Capítulo 27 – Não consigo me lembrar de te esquecer – Parte III
A primeira semana com Ander fora extremamente difícil. Além da teimosia, a perda de memória também trouxe a ele um tipo de desprezo por Lana que médico algum sabia explicar. Como não lembrava dela e nem de sua vida em São Paulo, naturalmente também não se lembrava de Dinorá. Logo na sua chegada a gata se enrolou nas pernas dele, que tentou de toda forma afastá-la, mas a felina era persistente.
- Eu não gosto de gatos. – Revelou, fazendo cara de nojo para o animal peludo que não desgrudava de sua perna esquerda.
“Ah, é claro que não gosta.” – Lana pensou, revirando os olhos discretamente.
- Dinorá! – Lana chamou a atenção dela. – Pss! Pss! Vem aqui, amor. – A gata foi para seus braços. – Ela é sua, mas mora um pouco comigo e um pouco com você.
- Pode ficar para você. Como disse, não gosto de gatos. – E voltou para o seu quarto batendo a porta. Ainda sentia raiva por ter sido obrigada por sua família a morar com Lana.
- É, Dino, ele está insuportável, eu sei. – Lana murmurou, respondendo aos miados da felina. – Mas sei que vai lembrar de nós.
A primeira briga aconteceu quando Ander implicou com a comida de Lana. Ela se esforçava para fazer tudo da forma que ele gostava, mas todos seus esforços eram em vão. Nada o agradava.
- Olha, Laura... – De costas para ele, Lana desligou a boca do fogão e respirou fundo. Tinha terminado o jantar. – Sua comida está meio sem sal. Eu perdi a memória, mas minha pressão está boa.
Abruptamente, Lana se aproximou dele, sentado a mesa. Ander sustentou o olhar dela. Com raiva, as íris verdes faiscavam.
Curiosamente, ele gostava de ver daquilo.
- Você é... – Ela tentava falar, mas tinha medo de despejar tudo nele a acabar chorando ou pior, o agredindo. – Você...
- Eu...?
- Você é INSUPORTÁVEL! – Gritou, jogando o pano de prato na cara dele antes de ir para a sala. Ander a seguiu. – Insuportável, turrão, birrento, infantil... UM MALA!
Lana se sentou no sofá, trêmula de raiva. Tinha prometido a si mesma que teria paciência, mas a nova personalidade de Ander fazia de tudo para irritá-la.
- Ah, eu sou? E olha só, Laura, que coisa.... – A voz dos dois começava a se elevar. – NÃO ME IMPORTO COM O QUE VOCÊ ACHA!
Ela o puxou pela camiseta preta, mas sem calcular a força, o rapaz caiu por cima dela.
- Eu vou ter que repetir quantas vezes que meu nome não é Laura, seu desmemoriado imbecil?
- LAURA, LAURA, LAURA, LAURA! – Exclamou, rindo cheio de provocação.
No momento em que Lana ia revidar, a campainha do apartamento tocou. Ander saiu de cima dela e foi atender a porta.
- Boa noite! – Era o responsável pela portaria. – Recebemos uma reclamação sobre a briga no apartamento de vocês.
Lana correu desesperada e encostou-se ao lado de Ander, o abraçando numa encenação afetuosa.
- Desculpa, seu Mario Jorge! Sabe como é né? Casal as vezes tem essas briguinhas. – Ela deu um selinho em Ander e recebeu um olhar confuso como resposta.
- Eu entendo dona Lana, mas preciso que respeitem as regras.
- Certo, já estamos bem. – Ander agora a julgava com os olhos. – Boa noite e desculpa! - Ela puxou o rapaz para dentro e fechou a porta. – O que é?
- Não somos um casal.
- Eu sei, mas para ele nós somos.
- Você mentiu.
- E você vai fazer o que? – Perguntou Lana, o desafiando.
- Avisar na portaria que você é mentirosa e eu não gosto de você, nem dessa gata ou desse apartamento. – Ele deu dois passos em direção porta, mas novamente Lana o puxou pela camiseta, rasgando bem no meio das costas. Era possível ver os músculos bem definidos. – OLHA O QUE VOCÊ FEZ, MALUCA! QUAL É O TEU PROBLEMA?
Ander avançou contra Lana no sofá. Ela tentou calá-lo, para evitar uma nova visita do porteiro, mas ele empurrou sua mão com agressividade. Os dois começaram uma engenhosa briga no sofá, resultando em Ander rasgando a regata de Lana. A visão dela de sutiã o travou de imediato. Ela não notou o que acontecia, por isso, aproveitou para dar um tapa no rosto dele. Ander a empurrou no sofá e se levantou, tomando caminho até o quarto que lhe fora cedido. Naquela noite, sonhou com Lana e acordou de mau humor. Não saiu do quarto e a evitou o dia inteiro.
Lana conseguiu uma licença do trabalho por duas semanas para ajudar Ander, mas não vinha sendo fácil graças ao desprezo que era tratada. A cada discussão, ele berrava como uma criança birrenta que não queria sua ajuda e sim voltar para o Rio de Janeiro. Numa madrugada, exausta de toda a situação, Lana sentou no sofá e entregou-se as lágrimas. Abafando o som no travesseiro para não acordar o outro morador, chorou tanto que a dor emocional atingiu o físico como uma flechada e dormiu por ali mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, Ander puxou assunto com Lana. Vestia camiseta branca, jaqueta e calça jeans. Ela queria perguntar para onde ele ia, mas optou pelo silêncio.
- Quero te pedir uma coisa. – Ele disse, colocando café em uma caneca. Lana apenas o olhou. – Eu ouvi você chorando de madrugada. Sei que tentou abafar suas lágrimas com o travesseiro, mas foi possível ouvir você. - Um nó se formou na garganta de Lana. Ela colocou o pão que comia no prato. Aquela conversa a faria perder o apetite. - Não quero que você chore. Quando você chora, sinto uma coisa estranha no peito e isso me incomoda... Não dormi bem depois disso. – Ele se encostou na pia, a encarando sem qualquer piedade. – Espero não estar pedindo muito. Vou dar uma saída, volto a noite. Não precisa se preocupar comigo, mamãe.
Ander colocou a caneca na pia e saiu, em silêncio. Lana repetiu mentalmente “não chore, não chore, não chore”, mas gordas lágrimas já desciam por suas bochechas. Terminou seu café da manhã à força.
Parecendo sentir o que acontecia, Alexia ligou para Lana.
“Bom dia!”
- Dia, Lexi.
“Pela sua voz, as coisas estão difíceis, não?
- Muito, muito difíceis. Me parece um pesadelo que não vou acordar tão cedo. Seu primo está com a mesma personalidade que tinha aos 16 anos.
“Não tinha parado para pensar, mas realmente lembra muito.” – Ela deu uma risadinha. – “Eu gostaria de vir com boas notícias, mas preciso te contar uma coisa, e sei que isso vai causar mais brigas entre vocês.”
- O que é?
“Ander está saindo com a Gabriela. Aquela do trabalho dele, sabe? Me parece que ela soube do acidente quando liguei para a empresa e agora está se aproximando dele.”
- Ela deve saber que ele não lembra de mim.
“Sim. Amiga, essa semana te ligo por chamada de vídeo. Preciso te contar uma coisa.”
- Tudo bem, Lexi. Fico aguardando.
“Ei, Lana. Tenha paciência amiga. Nesses momentos, lembre-se do quanto vocês se amam.”
- É isso que me mantém firme. Obrigada, Lexi. Quando ele chegar, te aviso.
Lana aproveitou que estava sozinha e adiantou algumas coisas do trabalho. No final da noite, recebeu uma ligação da portaria.
“Dona Lana? Estou colocando o Ander no elevador. Uma moça o deixou aqui na portaria, e com o perdão pelas palavras, o rapaz está podre de bêbado.”
- Obrigada, seu Mario Jorge.
Correu até a porta do elevador e cerca de 2 minutos depois, o elevador estacionou no andar. A porta se abriu e com ela, um alegre e bêbado Ander a abraçou, dando um cheiro em seu pescoço.
- OI, LAURA!
- Você é idiota? – Perguntou Lana, o empurrando, bastante brava. – Você saiu do hospital não faz um mês. Seu médico disse que você não pode beber, Ander! – Os dois entraram no apartamento dela. Deitada no sofá, Dinorá observava Lana levar Ander até o banheiro.
- Olha a gata Mariah. Oi Mariah! – Dinorá miou para o dono. – Miau!
- É Dinorá.
- Nossa, você é muito chata, sabia? – Ele apertou o nariz de Lana. – Chata demais. Parece a professora do Charlie Brown, toda hora fica “blo, blo, blo, blo, bloblobloblo.”
Lana deu um tapa na mão dele, mas achou incrível que se lembrasse de um desenho e não dela.
- Você não pode beber.
- Foram só algumas cervejas. – Lana o sentou no banco de madeira do banheiro. – Eu estou bem, mamãe. – Ele a abraçou pelas pernas.
- Você vai tomar banho!
- Chata! Por isso não gosto de ficar com você aqui.
- É, você está certo, sua amiga Gabriela é mais legal e divertida, tanto que o largou bêbado na portaria do prédio.
- Como sabe dela? – Perguntou, inocentemente.
- Um passarinho verde me contou. – Respondeu, tirando a camiseta dele.
- Olha só, passarinho verde é coisa de gente que fuma a perigosa erva...
Ander tentou tirar sua calça, mas tropeçou e só não caiu graças a Lana.
- Bom reflexo, Laura! - Lana revirou os olhos e o jogou apenas de cueca debaixo do chuveiro com água fria. – A ÁGUA TÁ FRIA!
- É essa a intenção.
- Você vai ficar aí me olhando? – Perguntou Ander, notando que Lana não saíra do banheiro. – Eu sei que sou gostoso e você é apaixonada por mim, mas isso é meio bizarro, não?
Ela bufou e saiu batendo a porta. Ao fundo, era possível ouvir Ander dando risada de sua reação.
- Só pode ser castigo esse tipo de coisa. – O celular de Ander tocando na mesa de centro da sala chamou a atenção dela. Ela puxou o aparelho e viu que a ligação era de Gabriela.
“Amor, desculpa não ter subido com você. Como você está?”
- Ele está debaixo do chuveiro, Gabriela. Podre de bêbado.
“O que você está fazendo com o celular do Ander?”
- Infelizmente atendendo a sua ligação. O que você está fazendo é desprezível, sabe disso, não é?
“E o que estou fazendo, Lana? Ele gosta de estar comigo e eu com ele, diferente de você que já o ouvi dizer que lhe causa arrepios.”
- Ele perdeu a memória e você está se aproveitando disso, é baixo.
“Cada uma luta com as armas que tem, Lana. E se prepare, dessa vez vou até o fim.”
Sem reação, Lana olhou a tela do celular com a ligação encerrada por Gabriela. Ela se levantou e voltou ao banheiro. Ao abrir a porta, encontrou Ander sentado no banco de madeira.
- Oi, Laura. Já com saudades? – Lana tirou uma toalha do armário do banheiro. – Ah, eu queria ficar mais um pouco.
- Já está bom de banho.
Lana o ajudou se enrolar na toalha e juntos, foram para o quarto dela.
- Laura... – Ela o vestia com um conjunto moletom.
- O que é? – De repente, sentiu Ander a abraçando, totalmente sem jeito. – Ander, o que está fazendo?
- Não sei.
“Ele gosta de estar comigo e eu com ele, diferente de você que já o ouvi dizer que lhe causa arrepios.”
Seu coração disparou ao lembrar das palavras de Gabriela. Tentou lembrar a si mesma que não era o Ander que ela conhecia, amava e vivera tantas histórias, mas não soube como bloquear o sentimento de mágoa. Ele levantou a cabeça, a olhando com certa curiosidade.
- Dorme comigo? – Perguntou, espontaneamente. Lana franziu o cenho. – Só até eu dormir. Estou meio bêbado ainda.
Ander se deitou primeiro, puxando as cobertas da cama até a altura do pescoço. Ele deu um sorriso travesso para Lana que involuntariamente sorriu também.
- Pronto. – Murmurou, receosa, enquanto deitava-se ao lado dele.
- Assim não. – Ele jogou a coberta dele por cima dela. – Agora sim. O que foi? – Como ela não entendeu a pergunta, continuou. – Você ficou estranha depois que me deixou lá no banheiro.
Ele se deitou na barriga dela, sentindo a maciez da pele feminina chamar sua atenção. Lana passou a mão no rosto dele, o acariciando suavemente. Aos poucos, Ander começava a ficar sonolento.
- Estou normal. – Respondeu, depois de um longo tempo. – Apenas um pouco preocupada com você.
- Uhum... Estou bem, não se preocupe!
Lana se deitou por completo e Ander se aninhou nos braços dela, sem forças para continuar a conversa.
Pela manhã, Ander acordou com o corpo de Lana entrelaçado ao dele. Aquela situação não era estranha, mas não conseguia ter uma lembrança nítida, o que o irritava. Ele afastou os cabelos femininos do rosto e deitou Lana de lado. Ander sentiu o cheiro dela em sua camiseta.
- Ander... – Lana gemeu, sonolenta. Estava sonhando profundamente. – Não, Ander...
Ele saiu do quarto, perturbado com a visão de Lana o chamando. Foi até a sala, em busca de seu celular.
- Estranho... – Pegou o celular da mesa e olhou o visor. Na janela de notificação tinha uma ligação de Gabriela. – Pelo horário, eu tomava banho, sendo assim... – Ele olhou em direção ao quarto de Lana. – Ela atendeu a ligação e não me avisou.
Colocou o celular no bolso e seguiu em direção a cozinha. Alguns minutos depois, ouviu Lana se levantar e ir para o banheiro.
- Bom dia. – Quando Lana entrou na cozinha, Ander a olhou fixamente. Ela vestia uma camiseta do Corinthians e um short curto, evidenciando suas curvas bem definidas. – Tudo bem?
- Sim. – Lana amarrou o cabelo em um coque frouxo. – Tudo bem. Pode me dizer com que direito atendeu uma ligação da Gabriela no meu celular e não me avisou?
- Você estava bêbado e eu ia te contar hoje, Ander. – Respondeu, dando de ombros. – Desculpe.
- O que ela disse?
- Perguntou de você. – Lana abriu o armário e tirou um prato. – Foi uma conversa curta.
- Não atenda mais o meu celular.
- Se você não estivesse podre de bêbado não seria preciso. – Ela tirou um iogurte da geladeira. Nesse momento, Ander fechou a porta com agressividade. – Aliás, se você se comportasse como um adulto não seria necessário me ter por perto.
- Eu estou aqui porque minha tia e minha prima me obrigaram, não preciso de você e nem da sua ajuda. – Lana se forçou a não deixar a frase de Gabriela perturbá-la, mas, de repente, nem ouvia mais o que Ander falava. Teve uma hora que a mão dele a puxou pelo pescoço e a distância entre os dois era mínima. – (...) Você está me ouvindo?
- Sim, ouvi. – Ela segurou a mão dele, guiando até a sua cintura. Ander a puxou para seus braços. As pernas de Lana enfraqueceram com o impacto do encontro. – Não vou mais... – Não conseguia completar a frase. Ander, num ímpeto de curiosidade e desejo, quase selou seus lábios aos de Lana, mas fora brecado pelo toque de seu celular. Era Gabriela.
- Oi, Gabi... – Ela se afastou de Lana, indo em direção ao quarto e fechando a porta.
Lana tentou se recompor, mas precisou de alguns minutos para conseguir andar. Não sabia o que aquele quase beijo significava, mas tentou não pensar num significado. Um tempo depois, Ander completamente arrumado saiu do apartamento em silêncio. "A julgar pela forma que ele saiu, nada significou." - Pensou Lana, olhando para a porta, desolada.