Cinderela interiorana
Cinderela interiorana
maria da graça almeida
Sentada na varanda, eu olhava a rua com os olhos murchos do cotidiano.O tempo era sempre igual; os dias também. E bem naquela tarde soprava uma brisa atrevida e quente que me desalinhava os cabelos finos e compridos.
Sentia que de repente algo ali poderia acontecer. E para efetivar meu pressentimento,
ouvi um carro que se aproximava lentamente.
Naquela hora, aquilo era novidade. Em minha pequena Pindorama, quando o corpo mais se ressentia do intenso calor, havia uma parada total. Todos se recolhiam.
Vislumbrei o colorido do carro que se aproximava. Enquanto, feito suspiro de adolescente, o motor emudecia, eu olhava curiosa para a rua.
Descalços, mantinha os pés sobre o piso frio, que sempre me proporcionava um refrescante alívio. Sobre o colo, acomodava uma caixa de madeira que continha um velho conjunto de fichas desbotadas, testemunhas das longas noitadas de jogo, quando apenas perdíamos horas de sono. Fora de meu pai, seria do meu marido. Achava graça na promessa e mais ainda na herança. De qualquer forma, dela cuidava com carinho. Sabia que ainda serviria para alguma coisa. E tal certeza não demorou a ser confirmada.
No rosto, eu carregava uma costumeira e pesada máscara de Minâncora, hábito que adquiri ao imitar minha irmã mais velha que vivia besuntada. Sua figura sempre me impressionara e talvez eu atribuísse sua beleza aos benefícios do creme.
Naquele dia -como sempre me deixava estar- vestia um penhoar, que, por conta de meu descuido e desmazelo juvenis, já perdera todos os botões.
Eu vivia -para o esbravejo de minha mãe- com ele transpassado e seguro pelos braços.
-Você ainda vai passar um carão com essa roupa -era minha mãe advertindo-me-.
Dito e feito!
O príncipe do baile da noite anterior, lindo, olhos de um azul atrevido, covinhas nas bochechas, surpreendentemente, encontrara-me, mesmo sem que eu tivesse perdido um pé dos sapatinhos usados para dançar com ele até às quatro da manhã.
Na verdade, estranhei que me tivesse localizado, se nem ao menos eu lhe dissera meu nome. E, feito uma empreitada fantástica, ali estava ele. Eu não sabia como me comportar. Tive ímpetos de fugir para que não me visse à borralheira, mas parecia que eu grudara na cadeira. Meu coração batia desordenadamente.
Ele conhecera-me no baile, no auge da vaidade e naquela hora deparava-se comigo com aquela aparência...
Esperei gelada, que se aproximasse. Ansiava por um milagre ou que o chão tragasse-me, bem naquele momento.
-Oi -disse-me ele com sorriso de piano novo, afundando as covinhas-.
-Oi -respondi num fiapo de voz, sem me levantar. Não poderia fazê-lo...ainda que o fichário ajudasse-me a manter o penhoar fechado-.
-É aqui que mora a Maria da Graça?
- É sim, mas ela saiu e vai demorar -apressei-me a responder, virando o rosto de lado-.
Ainda sorrindo, o rapaz, gentil, disse-me:
-Ah! Está bem, mas diga-lhe que à noite voltarei...Obrigado.
Nada lhe respondi. Sentia-me como se tivesse um ovo a obstruir-me a garganta.
Ele se foi. Na varanda eu permaneci por um tempo, paralisada. E inconformada.
À noite, para minha surpresa e meu alívio, cumprindo o prometido, o príncipe retornou e eu nunca lhe indaguei como me encontrara, tampouco lhe perguntei se naquela tarde, realmente, acreditara falar com outra pessoa que não eu mesma.
No entanto, depois de conhecê-lo melhor e perceber a delicadeza de seus sentimentos, passei a crer que naquele dia ele apenas tentou poupar-me de um constrangimento maior.
Há pessoas assim, encantadoramente empáticas e realmente preocupadas com os pudores alheios.