PRÓLOGO DO LIVRO: O PERGAMINHO DE VARNEL

Corat não era alguém que podia ser considerado um herói. Pelo menos foi isso que ele ouvira diversas vezes na terra de Parkus, onde passou a infância. Muito mais pelo lugar que vivia do que propriamente por ele.

- Pode sair de Parkus coisa boa? – perguntara, certa vez, o velho e cansado Aldur.

Contudo Parkus havia ficado para trás, a muitas léguas, e Aldur ainda haveria de escutar histórias que o fariam duvidar de suas convicções. Corat era tão moço à época para se importar com opiniões de velhos aldeões, quanto o é hoje para acreditar em elogios e devaneios de alguns combatentes da Marcial Mavasti.

Mesmo jovem, sua figura já impunha respeito. Seu olhar era tão penetrante como a espada Xoran, que embainhava com orgulho. Já havia comprovado muitas vezes suas habilidades e sua liderança havia sido conquistada com seu próprio sangue.

Aprendera a manejar como ninguém uma espada e a Mavasti acabou sendo mais do que uma escola, uma família. Não que fosse um lugar que alguém no mundo pudesse chamar de lar, mas foi onde um menino órfão pôde alimentar um sonho. Ano a ano foi crescendo entre guerreiros de todo o lado.

- Estamos nos aproximando do Monte Satonus! – Avisou Napil, com uma voz firme e paterna.

A advertência de Napil fazia todo sentido e cada guerreiro ali sabia bem o que isso representava.

- Vamos seguir. Atenção redobrada! – Respondeu Corat, sabendo que sua voz era a lei e sua convicção, uma injeção de ânimo na tropa.

O Monte Satonus era caminho para Norbieden, não havia como pegar uma rota alternativa sem perder dias, talvez semanas, de viagem, o que não estava nos planos de Corat. Seus habitantes eram seres inumanos. Tinham seis braços e nenhum senso de humor. Escondiam-se em grutas, alimentavam-se de sangue e carne humana e tinham um apetite insaciável.

Viajantes desavisados acabavam ali suas aventuras, embora o lugar fosse conhecido e evitado pelas tropas.

- Ao norte, sempre ao norte! – exclamava a frente Boniel.

Quando Corat chegara a Mavasti, Boniel já era um guerreiro respeitável. Por vezes, teve que se sujeitar às suas ordens. Anos mais tarde, quando enfim se tornou um comandante, nunca fez de suas ações uma espécie de represália, ao contrário, a admiração por Boniel sempre se fez presente.

Aquela missão era tão clara quanto desafiadora, resgatar o Pergaminho de Varnel, o principal símbolo de força e equilíbrio, capaz de restaurar a paz no reino de Jelion. Corat sabia muito bem o que significava aceitá-la, mas vislumbrou nisso uma espécie de redenção, algo que muitos anos depois daquele dia ficaria evidente.

Já havia quase uma légua que a tropa havia adentrado naquele território sombrio e, cada vez mais, a temperatura caía. Alguns atribuíam esse fato a fatores meramente climáticos, porém aqueles homens sabiam que havia outras explicações. Foi então que se ouviu um breve estalo, seguido de um súbito gemido.

- Em posição de combate! – Ordenou Corat aos homens.

Em poucos segundos, cada homem se posicionou em sua linha de frente, de forma tão planejada, quanto eficiente. Os semblantes não carregavam nenhum traço de medo, mas de absoluta hostilidade. A formação proporcionava com que a retaguarda de nenhum guerreiro ficasse vulnerável e permitia com que tropa continuasse cavalgando.

No entanto para um integrante daquele grupo, aquela formação de combate já era tardia. Via-se um cavalo sem seu cavaleiro e isso era uma mensagem muito clara. Pela disposição dos homens, Corat já identificara o ausente. O posicionamento não propiciava apenas o combate, como também permitia reconhecer um membro faltoso.

- Libone foi capturado, comandante! – Exclamou Napil, sem tirar os olhos de sua linha de defesa, embora pouco se conseguisse ver a frente.

O jovem Libone era um rapaz habilidoso, que sempre demonstrou mais valentia do que prudência. Corat lembrava-se perfeitamente de quando ele foi aceito na Marcial Mavasti, sempre visto com um guerreiro promissor.

- Temos que vencer o Monte Satonus antes do cair da tarde, a escuridão já está tomando conta. – Disse Corat, com a espada Xoran em punho.

- Ao norte, sempre ao norte! – Repetiu Boniel, já sem o mesmo entusiasmo de alguns minutos antes.

De repente surgiram, do lado direito da tropa, dois seres com feições monstruosas, portando pequenas lanças em cada uma de seus seis mãos. Embora mais baixos que um homem adulto, manejavam com agilidade suas armas e demostravam uma robustez excepcional, como guerreiros que nasceram para o combate. Corat estava a poucos metros de um deles quando avançou com violência.

- Morra seu demônio! – O golpe certeiro de sua espada foi o suficiente para arrancar a cabeça desse primeiro elgo, como eram chamados.

- Cuidado, Mikaal, atrás de você! – Bradou Napil, enquanto atacava o adversário, em sua posição.

Alguns vultos passaram na outra lateral da tropa, o que fez os homens desconfiarem de um ataque em massa, o que era incomum para elgos. Geralmente, esses seres agiam em pequenos bandos e investiam contra cavaleiros em pares. Não eram conhecidos pela engenhosidade, mas pela brutalidade de suas investidas.

Mikaal desmontou do cavalo, pois via nessa atitude uma melhor estratégia de se aproximar do monstro, a fim de golpeá-lo. Sua vida foi poupada devido à atenção e bravura de Napil, agora era preciso retribuir.

Quando avançou contra o elgo, este já estava, visivelmente, ferido. Um sangue escuro e espesso jorrava de um de seus braços decepados.

- Deixe comigo, Napil! – Asseverou Mikaal, com a confiança de um guerreiro mavasti.

- Toda ajuda é bem-vinda! – Foi a resposta irônica de Napil, que levava em sua espada a prova de que o duelo estava no fim.

Em poucos golpes, o elgo caíra no chão e o combate estava terminado. Mas o clima de tensão continuou entre os homens e a tropa avançava em posição estratégica, pronta para os próximos ataques, que poderiam vir de qualquer lugar.

- Há alguém ferido? – Indagou Corat.

- Não, senhor Corat. – Respondeu Napil.

A escuridão diminuía a cada metro e Corat recordava consigo alguns trechos do Pergaminho de Varnel, que aprendera na Mavasti: “Bendito seja o Senhor, a minha Rocha, que treina as minhas mãos para a guerra e os meus dedos para a batalha”. Sabia que essa batalha só estava começando, mas tudo tinha o seu propósito.

- Então todos em prontidão, vamos seguir atentos!