Brigadeiro a Flores - Cap. 27: Presos
"Por quê?" Erva balbuciou vendo Bernardo sentado no banco, encolhido, com as mãos dentro do casaco moletom sob a chuva. Ela respirou fundo e se aproximou. "O-oi!" Disse sem graça.
Bernardo a olhou e, seu rosto que estava pensativo quando ela o olhou de longe, teve a testa franzida e os olhos furiosos. "4 horas! 4 horas! Onde você estava?" Ao mesmo tempo que falava, Bernardo levantou rapidamente e foi para cima de Erva, que tentou se afastar um pouco, mas não conseguiu esquivar e o garoto a abraçou fortemente.
O que ele está fazendo?
Os dois ficaram assim por um momento: Bernardo por curtir o momento (a raiva passara ao ele senti-la em seus braços), Erva por ter sido pega de surpresa e estava raciocinando o que estava acontecendo (não estava correspondendo ao abraço, seus braços estavam caídos ao lado de seu corpo).
O tempo foi curto, mas para os dois pareceu uma eternidade, por motivos opostos.
Erva retomou a noção e empurrou o garoto de si, que desequilibrou e caiu de bunda em um poça no chão.
"Você é louco?" Erva gritou.
"Você que é, por que isso?" Disse o garoto sentado.
Erva arrumou a sombrinha sobre si. "Olha o que você fez, me molhou toda."
"Te molhei? Eu estou te esperando há mais de 4 horas."
"Eu não disse que viria."
"Mas também não falou que não."
Erva arregalou os olhos e desviou o olhar. Isso é verdade.
"Eu fiquei preocupado. Achei que tinha acontecido um acidente contigo." Bernardo disse se levantando. Ele falava mais calmo. "Eu tentei ligar, mas você não atendia".
"E desde quando você tem meu número?"
"É sério que é isso que importa?" O garoto voltou a ficar sério.
"Não, é que... aff, por que não foi embora? Você está molhado. Você não tem guarda-chuva?"
"Eu não podia ir embora sem ter uma resposta antes."
"Como assim?"
"Eu ia te esperar só mais um pouco, se você não chegasse, saberia que não ia vir mesmo por algum motivo, mas, não podia correr o risco de você chegar e não me ver aqui".
"En-ten-di." Erva falou pausadamente, estranhando a atitude do cabelo enrolado. 4 horas?
"Besta!"
"Oxi! Por que tá me xingando?"
"O jeito que você fala. Você fica me zoando toda hora. Onde você estava?"
"Não importa". Erva respirou fundo. Por que isso tudo? "Eu vou embora. Você..."
"O quê? Eu planejei tudo para a gente, você chega atrasada e diz que vai em... atchim! Droga!"
"Planejou tudo? O que você está dizendo?".
"Esquece, vai embora!" Bernardo disse se voltando para o banco e se sentando.
Erva ficou o olhando por um tempo. Era mesmo um encontro? "Hey, não era uma pegadinha comigo? Bullying?"
"Estúpida! Por que eu faria um... atchim...uma pegadinha contigo?"
"Porque é você, sabe? O incrível e idiota Bernardo Assumpção!" Erva disse e sorriu sem jeito, Bernardo só levantou o olhar, sério. "Ok, ok". Erva suspirou e se aproximou dele, colocando a sombrinha também sobre o garoto. "Acho que eu julguei um pouco, só um pouco, errada essa situação de hoje."
"Como assim?"
"Não importa, o que importa é que para me redimir e dado o seu estado, eu te pago um café quentinho, o que acha?" Ela sorriu e ele ficou hipnotizado, a olhando. Ela é muito fofa.
"Aaah tah bom, mas sem essa coisa aí em cima de mim (apontou para a sombrinha). E vamos logo porque estou com fome". Ele disse se levantando e já caminhando na frente, se sentindo quente dentro de si. Será que estou vermelho?
"Espera! Desse jeito você vai se molhar mais. E como assim com fome?" Erva olhou dentro de sua bolsa. Eu só tenho dinheiro para um café.
Bernardo se dirigiu a uma cafeteria ali perto, mas Erva, que conhecia um pouco da região por causa do trabalho, sabia que o local era caro.
"Ei, vamos em outro lugar?"
"Por quê? Aqui é uma cafeteria".
"Eu sei, maaaaas" Como dizer que não tenho dinheiro? "Bom, eu acho que..."
"O quê?"
"Queeeeee.... Que existem outros lugares melhores!" Erva mentiu.
"Melhores? Huuum".
"Se ficar duvidando do meu gosto, não vai! Eu que convidei, eu que escolho o local!" Erva disse decidida andando na frente. "Vamos aproveitar que a chuva cessou e ir rápido!" Bernardo a seguiu.
Erva sabia que tinha uma cafeteria mais em conta por ali perto, ela havia ido há um ano com Bianca, mas não lembrava exatamente, então saiu andando.
No caminho, Bernardo foi achando um pouco estranho. Eles haviam saído da avenida principal e estavam para dentro do bairro, mas afastado de lugares que o garoto conhecia.
"Hey, Dana! Para onde está me levando?"
"Para tirar seu rim e vender no mercado negro?" Ela deu uma gargalhada e se virou para ele que tinha um olhar de assustado. "Você está com medo? Eu estou brincando!"
"Não é isso. Eu não tenho medo!"
Erva sorriu e olhou ao redor, havia pouquíssimas pessoas na rua e todas estavam olhando para eles. Realmente, alto desse jeito e com essas roupa, ele parece um modelo idiota.
"Eu vou voltar". Bernardo disse voltando pelo caminho de onde vieram.
"Hey! Espe..." Bernardo já estava mais à frente. Aff, que vá embora então, eu não vou segui...
"Olá, garota! Levou um fora foi? Eu posso te fazer companhia." Um homem se aproximou de Erva, a olhando por inteiro.
"Credo, sai pra lá!" Erva disse se afastando rapidamente.
"Que isso. Aposto que tem algo nesta bolsa. Me dê aq..." O homem avançou para cima da garota, que tentou desviar, mas sua bolsa foi pega pela alça. Erva puxou novamente. Logo em seguida, o homem foi puxado pelo colarinho e caiu longe. Bernardo o tinha pego e o empurrado.
"Ela não levou nenhum fora. Mas você..." Ele apertou uma mão na outra. Erva entendeu toda a situação e foi para frente dele.
"Eeeeeei, está tudo bem!"
O homem levantou do chão com um canivete na mão. "Eu o quê?"
"Nada não!" Erva disse arregalando os olhos. "Corre!" Ela disse, pegou a mão de Bernardo e o puxou, saindo correndo.
O homem foi atrás deles. "Volta aqui!"
Erva corria o máximo que pode. Nem olhava para trás.
Bernardo, sendo puxado, a seguiu. Ele não tinha ficado com medo da situação, pelo contrário, não se importou que o cara sacou um canivete, ele já ia para cima dele, mas ao sentir Erva segurando sua mão e o puxando. Ele apenas a seguiu, sentindo sua mão na dele.
As pessoas na rua, assustadas, vendo os dois correrem e um homem atrás deles com um canivete na mão, apenas saiam do caminho, com medo, ninguém tentou ajudar.
Erva virou em uma rua e viu a porta de um prédio aberta com um tijolo na frente. Ela não pensou duas vezes, chutou o tijolo, passou pela porta junto com Bernardo e fechou. Instantes após, ela ouviu uma voz gritando passando do lado de fora. "Volta aqui!" Ela tremeu. Despistamos ele. Ela então se encostou na parede e se deixou escorregar até o chão, respirando fortemente.
"Droga, o que foi isso?" Bernardo disse se encostando na parede na frente dela.
"Ah. É..." Droga, eu esqueci dele completamente. "Hehe desculpa!"
"Eu teria acabado com ele".
"Em assaltos a gente corre, não banca o herói". Ele ia mesmo lutar com o cara. Que menino louco! Ainda bem que agi.
"Você devia ter me acompanhado".
"Por quê? Você se virou e estava indo embora porque quis".
"Eu não gostei de onde estávamos indo. Não é bom andar em lugares desertos".
"Não era deserto, tinha umas 3 pessoas na rua".
"Sim, e uma delas era o assaltante."
"TÁ! Eu entendi. O magnífico Bernardo Assumpção só pode comer em lugares de rico".
"Não disse isso."
"Quanto mais afastado, mais barato ficam as coisas. Eu não tinha dinheiro para pagar um café e comida em uma cafeteria como aquela que queria entrar."
"E por que não disse? Eu iria pagar de qualquer forma."
"Eu convidei!"
"E você acha que eu ia te deixar pagar algo para mim?"
"Por que não?"
"Porque eu te convidei a princípio. E porque é cavalheirismo isso. Uma gentileza que não me custa nada fazer quando sairmos."
Sairmos?
"Enfim, me diga da próxima vez, ok? Prefiro que paguemos algo perto de lugares movimentados do que você se machucar por causa de maus encarados."
"Hum". Próxima vez? O que ele está fazendo? Não quer que eu me machuque?
Os dois ficaram por um tempo parados em silêncio.
"Droga, estou sem sinal" Bernardo disse e Erva voltou sua atenção para ele. "Eu ia chamar meu motorista."
Erva olhou ao redor e viu que entraram em um depósito pequeno. Ela pegou o celular e viu que ele estava desligado. Droga. Se levantou e foi até a porta. "Ele deve ter ido embora. Despis... hum?" Ela tentou abrir a porta e não conseguiu. "O quê?" Tentou novamente.
"O que foi?"
"A porta, ela não abre". Respondeu a Bernardo e entrou em pânico, empurrando a porta várias vezes.
"Espera! Deixa eu tentar". O garoto tentou e nada. "Quando você entrou, vi você chutando algo..."
"Era um tijolo, estava... aaah, entendi". Erva disse e Bernardo sorriu.
"A porta não podia fechar."
"Droga! E agora?"
Bernardo foi até um canto e sentou. "Precisamos esperar virem".
Erva bufou.
Alguns minutos se passaram, Erva procurou uma tomada para carregar o celular, mas não encontrou. Ela então se sentou em um canto oposto de Bernardo. Droga, trancada justo com ele num lugar assim. Huuum. O que ele quis dizer com todas aquelas coisas? Ele está diferente de quando eu o conheci. Ele era tão idiota no meu primeiro ano. Na verdade, ele era idiota até um mês atrás. Agora ele está... está...
"Erva?" Bernardo disse e Erva, que o olhava enquanto pensava, surpreendeu-se.
"Ah, oi?"
"Eu acho que não estou bem."
"Como?"
Ele a olhou e Erva percebeu um olhar fundo, piscadas lentas dele. Bernardo estava brilhando de suor. Seu cabelo, agora Erva reparara melhor, estava liso molhado da chuva, com uma mecha caída em seu rosto que estava um pouco vermelho.
"Erva..." Ele balbuciou e deslizou para o lado, caindo no chão.
"Minha nossa, o que você tem?" Erva correu até ele. "O que você está sentindo, Bernardo?" Ela disse preocupada. Mas ele, apesar de acordado, estava com os olhos fechados, todo mole. Erva colocou a mão no rosto dele, e percebeu que estava muito quente. "A chuva! Você está com febre porque tomou toda aquela chuva."
"Eu..."
"Não diz nada! Deixa eu ver aqui na minha bolsa". Ela abriu a bolsa e mexeu dentro, encontrando um remédio. "Aqui! Você vai precisar engolir no seco, porque não tenho água".
"O que é isso?" Bernardo disse com os olhos cerrados.
Erva sentou ao lado dele e colocou a cabeça dele em cima de suas pernas. "É remédio para febre".
"Eu não quero, eu só posso tomar remédio prescrito".
"Problema seu, agora você vai tomar esse e pronto. Abre a boca."
"Eu..."
"Abre a boca logo!" Ela disse mais apreensiva e o garoto obedeceu, engolindo o remédio. "Pronto. Agora você precisa se esquentar. Erva olhou para o lados mas não encontrou nada, só tinha plásticos. Ela então tirou a blusa de frio que usava.
"O que... fazen..." Bernardo balbuciou.
"Não se preocupe. Você vai ficar bem." Erva colocou a sua blusa por cima de Bernardo, o cobrindo.
"Mas e você?"
"Eu não estou com frio." Ela sorriu.
Já era de noite. E ninguém ainda aparecera no local.
"Erva".
"Hum?"
"Você conhecia mesmo um café aqui perto?"
Erva sorriu. "Você quer puxar papo neste estado?"
"É ruim ficar em silêncio perto de você." Ele estava de olhos fechados, então não viu o sorriso que Erva dera. "Fico me questionando o que você está pensando."
"Entendi. Eu não estava pensando em nada."
"E você me diria se estivesse pensando em algo?"
"Não também."
"Hum"
"Mas eu vim para esses lados com a Bianca há um ano mais ou menos, e tomamos cappuccino em um local barato. Mas hoje eu me perdi. Não lembrava do local."
"Entendi."
"Huuum."
"O que foi?"
"Sei que não é muito da minha conta, mas por que existe a tarja?"
Bernardo sorriu sem mostrar os dentes. "Eu sei o que é bullying."
"Que bom." Erva disse irônica.
"Tudo começou no ensino fundamental, tínhamos 10 anos e já éramos conhecidos. Um dia, um menino novo ficou zombando do Benício. Ele não se importou quem éramos. Ele disse que Ben era sonso. Depois chamou o Fagundes de gay, porque ele levava biscoitos que tinha feito com a avó. Ele não chegou a me zoar e nem o Carlos, mas acredito que porque não teve tempo."
"O que vocês fizeram?" Erva disse já imaginando o pior. Bernardo sorriu.
"Nós não somos assassinos, não faça esse tom de susto."
"Não é isso, é que... sei lá, continue".
"Bom, pedimos para ele parar. Ele não nos ouviu. Em uma das visitas da minha mãe em casa."
"Pera, visitas?"
"É como eu falo quando minha mãe vem me ver." Erva enrugou a testa. Bernardo percebeu. "Meus pais moram em Nova Iorque desde que eu era pequeno. Eles vêm para o Brasil poucas vezes no ano."
"Entendi. Você sempre morou sozinho, então?"
"Não necessariamente, mas sim. De qualquer forma, isso me fez bem. Amadureci mais rápido."
"Sei!" Erva disse irônica. Isso explica muita coisa.
"Enfim, eu vi minha mãe falando sobre demissão de uma empresa concorrente. Que ocorreu uma greve dos funcionários e eles demitiram quem começou com a greve."
"O que isso tem a ver com a história?"
"Calma. Bom, eu só tinha 10 anos, mas desde cedo aprendemos muitas coisas. Lembro que quando ouvi isso, questionei o que era para um professor particular de Finanças."
"10 anos e você tinha aula participar de Finanças?"
"Sim."
"Uau. Que louco!"
"Posso continuar?"
"Claro, desculpas."
"Você se surpreende muito fácil."
"Aaah tá, continua!"
"Bom, ele me explicou como um jogo de futebol, que era como o juíz fosse o CEO e estivesse expulsando do jogo quem estava causando problema para estabelecer a ordem. Então, eu conversei com os meninos e criamos a tarja. No início foi só para esse menino. Fizemos uma declaração de guerra para ele. Nós brigamos com ele, mas então algumas pessoas participaram porque também não gostavam dele. Ele então saiu da escola, porque as pessoas começaram a fazer coisas com ele. E ninguém mais gostava dele e deixava isso claro. E então, as pessoas começaram a usar isso e dizer "dar tarja" para quem elas não gostavam. Nós não queríamos que isso acontecesse de forma aleatório, então fomos colocando regras. Era algo que entretinha a escola e ninguém mexia com a gente. Quando mudamos para faculdade, as pessoas ansiavam para ver. Recebíamos mensagens, cartas, telefonemas... queriam saber quando a tarja ia começar. Então colocamos aqui também."
"Hum".
"Eu entendo que as vezes toma uma proporção desnecessária, mas precisamos manter o controle, respeito."
Erva estava surpresa com tudo que ouviu. "Entendi".
"Você não gosta, não é?"
"O que você acha?" Ela fez uma pergunta retórica. "Eu entendi sua posição, mas eu não concordo. Quantas pessoas devem ter sido expulsas e ali era a única chance delas, sabe? Quanta gente inocente. O que seu professor falou sobre a greve, a comparação com o jogo. E a justificativa de vocês para ter e manter a tarja." Erva suspirou. "É tudo tão inútil!"
"Eu vou acabar com a tarja." Bernardo disse e Erva olhou nos olhos dele, agora abertos a olhando também.
Ele então levantou uma mão e colocou uma mecha do cabelo dela que estava no rosto, atrás da orelha dela, enquanto falava: "Eu entendo agora o quanto a tarja pode machucar alguém e eu não quero mais isso. Não quero mais machucar você."
"Não é só por mim".
"Então por todos, não importa. Você me mostrou o quanto eu estava errado. Eu não quero mais errar contigo."
Os dois ficaram se olhando. Erva sentiu um quentinho dentro de si. Será que ele está dizendo a verdade? "Bom! Se a tarja está tirada é um bom passo para os F4 serem pessoas melhores!" Ela disse cortando o clima que achou estranho que estava se formando. Deu então um soquinho no braço de Bernardo. "Quem diria que o líder do F4 ficaria tão frágil com uma febre." Sorriu.
"Besta!" Bernardo disse tentando disfarçar um sorriso que brotou no rosto quando Erva lhe deu um soquinho.
"Tente dormir um pouco. Acho que teremos que passar a noite aqui. Melhor você descansar." Erva sugeriu.
"Você também, por favor."
Ela assentiu.
A noite foi longa para ambos. Primeiro, Erva tentou dormir sentada. Depois no chão encolhida na parede. Bernardo tentou apoiar a cabeça nas mãos e depois no braço. Por último, sonolentos e com frio, eles se aproximaram e dormiram próximos embaixo do casaco de Erva, com Bernardo com o braço esticado e a garota com a cabeça em cima dele.