O FIM DO HOMEM
Chego ao hospital, com meu copo térmico onde levo café todos os dias, para meu plantão. Meu jaleco branco contrasta com as paredes cinza. O ar tem um zunido atípico como nos dias que o tempo prenuncia uma tempestade. Ando pelo corredor em direção aos fundos, perpassando pelos alambrados desinfetados e pelas salas de cirurgia esterilizadas. O cheiro de sopa sobe da cozinha, localizada no andar de baixo.
Dobro o corredor à direita, mais alguns passos à frente, e me vejo na ala dos leitos pós-operatórios. Não vejo nenhum leito ocupado e o único resquício de ser humano nessa parte é a enfermeira que eu cumprimento com um aceno de cabeça, apenas automaticamente já que ela não me vê passar. Deve estar se automedicando na veia e não nota que eu transito por ali. Ademais, está acostumada comigo caminhando por aqui essa hora da madrugada, então não demonstra estranhamento.
Caminho mais alguns metros em direção à minha oficina, ao meu posto de serviço. Há anos trabalho nessa ala. Alguém pacientemente está a minha espera, não se sabe a quanto tempo. Entrei para o time do hospital desde que conclui a faculdade, um período conturbado na minha vida. Revoltas familiares, separação dos pais, falecimento do meu irmão. O clima era pesado na época. Hoje meus pais já estão em outra. Faleceram quase simultaneamente há dois anos.
Não é um estigma tratar da morte deles, eu me sinto confortável em partilhar com quem quer que seja. Meu pai era cardíaco, depois de beber todas e comer muita carne vermelha num domingo de churrasco com a nova família que ele tinha, teve um enfarte. Resistiu, foi atendido pelo Samu se sentindo bem. Foi liberado. A caminho de casa teve um AVC seguido de enfarte e aí faleceu. Meu meio-irmão que tinha buscado ele na observação, só notou que ele havia falecido quando viu que ele não tinha descido do carro quando chegaram a casa. Tapado.
Minha mãe, que estava em tratamento de câncer há quase seis anos, descobriu que tinha desenvolvido esclerose lateral amiotrófica. Enforcou-se um dia antes da missa de sétimo dia do ex-marido. Só ficamos sabendo da doença quando fomos revistar as coisas dela e encontramos o exame.
O rapaz a minha espera tem os cabelos penteados de uma forma simétrica para a direita, com gel, nariz adunco, sobrancelhas bagunçadas, barba por fazer e uma pele pálida, quase amarela, talvez por conta de alguma inflamação no fígado ou por ter rompido a vesícula. Tentarei descobrir.
Sou um perito do IML, abro corpos em busca da causa mortis. Esse menino não tem escoriações aparentes. Calço as luvas cirúrgicas. Dou uma bicada no café. O cheiro de formol que sorrateiramente deixa as gavetas onde jazem outros corpos, alguns não identificados, irrita os meus olhos. Com o tempo você aprende amar esse cheiro. Cheiro de morte.
Descubro o corpo, realocando o lençol para a outra mesa metálica, paralela a essa. É um jovem saudável. Sem hematomas, nem coágulos na pele. Quando os cadáveres têm, meu serviço torna-se mais fácil. Mesmo assim, mãos à obra. Pego a bandeja de instrumentos esterilizados, posiciono-a, pego de cima dela o bisturi. Faço a primeira incisão, do umbigo até o início do externo. Gosto de fazer outras duas, para facilitar o manuseio. Da esquerda para a direita ligando a costela esquerda à direita. Mais para baixo a outra, equidistante com a primeira.
Os órgãos internos estão intocados. Alguém realmente quer dificultar minha madrugada. Sorrio para o vazio morto na minha frente. Pego a serra. Abro cuidadosamente o peito dele, para não danificar os órgãos que são protegidos pelas costelas. A serra abre o osso com facilidade. Deficiência de cálcio, comum para a geração Coca-Cola.
O coração está diferente. Aparentemente, se você não tem quinze anos de experiência como eu, diria que está tudo nos conformes. Mas eu sei que não. Algo me soa estranho. Talvez, alguma forma de envenenamento. A artéria cava está azulada. Isso não é bom. Parece que ele passou por algumas cirurgias aqui nessa região. É como se a carne tivesse remendos. Estranho, de fato.
Corto as ligações para examinar melhor a peça. Desprendo puxando um pouco, os pulmões dele provavelmente arfavam quando morreu, agora estão retesados, como se não tivessem tido tempo de soltar todo o ar que continham. Olho o coração contra a luz, examino-o e encontro a causa. Só para confirmar, volto até o corpo, pego o bisturi na bandeja e faço uma nova incisão, dessa vez no estomago estufado. Várias mariposas decolam de lá.
Confirmo de vez: morreu de amor.