graus no sentido anti-horário. Duas coisas aconteceram: os dois se viram subitamente frente a frente, enroscando-se um nas pernas do outro, enquanto eu, sozinho, livre e desmarcado, estava de cara para o gol. O goleiro deles arregalou os olhos, pois não esperava a jogada, rápida demais.
Olhei para ele, parado ali sem saber o que fazer, e para a bola que deslizava mansamente bem ao alcance de meu pé direito. Não tive a menor dúvida: aproveitei o impulso com que vinha, em função do movimento circular que fizera para driblar meus dois perseguidores, e enchi o pé com gosto, com toda a vontade, até com raiva e gana.
Errei o chute.
Quero dizer: não consegui o efeito que pretendia. O goleiro deles pulou no canto para onde deveria ir a bola, saltando para a direita, justamente onde eu imaginava que o tiro iria passar. Mas eu havia calculado mal a velocidade da bola que deslizava mansamente ao alcance de meu pé. Ela viajava um pouquinho mais rápido do que eu supusera. Acertei a bola, sim, mas um pouco mais para dentro e, conseqüentemente, um pouco mais para baixo do que eu pretendia. Isso fez com que a bola tomasse um certo efeito, obrigando-a a descrever no ar uma curva até graciosa, e saísse para a direita e para o alto: justo o necessário para que encontrasse o canto superior esquerdo do infeliz goleiro do Litoral e entrasse no gol raspando a trave superior e o poste lateral. Mais no ângulo do que essa era impossível entrar uma bola.
Virei herói do jogo e do time, embora soubesse que eu tinha errado a jogada. Mas, como dizem por aí, "em futebol, o que vale é bola na rede". Alcancei, no entanto, o objetivo de humilhar os adversários, como prometido para mim mesmo.
Conforme prometido, marquei meu segundo gol.
Voltei-me para o Zé Carlos e lhe fiz um sinal com o indicador e o dedo médio da mão direita abertos e virados para cima - não o "V" de vitória, e sim o aviso de que o segundo tinha entrado.
Depois disso, as coisas ficaram bem mais fáceis. Sem fazer muita força, chegamos ao quarto gol, de autoria - merecidamente - do nosso capitão: nova falta, agora próxima à área do Litoral, e o Joel toma uma distância de seis passos, sem nenhum dos nossos por perto a quem ele pudesse eventualmente passar a bola. Estava dito que iria enfiar o pé num diretão sem dó nem piedade. O que ele fez, com a bola zunindo pelo meio da barreira deles que, de novo, abriu-se em inúmeras brechas convidativas, sem a menor "chance" para o goleirão que, quando viu, a rede já balançava, vazia, vazia. Vazia e perfurada, pois a bola lá estava, no fundo do ginásio.
(1) Expressão popular de uso habitual nas regiões brasileiras de colonização açoriana (da Ilha dos Açores, Portugal) empregada de modo interrogativo, como se ao interlocutor fosse solicitada a aprovação para o que se diz mas que não espera uma resposta. Algo como "não é verdade?" Ao "né" geralmente se segue o nome da pessoa com quem se fala. Forma-se pela contração do advérbio NÃO com É, a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ser. (Nota do Autor)
(2) Proveniente do inglês "goal", a palavra foi aportuguesada no Brasil com a forma GOL. Sendo assim, o plural correto deveria ser GOIS ou GOLES (com a letra "o" fechada e pronunciado como "goles"). Entretanto, firmou-se popularmente entre nós o barbarismo "gols". Em Portugal e no Rio Grande do Sul é comum a forma GOLO (com o primeiro "o" fechado), gerando o plural GOLOS ("ô"). (Nota do Autor)
N.S.Desterro, julho/agosto/dezembro de 1992
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Da Importância de Criar Mancuspias", crônicas)