Escrevendo para as estrelas

Era para ter sido somente mais um dia normal no Colégio Estadual Professor Augusto, mas tudo mudou naquele dia, começando pelo aluno novo: Carlos. Helena quando o viu sentiu seu coração acelerar, mas ele cometera o erro de sentar no lugar dela e ela nunca mudava de cadeira, então mesmo com o coração acelerado e sentindo -se com as emoções tomando conta de seu ser pediu-lhe que devolvesse seu lugar, ele para seu desagrado não a atendeu, ela quis brigar, como fazia com os outros colegas, mas se viu pegando suas coisas e afastando-se, pela primeira vez não queria brigar. A aula já ia começar e foi aí que aconteceu outra coisa, a coordenadora Marília entrou com uma jovem e avisou a turma do 1° Ano do Ensino Médio que Janaína seria a nova professora de português no lugar do Professor Patrício, todos ficaram pasmos, não sabiam o que teria acontecido com o professor, gostavam da sua aula, sabia ensinar redação como ninguém.

Marília disse apenas que o professor não iria voltar, os jovens acharam ruim não terem sido avisados antes, não houve tempo para despedida, começaram a conversar entre si, Janaína precisou elevar sua voz um pouco mais para ser ouvida, os alunos estavam agitados, menos Helena que sentou -se mais ao canto e deslocada preferiu ficar na sua. A jovem era introvertida, gostava de lidar consigo mesma, não fazia parte dos grupinhos, sentia-se excluída por isso, pedira sua mãe para mudar de escola mas não foi atendida, o colégio era próximo de sua casa e D. Marta não queria sua filha de 15 anos em locais desconhecidos, além disso em casa somente o pai, o Sr. Cássio, trabalhava, não tinham carro e a filha teria que ir de ônibus para outro bairro, nas redondezas onde moravam só havia o colégio onde ela estudava.

Carlos também não estava se sentindo confortável naquela nova sala, viera de um colégio particular, seus pais tinham acabado de se separar, ele passou a morar com o pai, a mãe foi morar em outro estado, ele só poderia vê-la nas férias e ninguém quis ouvir sua opinião sobre todas as mudanças na sua vida "um saco". O colégio para ele já servira de chateação também, primeiro dia de aula e tudo tão desorganizado, uma menina chega atrasada e ainda querendo o lugar que ele escolhera para si, depois entra uma Professora nova e ninguém a escuta, porque os demais alunos aparentemente desconhecem a palavra "respeito". Carlos pensava nessas coisas com expressão séria, com cara de poucos amigos, assustou até Janaína que querendo conhecer os alunos e começar sua aula começou a perguntar os nomes dos alunos.

Aos poucos a sala foi se organizando, Janaína com seu lindo sorriso e cabelos cacheados fez uma dinâmica para acalmar os ânimos dos adolescentes, pediu que sentassem em duplas, mais uma coisa diferente, Patrício não costumava pedir duplas, quase todos obedeceram, menos Helena e Paulo, Helena porque não tinha conversa com os colegas,costumava fazer tudo sozinha. Carlos porque era o novato e estava odiando estar ali. Janaína não teve dúvidas pediu que ambos sentassem juntos, Helena quis contradizer mas não queria criar problema com a professora, até porque sua matéria preferida era justamente português, antes que ela se deslocasse, Carlos veio até ela com sua mesa, organizou e sentou -se ao seu lado. A atividade era escrever uma carta, a professora pediu que se imaginassem como destinatário e remetente, as cartas deveriam ter sentido, a jovem sentou-se na sua mesa e pacientemente esperou pelos alunos, queria ver o nível de produção deles.

Helena não sabia o que escrever, não tinha inspiração, Carlos tampouco, estava chateado com a separação dos pais, por ele a carta se resumiria em uma linha e estava tudo resolvido. Helena por sua vez gostaria de escrever algo legal, mas não tinha ideia do que criar, não tinha uma amiga próxima, namorado também não. Carlos olhou para fora e resolveu ir beber água, pediu licença e se retirou. Lá fora o céu estava lindo, um azul claro, algumas nuvens, ele gostava de contemplar o céu, especialmente a noite quando havia estrelas, lembrando delas, pensou em uma específica que ele sempre via antes de dormir, ele não entendia de astrologia, só sabia que ela estava lá, as estrelas não magoavam seus filhos. Elas só brilhavam constantemente ali no céu, sem brigas, sem ferimentos. Quando voltou para a sala já tinha sua ideia, só esperava que a colega aceitasse, ele não tinha sido gentil com ela no início da manhã.

Helena era perfeccionista, apreciava detalhes e também gostava de ouvir quem estava ao seu lado, ficou admirada com a proposta, ela escreveria como se fosse a estrela que ele chamou Brilhante e ele seria ele mesmo. Cada um na sua cadeira, começaram a escrever. Quando os alunos terminaram de escrever as cartas, já estava no momento do intervalo, a professora pediu que entregassem os textos, assim fizeram e foram para o intervalo. Pensando no que fazer adiante Janaína começou a ler as cartas, viu queseus alunos estavam num bom caminho na escrita, alguns erros gramaticais, mas tratando-se de adolescentes em desenvolvimento e lidando com tantos conflitos emocionais era natural, foi lendo e observando até que pegou um texto que iniciava assim: "Querida estrela Brilhante, faz tempo que te observo no céu, tão bela, sempre constante, minhas noites amargas se tornam mais fáceis quando te contemplo, meus dias tem sido uma tortura, vi meus pais se separarem, brigarem mais do que cão e gato e se tornar dois completos desconhecidos..." A carta era um verdadeiro desabafo junto a uma admiração profunda pela natureza e as estrelas, a professora ficou preocupada com Carlos e Helena, a escrita mostrava coerência e até poesia, especialmente na resposta dada por Helena enquanto Estrela Brilhante, mas ao mesmo tempo demonstrava solidão, insegurança e tristeza.

Quando o intervalo terminou os alunos retornaram a sala, a professora deu os parabéns a todos, explicou alguns conceitos, perguntou sobre o que eles sabiam e o que recordavam, viu que alguns se abriram e responderam facilmente, menos Carlos que já de volta ao seu lugar esteve alheio, em seus pensamentos, Helena por sua vez tentava responder a todas as questões enquanto isso alguns colegas sentados no fundo da sala riam quando ela errava. A professora tentou falar com a sala de forma branda, mas eles não queriam obedecer, então chamou-lhes a atenção e mostrou-lhes que não havia espaço para o bullying nas suas aulas. A aula foi produtiva e assim que terminou o horário os alunos foram retirando-se, Janaína preocupada em falar com Carlos conseguiu chamá -lo antes que ele saísse, ele se mostrou confuso, mas atendeu a professora.

Carlos ficou temeroso, tentou não ser detalhista na carta que escrevera mas quando pensou na estrela que admirava todas as noites, seu coração foi abrindo-se e as palavras foram surgindo e ele escreveu a carta, Helena ter lido para responder já tinha sido um tanto invasivo para ele, agora tinha que conversar com a professora, "o que ela poderia querer dele? " Quando porém olhou nos olhos da professora encontrou confiança e assim ele respondeu as perguntas que ela fez, contou dos pais, contou que agora morava sozinho com seu pai, que saira de uma escola particular, contou até de Nathalia sua ex namorada, eles terminaram quando ele mais precisava de apoio. Ele sentia -se um erro, não sabia o que fazer, não queria culpar o pai pelo que estava acontecendo, sua mãe ligava raramente e ele sofria com toda essa situação. Janaína vendo a situação propôs que ele continuasse escrevendo para a estrela Brilhante, seria como um diário, o adolescente olhou para ela um tanto desnorteado com a proposta mas concluiu que seria bom se expressar de alguma forma, ele precisava lidar com tudo aquilo, seu pai pouco conversava com ele, demonstrava estar sofrendo também e Carlos não sabia como ajudar, então aceitou, ele poderia escrever a noite quando saía para observar Brilhante. Janaína elogiou sua escrita, afirmou que ele podia contar com ela e despediram-se. Carlos passou a ter o hábito de escrever para as estrelas, escondia as cartas numa caixa de sapato e colocava debaixo da cama.

Helena estava de volta ao seu lugar, Carlos não sentou-se mais no lugar dela, porém os dois não conversaram mais depois daquele dia, Janaína também conversou com Helena em outra aula, soube que ela já escrevia alguns versos, quis ler algum, Helena ficou em dúvida sobre mostrar ou não, algumas colegas da sala as vezes pegavam seu caderno e liam suas poesias em voz alta para a classe, ela contestava, não queria que fizessem isso, mas era uma constante, ela não conseguia impedir, como ela era romântica e cheia de sonhos porém sem ter nenhum namorado as outras meninas aproveitavam para zombar dela. Janaína conversou com a jovem, persistiu com carinho até que ela sentisse segurança em mostrar, a professora ficou emocionada quando leu as poesias de Helena. A professora queria ajudar a aluna e prometeu a si mesma que iria encontrar uma boa ideia para ajudar. Enquanto isso Helena continuava sozinha, já via que Carlos começava a se enturmar, ela ficava feliz por ele, não era má pessoa,gostara de fazer dupla com ele naquele dia no final das contas, gostara de ler sua carta e compartilhar com ele algo tão especial, mas ficara nisso, ela não era boa em manter amizades.

Carlos precisava arrumar um trabalho, queria ajudar o pai, com as despesas de casa, continuava escrevendo, já se sentia mais confortável, até sua mãe tinha ligado uns dias atrás e ele ficou feliz em saber que ela estava bem. Após procurar por alguns dias viu um anúncio de uma lanchonete que precisava de um atendente, ele foi atrás e para sua alegria conseguiu o emprego, com umlargo sorriso e prontidão ele conquistava os clientes com facilidade, estava feliz trabalhando lá, seu humor melhorara, estava no caminho certo, tinha certeza disso. Numa determinada noite enquanto trabalhava viu duas moças chegarem e sentarem-se nas cadeiras, ele foi atendê-las e reconheceu Helena, cumprimentou-a gentilmente. Helena tinha ido com sua prima Ângela lanchar, após muita insistência da prima, os pais não queriam que Helena saísse mas Ângela que era mais velha do que Helena, insistira veementemente, D. Marta e seu Cássio deixaram elas irem, ainda era cedo da noite, assim elas foram e coincidentemente encontraram Carlos ali trabalhando, Helena sentiu uma pontada no peito e quando ele pegou em sua mão para a cumprimentar, ela sentiu algo diferente.

Carlos já estava encerrando seu expediente, quando viu que as duas jovens estavam indo embora, elas lancharam e ele viu que estavam sozinhas, ficou preocupado e resolveu ficar por perto, elas caminhavam na frente e ele foi mais atrás porque precisava fechar o caixa, mas assim que saiu as viu não muito longe e foi acompanhando-as. Ele estava com sua bicicleta e quando elas seguiram reto e passaram por uma casa onde havia arbustos, ele viu um vulto se erguendo e correndoem direção às duas moças, seu coração disparou, rápido montou na bicicleta e alcançou as duas jovens, o vulto era um homem e este tentava puxar a bolsa de Helena, a ameaçava e dizia que iria matar a ela e sua colega, Carlos não era muito alto, tinha uma natureza tranquila e não gostava de briga, mas diante da situação ele se colocou prontamente na frente de Helena, surpreendendo o bandido, Carlos empurrou-o ele caiu, alarmado e com medo de ser preso, saiu correndo sem levar nada. Ângela ficou sem palavras, Helena não sabia se chorava ou agradecia Carlos, ele levado pela emoção de vê-la bem, abraçou-a e e continuaram a andar, agora juntos, o jovem as acompanhou até em casa, deixou-as e foi para sua casa.

Naquela noite a sua carta para as estrelas, em especial a Brilhante, tinha o nome de Helena escrito nela. Algo mudara nele, queria proteger e ajudar a garota que ele via sempre andando rápido pelos corredores, sempre sozinha, sempre na dela. No dia seguintejá na escola Janaína anunciou um concurso de poesias, já tinha apresentado o gênero, levara alguns exemplares de Castro Alves, Cora Coralina e Cecilia Meireles e sabia da capacidade dos seus alunos, o a poesia escolhida seria lida para toda a escola, a professora planejava alguns prêmios e especialmente que seus alunos aprendessem a valorizar o que produziam. Queria que eles tivessem segurança e reconhecimento, acreditava que Helena ganharia, esperava que esse concurso ajudasse a jovem que não tinha amigos e estava sempre sozinha. Na hora do intervalo Carlos viu Helena sozinha, ela estava andando bem pensativa e ele aproveitou a ocasião para brincar, disse "Helena" nome em voz alta, a moça quase morreu de susto, ao ver Carlos rindo quis dar-lhe uns tapas, zangada mas percebendo que era brincadeira só restou-lhe entrar no jogo e rir também, depois ironicamente pediu--lhe que a avisasse antes quando ele fosse querer matá-la de susto, ele sorriu e perguntou se ela estava bem, ela estava agradecida, sentaram-se num dos bancos do pátio, conversaram sobre a lanchonete, o bandido, ele a fez prometer que iria tomarmais cuidado da próxima vez, o sinal já estava perto de tocar e ele não querendo perder a oportunidade, disse-lhe que tinha certeza de que ela ganharia o concurso.

Alguns meses depois, todos os alunos do Colégio estavam reunidos no pátio, os professores, as coordenadoras e o diretor estavam ao centro e iam anunciar os vencedores, insegura Helena ficou mais escondida, Carlos viu onde ela estava e ficou próximo. Janaína dividiu os vencedores em 1°, 2° e 3° lugar, quando ela anunciou o nome de Flávio, todos ficaram procurando pelo aluno, ele era pouco conhecido, sua timidez o escondia, morria de vergonha, nunca perguntava nada nas aulas, sempre tirou excelentes notas, era muito inteligente e compreensivo, naquele momento quando ouviu seu nome o adolescente queria fugir, travou no lugar, logo viram que Ele estava presente, mas ele não queria ir lá na frente, estava com vergonha e medo de que fossem dele, Helena entendia a situação do colega, nesse momento com empatia aproximou-se dele e disse que ele merecia ir lá na frente receber os aplausos, "você é capaz, não precisa ter medo, nós vamos ficar aqui torcendo por você!" Flávio olhou um pouco ao redor, todos começaram a aplaudir, o garoto usava óculos e as lentes disfarçaram as grossas lágrimas que desciam, aplaudido até chegar onde as professoras estavam, ele nem sabia o que dizer, ganhou um ingresso para assistir o filme "Minions 2" , uma medalha, e uma agenda, ele ficou muito emocionado, quando começou a ler sua poesia a pedido da professora Janaína, não sabia para onde olhar, mas lembrou das palavras encorajodoras de Helena, sentiu um arrepio de pura emoção e leu, os colegas ficaram impressionados, ele era muito bom. Era a vez do segundo colocado, quando Carlos ouviu seu nome anunciado ficou surpreso, não esperava por isso, tinha 30 alunos na sala e ele já vira que nessas últimas semanas de aula que seus colegas eram bem preparados, feliz, seguiu sorrindo em direção aos professores, sua poesia tinha sido uma declaração de amor, ele não esperava que fosse escrever assim, mas quando começou a escrever lembrou de Helena e do quanto ela estava em sua mente nos últimos dias, ainda não eram tão próximos, mas ele sempre a cumprimentava quando ela chegava, nos intervalos quando se encontravam ele perguntava-lhe como ela estava, conversavam um pouco, ela gostava muito de ir pra biblioteca, ele acabava aparecendo lá de vez em quando, nesses momentos fazia questão de chamar a atenção da jovem, brincava, provocava, até que ela ameaçava atirar-lhe um livro, ele sofria e continuava por ali. Quando Carlos começou a ler sua poesia Helena ficou emocionada, ele terminou de ler e pedindo licença para uma sorridente Janaína, perguntou se a a aluna Helena Ferreira aceitava ser sua estrela, lá no seu lugar a jovem até perdeu o fôlego, jamais esperava por isso, os colegas ajudaram na torcida, abriram caminho para ela, que com as pernas bambas mal podia caminhar, Carlos desceu de onde estava e a pediu em namoro, ela não sabia o que responder, mas seu coração gritava sim e ela ouviu-o sem mais demoras. Carlos queria beijar a moça, mas conteve-se ainda faltava o 1° lugar, Janaína entregou para Carlos uma medalha e uma bela mochila. Ainda faltava o 1° colocado e com muita alegria Janaína leu o nome de Helena, essa por sua vez ficou tão emocionada que quase caiu no chão, eram muitas surpresas para um dia só, amparada por Carlos ela veio até os professores, Janaína a abraçou, disse que ela tinha grande potencial, apresentou-lhe à Patrícia que era sócia de uma editora, ela viera a pedido de Janaína, os três alunos iam ter seus escritos publicados em uma coletânea de poesias. Helena ganhou uma medalha, um bouquet de flores rosas e um livro que ela queria muito ler e ainda dois ingressos para o o Teatro Municipal que estava apresentando um musical do Rei Leão onde os atores tinham síndrome de Down e eram Autistas. Helena leu sua poesia Aquarela do Amor e dedicou-a a Carlos, Helena também gostava de pintar.

Daquele dia em diante Helena e Carlos passaram a lidar melhor com seus receios, Flávio estava mais aberto, sua timidez já não o impedia tanto de estar com os colegas e o bullying estava sendo enfrentado de frente, agora o Colégio sabia quanto potencial tinham seusalunos e isso era incrível. Tudo mudou e Helena acabou amando essas mudanças. Ter um namorado que a amava e um livro com uma de suas poesias a fez muito feliz.

Fim.

Rita Flor
Enviado por Rita Flor em 13/07/2022
Reeditado em 13/07/2022
Código do texto: T7558799
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