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Tempo vai, tempo vem.

O velho relógio de parede pinga as horas na Tijuca: ten, ten, ten... Corina Lindaflor de Montes Calmos relembra com saudade, quando o pêndulo pontilhava o tempo na sala de estar da fazenda. Dá um “zum” nas imagens gravadas na memória, acrescenta novo retalho em sua história; pesponta e faz o debrum. Finge não ver que sua netinha, agora crescida, grava em fita cassete as conversas que se dão entre elas no sofá.  E com uma lágrima disfarçada em sorriso, recomenda:

 

“Não conte nada. Mostre tudo, sem esconder os nós do bordado.”

 

 

Capítulo...

 

 

A vida é feita de retalhos

Pequenos recordes da história

Alguns tocados pelo vento voam

Outros povoam os anéis da memória.

 

 

 

Lembrava-se de quase tudo que avó contava. E das canções que ela cantava, para a neta dormir. Vó Corina punha a mão na cabeça de Ravenala e dizia: “Durma, Princesinha, durma!...”

– Não consigo dormir! Vejo monstros dentro meus olhos.

– Vou retirar os monstros. Pode dormir agora. Eles já se foram!’ 

Dormia, não sem antes reclamar:

—Eles estão voltando, vovó! Os monstros estão voltando e não me deixam dormir. Conte uma estória!

– Posso contar outra vez a “A Lagoa Encantada?”

– Não, aquela não! Tenho medo da carimbamba.

– Já contei todas que sabia!

– Pode ser inventada, vovó!  Pode ser inventada.

– Todas as estórias são inventadas, minha filha!

– Então invente uma, Vó!

Corina contou.

A Fada do Sono foi convidada para um congresso que aconteceria nos primeiros dias de vida de uma formiga albina. Ela será um fardo para o formigueiro, e deveria ter recebido sentença de morte, quando ainda ovo. 

 O destino da pequena formiga estava prestes a transformar–se num exílio de vida ou numa pena de morte, mas, por sorte, a fada postou-se no meio da assembleia e vaticinou: “Pelo poder dos deuses, concedo a esta menina o dom da música. Ela navegará os sete mares. Será muito aplaudida e o som de seu trompete tocará profundamente a alma de quem dela se aproxima. Toda a Terra conhecerá seus feitos. E em todo o universo, não haverá outra formiga com mais talento do que ela.” 

 Houve profundo silêncio, no reino encantado das formigas, em seguida, a Rainha Pixixica decretou: A partir de agora, a formiga albina se chamará Beethoven. Providenciem a orquestra, organizem o espetáculo, quero ouvir o último momento da quinta sinfonia.

– Beethoven existiu de verdade, vovó?

– A formiga Beethoven, só existiu na imaginação de seu criador, mas o compositor existiu. A nova sinfonia de Beethoven, por exemplo, faz um bem enorme a minha alma. Por certo, minha filha, gerações futuras, haverão de usar a boa música para estimular o cérebro humano a se reorganizar.

Teve vontade de dizer que Davi tocava harpa quando, o rei Saul se sentia perturbado por maus espíritos, e logo que Davi tomava a harpa, Saul acalmava–se, sentia-se aliviado e o espírito mau o deixava.  Não quis falar de seu filho Ludovico que tinha um buraco no cérebro, viveu treze anos e aprendeu a tocar flauta.

Ludovico de Montes Calmos não compôs nenhuma música, mas cantava, e tinha a voz suave como a de um anjo.

Decidida continuar com a abordagem, Corina retoma a conversa.

— O talento musical — disse ela — como muitas outras artes, desde os tempos de Platão, até nossos dias, é considerado como de inspiração divina. Os sinais sonoros, por seu turno, têm o poder de gerar imagens, marcar momentos inesquecíveis e contar muitas histórias.

Achou que falava em uma linguagem difícil de ser compreendida por uma menina de apenas sete anos. Parou por um instante, mas não abortou o assunto. Naquela idade, nem tudo assusta uma criança. Algumas coisas vistas pela primeira vez, geram medo; outras, curiosidade; outras interesse em desvendar os segredos e mistérios da vida.

Prosseguiu.

A música é de natureza divina, os anjos do céu fazem coro, cantam e glorificam a Deus, o homem deve fazer a mesma coisa, pois, foi criado para amar e servir a Deus, e neste contexto de interrelação entre Deus e o homem está inserida a música. Ela foi criada por Deus, para curar   a alma e o coração. Se a música nos coloca em sintonia com Deus, vem de Deus. Mas aquela que se desvia da partitura divina, abre portas para as trevas.  Entendeu?

— Continue, Vovó.

— Não me privo da música clássica, nem de uma boa moda de viola, contanto que não viole a lei de Deus, porque, mesmo não sendo sacra, não é profana a música que não ofende a Deus.

Chana aparece na sala.

Eram quinze horas de uma segunda-feira do mês de novembro.

— A panqueca de aveia com banana já está na mesa.

Voltou e sentou-se à mesa com os demais de casa.

Durante a pausa para a merenda da tarde, a cozinha entra em clima de silêncio.  Corina faz, mentalmente, uma viagem de volta ao passado, e revive o momento em que o marido, no alpendre da Fazenda, cantava “Tristeza do Jeca.”

Levantou-se.

Repousou os cotovelos na janela.

Respirou fundo e retornou minutos depois, com muito brilho nos olhos, como quem acabara de ver recortes de sua história numa telinha de televisor. Mordeu os lábios para conter o choro; abriu o coração, soltou a língua e começou a contar episódios que se davam na Fazenda Campo Grande.  Contou mais de uma vez a mesma história, e todos os que dela souberam, guardavam com muita estima o valioso tesouro.

Disfarçadamente, Chanana anotava alguma coisa em um guardanapo de papel. Puxava assunto, e sua madrinha Corina ia remendando mais retalhos de lembranças na colcha dos Montes Calmos. Seu rosto, dez anos mais jovem, revelava felicidade no semblante alegre da personagem viva daquelas histórias. Ela mesma.

Sorriu graciosa.

— As noites na fazenda eram tão bonitas!

Postou-se outra vez na janela como se pedisse ao vento que lhe trouxesse notícias de Campo Grande. Estática, pareceu-lhe ouvir a canção do vento nas palmas do tucunzeiro, e permitiu que seu pensamento rompesse fronteiras, e se aninhasse no espaço neutro onde não existe ontem nem amanhã. Tudo é hoje.

Estaria ela na sexta ou sétima morada?

Lá onde estava, seu ouvido mortal, pôde ouvir os anjos entoarem a “Tristeza do Jeca”, Viu Batista Generoso fazendo coro com os anjos, bem pertinho dela.  Não conteve a alegria e verbalizou seu sentimento.

— As modas de viola me trazem lembranças de lugares e de pessoas com as quais dividi momentos agradáveis.

Sua memória auditiva lhe trouxe a voz do finado a cantar no alpendre da fazenda. E mais uma vez, sem pesar e sem pensar, disse, quase que mecanicamente: “Não há tempo que apague esta saudade, nem dinheiro que pague essas lembranças.”

– Sentes saudade do vovô Generoso, não é mesmo, Vovó?

– Percorri com seu avô uma senda de flores e espinhos, mas em nossa tenda, tudo eram flores.

A magia das narrativas de Corina, trazia para o asfalto a beleza do orvalho matinal derramado na relva fresca. E, mesmo sem entender, perfeitamente, o balé que a avó fazia com as palavras, Ravenala deleitava-se com a harmonia do sapateado delas.

Terminada a leve refeição, pela primeira vez, em muitos anos, Micol Lindamaria de Montes Calmos, ajudava a arrumar a cozinha. Lenta e preguiçosamente a tarde caía nas mãos de Micol a cada utensílio lavado e colocado no escorredor.

O tempo fechou, o Sol se escondeu atrás do Cristo Redentor e a “Cidade Maravilhosa” foi envolvida por nuvens escuras.

 Corina e Ravenala sentaram-se outra vez no sofá da sala.

— Desligue o gravado! Por agora, chega.

— Podemos continuar depois?

— Amanhã, talvez...

— Cansada, vó?

— Meu coração hoje trabalhou igual sino em dias de procissão. Preciso descansar. Já é tarde para quem dorme cedo.

A mãe de Ravenala recontava histórias lidas em romance de cavalaria. Corina escutava. Chanana queria saber se Sancho Pança realizou o desejo de governar uma ilha. Micol respondeu com um sorriso maroto.

 — Quem nunca foi movido por um moinho de vento!? 

Sem compreender plenamente o que sua irmã postiça lhe respondera, Chanana modifica a pergunta.

— E se ele governar uma ilha deserta?

— Ora minha irmã, governar o quê? Se a ilha não tem habitantes, o dono da ilha vai reinar sobre quem?

Tomada de curiosidade e interesse pelo assunto, Ravenala não perdia uma palavra, quando a conversa ancorava em uma ilha. Ela mesma, tinha vontade de morar numa ilha deserta.

Fantasias, sonhos, quem não os tem?

Todo homem tem um sonho: o desejo de reinar. Reinar sobre seus problemas, sobre sua vida, reinar sobre alguma coisa, mas Jeremias não conseguia reinar sequer sobre suas fraquezas. Caia, e quando se levantava, o segundo tombo era maior que o primeiro. Pobre homem! Desprezado pela família, oprimido e humilhado, não levantava a voz.

Até no trabalho era menosprezado.

Cumpria tarefas em uma Gráfica de Impressão de Livros em pequenas tiragens no Rio de Janeiro. Auferia baixa remuneração, e sua contratação como linotipista era temporária. Pejorativamente chamado Jê do Caxotim, não se envergonhava do ofício, catava, manualmente, as letras uma a uma, para compor as pranchas de impressão. Feliz com o que fazia, tinha carinho de pai como se fosse ele o autor dos livros que compunha. Sem desviar os olhos do sonho de ter o próprio negócio, dizia que o processo de constituição da editora “Águia de Haia” já estava quase concluído. E relatava encontros pessoais com seu sócio Rui Barbosa, para tratar do assunto. O que Jeremias não sabia era que, ele e Rui Barbosa estavam, há pelo menos duas décadas distantes, entre o nascer do mais moço e o falecer do mais velho.

 

Ó vida duvidosa, ó morte certa!

 

Considera que em terra convertida

 

Jaz aqui a beleza mais louvada,

 

E que o tudo da vida é pó, é nada,

 

E que menos que nada, a tua vida[1].

 

 

Aproximavam-se as festas de final do ano.

Naquela noite, Jeremias chegou mais cedo.

Era véspera de Natal e também dia do seu aniversário.

Tão distraídos estavam os de casa, que a presença do provedor não foi percebida. Entrou calado, jantou a comida fria, que estava há horas sobre a mesa, e como de costume, foi deitar-se em uma cama rota no quarto de despejo. Sentada no sofá da sala, Corina Lindaflor, repassava na memória páginas dos livros que lera. E assim, viajando no imaginário das leituras feitas, viu Machado tecer o perfil psicológico de Capitu, e perguntou calada: “Capitu traiu o marido ou não?”

Machado não respondeu.

Desde 1899 sentia-se incomodado com esta pergunta.

Irritado, teria o “Bruxo do Cosme Velho” queimado as supostas provas contra Capitu? A dúvida persistia: Capitolina é culpada ou inocente? Será que a infidelidade atribuída a ela, não seria fruto do ciúme doentio de seu marido? E Capitu chora, e geme, e sofre.

Corina também chorou recordada dos comentários que se deram em Campo Grande, quando Chanana nasceu: “A filha do vaqueiro Onofre é a cara do patrão!”

A família Montes Calmos ainda estava no sofá, quando um transformador da Light, explodiu na Mariz e Barros, ali pertinho da casa.

Tudo ficou escuro nas imediações.

 Minutos depois a luz chega. Clareia os cantos e recantos, antes envoltos pela sombra da noite. Corina estendeu a mão para a netinha e disse, com doçura na voz: vem dormir, menina! 

Coçando os olhos, Ravenala acompanhou avó até o quarto.

Desfeita a cama, Corina cobriu-a com um lençol fino. Apagou a luz, puxou suavemente a porta, e se despediu.

– Boa-noite...

– Não vai me dar a bênção?

– Deus te abençoe, minha filha!

– Esqueceu de abençoar também a Mary Emily!

– O deus das bonecas te abençoe, Emily!

Saiu.

A boneca se mexeu na caixa de sapatos, cuja tampa ainda estava aberta.” Acenda a luz, Ravenala. Tenho medo de escuro.”

– Que diferença faz? Você sempre dorme com a tampa da caixa fechada? Não vai dizer que tem medo do lobo mau! Vai?

A boneca franziu o cenho. Fechou a tampa e acomodou-se como pôde, dentro da caixa.  Dormiu e sonhou que estava em um barco à deriva. O vento sacodia, fortemente, seus cabelos, e o balanço das águas lhe causava enjoo.

Assustada, gritou.

 Tempestade no mar! Meu Deus, Meu Deus! Salva-nos ou morreremos!

 

 

 

Texto e imagem: 

Adalberto Lima 

 

 

 

 


[1] Soror Violante do Céu (1602-1693)

 

 

 

 

 

 

 

 


[1] Soror Violante do Céu (1602-1693)