A Arca de Zândrus - Vol. 1 - O Guardião - Capítulo 4

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Capítulo 4

SAINDO DE CASA

Vagarosamente, Kalena abriu seus olhos. Estava deitada em uma cama, coberta com muitos lençóis. A pouca luz que entrava pela fresta de uma janela à sua direita revelava um ambiente pequeno, simples, com um pequeno armário no canto de uma parede, único móvel, além da cama onde estava deitada.

Em outra parede estava a porta. Nesse instante, alguém a abriu e adentrou o recinto. Com a pouca luz, a princesa não pôde observar os detalhes, mas pelos contornos percebeu que se tratava de um homem, o qual aproximou-se.

– Parece que o antídoto funcionou.

Kalena, com a visão ainda meio turva, confirmou sua suspeita de que era um homem ao ouvir aquela voz grave e firme.

– Onde estou? – perguntou, com a voz ainda um pouco cansada.

– Está a salvo, agora. Aqueles cerones te feriram um pouco, mas agora você está bem.

– Quem... quem é você?

– Meu nome é Valmiro. Você ainda precisa descansar um pouco.

– Onde estão os outros? Tóro! Preciso ajudar Tóro! – falou, levantando-se da cama.

– Tóro é o que foi duramente atacado pelos cerones?

– Ele mesmo! Onde ele está? Preciso ajudá-lo antes que seja tarde!

– Calma. Calma... Ele está bem. Já demos o antídoto para ele. Ainda está dormindo, mas está bem.

Kalena olhava ao seu redor, angustiada.

– E os outros?

– Já acordaram. Tiveram de descansar um pouco, mas também estão bem. Só com você e com esse Tóro que tivemos de ter uma atenção maior.

A dilamésia agora olhava fixamente para aquele homem.

– Estou na cabana de Volano?

– Sim, está. Ele é meu pai. Ele está lá na sala agora, com os outros.

Kalena saiu do quarto rapidamente, mas logo voltou à porta.

– Desculpe... obrigada. – agradeceu, abaixando a cabeça e retirando-se.

De onde estava até a sala foram poucos passos. Nesse outro recinto, encontrou os companheiros de viagem sentados em bancos de madeira, usando grossas cobertas, tomando algo quente em xícaras de barro. Em outro banco, também sentado e tomando a mesma bebida, estava um idoso de pele negra, com cabelos brancos e curtos, barba alongada e também branca, olhos negros, da mesma altura de Cogles, usando vestes simples. Dava gargalhadas, mas parou ao perceber a presença da jovem bruxa.

– Então... esta é a princesa Kalena. Que bom que está bem. – disse, levantando-se do banco e indo de encontro a dilamésia, segurando-lhe a mão e beijando-a. Sua voz era calma, mas segura.

– Estou um tanto desconcertada... não lembro de muita coisa...

– Devo-lhe mil perdões, princesa, pelo que ocorreu.

– Não deve nada, Volano. Você nos salvou! – interferiu Meliel.

– Salvou? – perguntou Kalena.

– Meu filho tem treinado por conta própria um tipo de feitiço, o que lhe dá visão de águia. Ainda é prematuro nessa magia, mas ele conseguiu ver, ao longe, que um grupo de pessoas se aproximava de nossa cabana. Como achou muito esquisito o fato de humanos atravessarem a Floresta Petrificada naquela hora da madrugada, resolveu me tirar de um profundo, delicioso e merecido sono. Fui até o local onde ele disse que tinha visto o grupo e aí encontrei vocês sendo atacados por milhares de cerones. Eu ainda não tinha conseguido identificar Meliel entre vocês... estava um pouco escuro...

– Então foi você quem provocou todo aquele vento, toda aquela neve...

– Sim. Nessa época do ano, que a temperatura começa a esfriar, é muito raro vermos cerones por aqui, mas parece que o calor do corpo de vocês os atraiu. O único jeito de ajudá-los foi baixando a temperatura. Nada que uma boa xícara de chá quente não possa resolver. – Volano ergueu sua xícara e deu um largo sorriso.

Tóro surgiu na sala, apoiado por Valmiro. O corpo do bárbaro estava completamente avermelhado, cheio de marcas, feridas e queimaduras, inclusive o seu rosto.

– Tóro! Você está muito ferido... – Kalena levou a mão à boca, com uma feição de pena.

– Ele vai ficar bem em pouco tempo. Dei-lhe um antídoto à base de...

– ... de palmira. É uma erva muito forte, indicada para venenos altamente danosos – completou Kalena.

Agora, com luz, foi possível à princesa olhar melhor para aquele rapaz de pele mulata, com olhos e cabelos negros, sobrancelhas grossas e lábios carnudos. Vestia uma calça e uma camisa de manga longa de pele de raposa. Estava de pés descalços, revelando-os maiores que o da maioria dos homens. Era um pouco mais alto que o pai, mas seu rosto e seu porte físico eram incrivelmente idênticos aos de seu genitor.

– Correto. Erva de palmira... – afirmou Valmiro, após uma breve pausa. – Como sabe de sua propriedade de cura?

– Já completei há algum tempo meus estudos de Magia Básica.

– Você estuda magia? – surpreendeu-se Valmiro.

– Ela é uma bruxa do Cosmos. Uma aplicada bruxa, devo acrescentar. – interferiu Meliel.

– Do Cosmos?! Nossa, é muito difícil essa especialidade! Especialmente para... para...

– Para uma mulher, eu sei. Sofro muitos preconceitos por não ser um homem. – respondeu Kalena, olhando atravessado para Roguinil.

– Bem... Tóro, ficamos muito preocupados com você. Todos aqueles cerones...

– Já lhe disse, príncipe, nada derruba um xetriquênio! – afirmou o bárbaro com um bom humor.

Após aconchegar Tóro num banco e entregar-lhe uma xícara com chá quente, Volano se voltou para os outros.

– Fico feliz por receber visitas em minha cabana, especialmente a do meu velho amigo Meliel, que não vejo já faz alguns anos. Mas sei que não enfrentaram a Floresta Petrificada à noite apenas para me fazerem uma cordial visita.

– Está correto, velho amigo. Infelizmente o motivo que nos traz aqui não é nada bom. – disse-lhe Meliel.

– Estou atento às suas palavras...

– O Guardião foi libertado.

Volano arregalou os olhos e sua pele ficou pálida. A respiração, por um momento, pareceu parar. Após alguns instantes olhando para o nada, o mago voltou-se para Meliel.

– Como... como isso foi possível? A Arca está sob a proteção de sua magia! Apenas um novo Mago-Maior poderia desfazê-la!

– Mas a magia não foi desfeita. Alguém conseguiu entrar no salão e retirar a Arca de lá.

– Mesmo com o encantamento de proteção? Quem conseguiu tal proeza?

– Uma caçadora de recompensas que foi contratada para esse serviço, com promessas de que havia um grande tesouro. Depois de ver que não havia tesouro algum dentro da Arca, nos procurou e revelou o ocorrido.

– Estranho... Quando isso ocorreu?

– Há seis noites.

Volano começou a andar de um lado para outro. Virou-se para Valmiro, ainda pensativo. Colocou suas mãos sobre os ombros do rapaz.

– Meu filho, arrume suas coisas o mais rápido possível. Partiremos em instantes.

– Pra onde vamos?

O mago olhava atentamente para os olhos do filho, que pareciam tremer.

– Vamos ter aulas práticas. Vamos caçar e aprisionar um demônio.

O rapaz, após alguns instantes olhando perplexo para o pai, retirou-se da sala e foi para o seu quarto. O mago sentou-se vagarosamente em um banco, com as mãos nos joelhos, ainda pensativo.

– Estudei todos os livros que falam do Mundo das Trevas. Tornei-me um especialista nessa área. Pelo que sei, sou o único vivo por toda Fesgra. Mas nunca imaginei que viveria para enfrentar um demônio.

Meliel levantou-se do banco.

– Meu velho amigo, você leu todos os livros em Fesgra que falam sobre as criaturas das trevas, menos um.

Meliel mostrou-lhe o livro azul que carregava. Volano o encarou espantado.

– Seria... seria o... não pode ser... Ele foi roubado da Torre de Vidro! Você o...?

– Não! Sabe que eu jamais faria uma coisa dessas! Roubar algo, especialmente da Torre de Vidro!? Quem seria louco?

– Mas alguém o foi... – os olhos de Volano brilhavam. Aos poucos, um enorme sorriso tomou conta de seu rosto. – Sempre sonhei com esse artefato. O grimoire de safira, o livro de magias do poderoso Zândrus. Como o conseguiu?

– Há alguns anos o encontrei numa sala secreta do Muntal.

– No Muntal...? – Volano pensou por um instante. – Será que foi Brunélio?

– Acho que não... Ele era o Mago-Maior de Dilames à época, não precisava roubar uma coisa dessas!

– Ele não precisava fazer muitas coisas que acabou fazendo... Desculpe, sei o quanto admirava Brunélio, mas tem de concordar que ele foi uma ameaça para Fesgra.

– Nunca o questionaram se ele realmente tinha más intenções. – Meliel retrucou rapidamente.

À exceção de Kalena, os demais não compreendiam absolutamente nada do que os dois magos estavam falando. O anfitrião começou a folhear o grimoire.

– As páginas estão conservadas! Não sabia que você conhecia um feitiço de conservação...

– E não sei! O encontrei nesse estado. Zândrus é quem devia saber esse feitiço e o lançou no livro para preservar o conhecimento contido nele. – explicou-lhe Meliel.

– Não é apenas um livro de magias. Veja! Zândrus fez diversas anotações, escreveu suas opiniões, alterações e aperfeiçoamento de magias. Por isso foi o Mestre dos Mestres... – Volano estava entusiasmado.

– O rei Endoro não sabe desse achado. Portanto, não pode ser considerado como um dos tesouros do Muntal. Logo, não precisei de sua autorização para dá-lo a você. Será muito mais útil em suas mãos do que comigo, especialmente agora. – Meliel olhou para Kalena como se pedisse segredo sobre o que acabara de revelar. – Uma vez, há muitos anos, você fez o mesmo com um pergaminho, lembra? Agora é a minha vez de retribuir.

Volano olhou para o amigo com um ar de gratidão. Nesse instante, Valmiro voltou com uma sacola na mão, ofegante, e calçado com uma bota de couro. Após uma rápida reflexão, seu pai entregou-lhe o grimoire de safira.

– Você precisará dele mais do que eu. Leia atentamente cada página durante a nossa viagem. Enquanto estivermos nessa jornada, ele será seu mentor. Vou arrumar as minhas coisas. Providencie algum alimento para levarmos.

Em poucos minutos, Volano já estava definitivamente pronto. Aparara a barba, o que lhe deu um ar mais jovial. Levava consigo apenas uma pequena sacola e um cajado de madeira, igual ao de Meliel. Preso ao cinto, um saco de pele de roedor parecia conter alguma coisa.

Cogles carregava uma outra sacola, repleta de frutas, carnes de veado e de coelho secas, pão e um pote de mel. Tóro levava alguns potes de água.

Ao saírem de dentro da cabana, verificaram que o sol ainda estava distante do centro do céu, indicando que ainda era cedo naquela manhã. Há alguns metros dali, um fino círculo brilhante circundava a cabana. Dentro do círculo, o ambiente tinha uma leve coloração violeta.

Volano aproximou-se de uma águia postada no teto da cabana, próxima à porta de entrada, erguendo-lhe o braço. A ave desceu até o mago, que lhe fez um leve afago, prendeu um pedaço de papiro em uma de suas patas e passou um líquido em seu bico.

– Assim que eu desfizer o perímetro, voe o mais rápido que puder e alcance o seu destino antes da próxima lua.

– E os cavalos? Onde estão? – questionou Roguinil.

– Nenhum deles conseguiu sobreviver ao frio. Infelizmente, já era tarde demais quando tentei salvá-los. – respondeu-lhe o anfitrião.

– Teremos de ir a pé, então?

– Só por um trecho, senhor Cogles. Andaremos uma parte da Floresta Petrificada rumo a oeste até chegarmos a Terafes. Lá, pegaremos uma embarcação e navegaremos pelo Rio Largo em direção sul, até o Grande Lago, já próximo do Templo de Kira, onde encontraremos com a caçadora de recompensas. – explicou Meliel.

Volano afastou-se um pouco do grupo. Ergueu suas mãos e fechou os olhos, pronunciando baixo algumas palavras. Uma leve fumaça de tom violeta se formou em volta de seu corpo. Ao abrir os olhos, que agora também estavam violetas, a fumaça ganhou densidade e se espalhou por todo o perímetro limitado pelo círculo brilhante, que desapareceu. Os olhos de Volano voltaram ao normal e a fumaça desvaneceu.

A águia abriu as asas e alçou vôo, fazendo voltas no ar e depois seguindo para o sul.

– Perímetro de segurança. É uma proteção que meu pai cria. – explicou o rapaz aos demais. – Já sofremos muitos ataques de diversos seres vindos da Floresta. Com esse círculo, nada entra, nada sai.

A Floresta Petrificada foi se iluminando pela luz do dia, o que acelerou os passos dos humanos. Depois de algumas horas de caminhada, passaram próximos a uma gruta, a qual, segundo Volano, era a moradia dos ungoros que, naquele instante, protegiam-se lá dentro da claridade que penetrava a Floresta.

Algumas horas depois a quantidade de árvores começou a diminuir, o que indicava que já estavam alcançando campo aberto. Ao longe, podiam visualizar os contornos dos muros de uma cidade.

– Estamos chegando a Terafes, onde conseguiremos um transporte. Não preciso avisar-lhes para tomarem cuidado com os diversos ladrões que lá se encontram.

– Eu sei bem do que está falando, senhor Meliel. Já fui roubado uma vez que estive lá com meu pai.

O sol estava forte e encontrava-se no centro do céu quando o grupo alcançou os portões de acesso da cidade. Do alto dos muros, algumas dezenas de arqueiros faziam a segurança de Terafes, a mais rica cidade portuária do Reino de Dilames. Alguns cavaleiros faziam uma ronda nos limites da muralha.

De onde estava, atravessar a cidade seria a opção mais rápida do grupo chegar às margens do Largo. Ou isso ou teria de caminhar por um trecho repleto de montes, o que retardaria a jornada. No entanto, mesmo com muitos guardas fazendo a vigilância, Terafes era infestada por ladrões, atraídos pelo vultoso comércio dali. Atravessá-la era um risco que precisavam correr.

Praticamente não havia uma única pessoa que não tivesse um empreendimento comercial em Terafes. A riqueza da cidade era enorme. As casas, todas com pelo menos dois andares, ostentavam o nível de vida de seus habitantes. As ruas, todas calçadas com pedras, eram largas, facilitando o intenso tráfego de pessoas e mercadorias. Inúmeras caravanas comerciais entravam e saíam, permitindo o fluxo de negócios com outras cidades.

Uma longa rua era tomada por milhares de lonas e barracas que vendiam diversos tipos de artesanato, alimento, vestuário, perfumes, bálsamos, armas, utensílios domésticos, ervas e tantas outras coisas que nem mesmo Kalena vira antes.

Uma outra rua, não tão comprida, era repleta de hospedarias. Algumas suntuosas, onde nobres se hospedavam, outras com menos luxo, que atendiam às necessidades de mercadores e viajantes. No fim da rua havia uma famosa taverna da cidade, a mais movimentada, que não fechava hora alguma.

Chegando à praça central da cidade, onde algumas casas tinham até quatro andares, o grupo pôde tomar duas charretes até o porto. Lá, muitas embarcações, de todos os tipos e tamanhos, chegavam e saíam a todo instante, com pessoas e mercadorias. Meliel conseguiu adquirir uma pequena embarcação, mas suficiente para conduzir o grupo pelas tranqüilas águas do Largo até o Grande Lago.

A saída da região portuária de Terafes demorou mais do que se esperava devido ao intenso movimento de balsas e embarcações de grande porte entrando e saindo. Mas o restante da viagem seria calmo, pois havia espaço suficiente no Largo para que todos navegassem.

À frente da jangada, Volano e Meliel utilizavam uma magia para conduzi-la enquanto conversavam sobre os acontecimentos desde a última vez que se viram. Na outra extremidade, Tóro repousava, ainda se recuperando do ataque dos cerones. Roguinil trocava algumas palavras com ele, tentando fazê-lo esquecer das dores que sentia de vez em quando. Cogles apenas observava a paisagem, decorando cada metro que percorriam pelo rio.

A largura do Largo era tão espantosa que, de onde estavam, não conseguiam ver nenhuma das suas margens, mas sabiam que, pela posição em que se encontravam, o Reino de Dilames ficava à sua esquerda, o de Kan-Potras do mesmo lado, só que bem mais ao sul, e o de Xetric, do lado oposto. A maioria dos povoados da Federação de Povoados, da qual Cogles fazia parte, era um pouco afastada dessas águas, e seus habitantes eram obrigados a comprar o líquido de comerciantes dilamésios, conforme determinação imposta pelo rei Endoro.

Entre os dois grupos da embarcação estavam Valmiro e Kalena. Apesar da diferença de classe social, um tinha muita coisa em comum com o outro, já que eram bruxos, o que facilitou uma forte e rápida aproximação, mesmo que as especializações que cada um estudava fossem diferentes. A princesa estava encantada com o nível de conhecimento que o jovem bruxo tinha a respeito de Magias Básica e Mediana.

– Você sabe muito! Falou de coisas tão simples, mas eu nem tinha me dado conta desses encantamentos. Procurei acelerar meus estudos de tal forma que acabei pormenorizando alguns feitiços básicos!

– Mas esses encantamentos de que lhe falei são realmente coisas bobas, qualquer um pode fazer. Não precisa se torturar por causa disso.

– Mas... como é estudar o Mundo das Trevas?

– Bem... exige muita disciplina como, imagino, estudar Cosmos. São muitas informações, muitos detalhes. Mas isso eu consigo superar. O problema são algumas dificuldades impostas pelas próprias pessoas.

– Como assim?

– Bom, primeiro, muitos acham que o fato de você estudar sobre criaturas das trevas e o mundo em que elas vivem implica necessariamente que você é ou se tornará um feiticeiro maléfico, que utilizará esse conhecimento para praticar o mal. Ou seja, muita gente não me vê com bons olhos.

– Mas você não pode dar importância a essas pessoas. Mundo das Trevas é uma especialização como outra qualquer. Se as pessoas comuns soubessem de todo nosso esforço para aprender magia, talvez nos respeitassem mais.

– Mas as pessoas respeitam os envolvidos com magia. Só depende da especialização que se tem. Como há séculos não existem demônios em Fesgra, conhecer sobre eles não tem dado muito destaque social. Meu pai só conseguiu trabalhos por causa das outras especializações que ele tem. Mas aí resolveu largar tudo para se dedicar a me ensinar. Ele considera de extrema importância que eu me torne um feiticeiro do Mundo das Trevas e que perpetue isso, pois não há outros conhecedores dessa magia em toda Fesgra.

– E ele tem toda razão. Só podemos contar com ele para capturar o Guardião. Bom, e com você, é claro, mas é que você...

– ... ainda nem sou um feiticeiro. Eu sei disso. Também acho importante concluir esse estudo, mas tem sido muito difícil enfrentar alguns obstáculos. Como não há outros feiticeiros desse tipo, os materiais necessários ao aprendizado são muito raros, muito difíceis de serem achados, e quando encontramos, as pessoas querem nos vender por preços inimagináveis!

– Não tinha pensado sobre isso. As coisas que utilizo, os livros que leio também são um pouco caros porque também há poucas pessoas estudando sobre Cosmos hoje em dia...

– Mas você é uma princesa. Pode comprar tudo que desejar...

Os dois ficaram mudos por um instante. Valmiro interrompeu o silêncio.

– E também tem o problema de que não há muito que se treinar. Praticamente tudo que sei é teórico. Sem demônios, não se pode praticar como capturá-los, por exemplo, que é exatamente do que precisamos agora.

– Hum... Mas pelo menos você aprende sobre eles, não é?

Kalena aguardava a resposta de Valmiro, mas percebeu que o jovem espichava seu pescoço como se tentasse ver melhor à sua frente. Alguns barcos com guardas estavam fazendo um bloqueio, impedindo a passagem de outras embarcações, obrigando-as a fazerem o retorno.

– O que está havendo? – perguntou Meliel ao aproximar a jangada de um dos barcos oficiais do reino dilamésio.

– Não podem continuar com a viagem. Retornem de onde vieram ou aportem em Libória e continuem por terra.

– Por que não podemos seguir em frente?

– Serpentes marinhas fugiram de seu cativeiro nas proximidades de Bromapé. Estamos tentando reaprisioná-las. Garantimos que daqui até o mar elas não passarão. Mas já se espalharam de Bromapé até o Grande Lago. Por isso nenhuma embarcação pode passar desse ponto de onde estamos, que é o limite de segurança garantido por nós.

– Mas precisamos continuar. Estamos com muita pressa.

– Sinto muito, senhor. É para a sua própria segurança.

Meliel retirou de um bolso interno de sua manta um pergaminho com o selo oficial do rei Endoro e entregou ao guarda, que o leu atentamente e mostrou a outros dois. Um deles voltou-se para o mago.

– Perdoe-nos, senhor. Não sabíamos quem era. Missão oficial, não é? Muito bem, podem passar. Mas tenho de avisar-lhes que estão por conta própria. Não teremos qualquer responsabilidade no que venha a ocorrer com vocês.

– Obrigado, guarda, mas pode ficar tranqüilo. – respondeu Meliel, pegando de volta o pergaminho.

– Eis uma grande vantagem de ser o Mago-Maior de Dilames... – observou Volano, num tom irônico.

A balsa ultrapassou o bloqueio de barcos oficiais e seguiu em frente.

– Acha prudente que nos arrisquemos com as serpentes, Meliel?

– Não temos tempo para fazer desvios e continuar por terra num trecho tão longo, príncipe. Esta é a última noite dessa lua. Além do mais, temos um xetriquênio a bordo.

– Não sei se poderá contar muito comigo agora, mago. Mesmo por que, pelo que sei, havia muitas serpentes no cativeiro.

– Não estou entendendo muita coisa...

– Os xetriquênios, princesa, criam serpentes marinhas em cativeiros, na sua cidade de Bromapé. Esse povo é ótimo para caçar esse animal aquático, que é extremamente perigoso.

– Se é tão perigoso, por quê vocês criam? – indagou Kalena a Tóro.

– Já comeu bolo de madisca? – perguntou o bárbaro.

– Sim, já.

– Gostou?

– Se gostei? É a sobremesa mais cobiçada de toda Fesgra!

– Pois é, a farinha que faz esse bolo é feita com a casca de ovos dessas serpentes marinhas. O líquido que sai do ovo faz o creme que recheia o bolo. É uma especiaria muita apreciada em todos os reinos, e muito cara. É isso que mantém a economia de todo nosso reino. Precisamos das serpentes para sobreviver. Seu pai nos obriga a comprar muitas mercadorias dilamésias, nos impedindo de produzi-las em nosso próprio reino. São os bolos de madisca que trazem riqueza para Xetric.

– O seu povo deve ter aumentado a criação de serpentes marinhas para ampliar a produção de ovos. E agora, elas conseguiram escapar do cativeiro. – observou Volano.

– E como se caça essas serpentes? – perguntou Roguinil.

– Há um equipamento específico para isso e são necessários muitos homens treinados.

– Acho que não teremos tempo agora de treinar ninguém. Há um movimento suspeito na água aqui atrás. Acho que é uma das serpentes... – informou Cogles.

– Fiquem todos juntos no meio da jangada. E tentem manter-se calmos! – pediu Meliel.

Roguinil conseguiu ver o desenho de uma serpente se mexendo na água, bem próximo à embarcação.

– Essas serpentes sentem o movimento na água. Elas sabem onde estamos por causa da vibração da água quando bate na madeira. – informou o xetriquênio.

– Está dizendo que elas são cegas?

– Não, príncipe, elas enxergam e muito bem. Mas se houvesse uma maneira de pararmos de fazer movimentos na água, talvez pudéssemos passar despercebidos.

– A única maneira seria parar a embarcação!

– Não acho uma boa idéia, princesa. – disse-lhe Cogles.

– Tenho uma idéia que pode dar certo. Volano, Kalena e Valmiro, aproximem-se. – ordenou Meliel. – Concentrem-se na jangada e usem sua telecinese.

Os quatro fecharam os olhos e ergueram as mãos. Uma leve brisa se fez sentir. Quando abriram os olhos estavam incolores. A embarcação tremeu um pouco e vagarosamente começou a afastar-se da superfície aquática, levitando no ar e atingindo uma altura de três metros. Magos e bruxos deram as mãos, fazendo um círculo, e a jangada começou a seguir em frente, flutuando sobre as águas do Largo.

Cogles debruçou-se em uma das extremidades e pôde contar, lá embaixo, uma dúzia de enormes serpentes marinhas, num movimento circular, caracterizando que viria um ataque em bando. Um pouco mais à frente, o guerreiro pôde ver uma outra delas, maior ainda, deslizando sobre a água e vindo em sua direção. Num determinado ponto, a fera emergiu, postando-se à frente da jangada e ostentando sua grandiosidade. Tinha pequenas nadadeiras no lugar de orelhas e sua escama pontiaguda era azul, com tons diferenciados no decorrer de seu corpo. Emitia um sibilar assustador e incômodo.

– Não vamos conseguir! – gritou Tóro.

Valmiro assustou-se com o bárbaro e desconcentrou-se de sua magia, fazendo com que a embarcação tremesse no ar, desconcentrando os demais. Kalena perdeu o equilíbrio e caiu para fora da jangada, segurando-se com as duas mãos em sua beirada. Roguinil foi a seu auxílio, mas a jangada começou a despencar e rapidamente atingiu a superfície marinha, movendo água por todos os lados.

A princesa agora estava dentro do rio, tentando não se afogar. Uma serpente nadou em sua direção. A maior dessas feras aquáticas impulsionou o corpo e avançou com a cabeça para cima da embarcação. Volano tentou invocar a magia para criar o mesmo círculo brilhante que protegia sua cabana, mas não houve tempo. A serpente atingiu o meio da jangada, partindo-a em duas. Algumas sacolas caíram no rio. Meliel imediatamente segurou a bolsa que guardava o grimoire.

De um lado, ficaram Roguinil, Tóro e Volano. Do outro, Meliel, Cogles e Valmiro. O príncipe desembainhou a espada e acertou parte do corpo do animal, ferindo-o gravemente. Muito sangue se misturou às águas do Largo, atraindo as serpentes que estavam próximas.

Kalena, vendo a aproximação de uma delas, prendeu a respiração e deixou-se submergir. Debaixo da água, pegou o Tripon e arremessou em direção à criatura. A Arma teve dificuldades em mover-se devido ao ambiente denso, não conseguindo acertar o alvo, retornando às mãos da dilamésia. Quando a serpente aproximou-se da princesa, esta já estava com os olhos esbranquiçados e com uma forte luz na palma da mão, o que incomodou a fera, afastando-a.

Kalena defendeu-se da mesma forma de outras que tentaram se aproximar, mas o seu fôlego já estava acabando e seu corpo parecia estar mais pesado, pois descia cada vez mais para o fundo. Ao longe, conseguiu ver Roguinil e Tóro entrando na água e enfrentando as serpentes com as suas Armas.

Volano foi surpreendido e atacado por uma das criaturas, que se enroscou em seu corpo e levou-o para o fundo do rio. Valmiro sentiu algo estranho atrás dele e quando se virou, uma serpente estava com a parte superior do corpo erguida sobre a água, pronta para atacá-lo. O bruxo tremia e não conseguia tirar os olhos do réptil. Quando a fera partiu para cima do jovem, que se cobriu com os braços como que para proteger-se, Cogles arremessou o chicote e conseguiu prender a criatura antes que ela ferisse o jovem bruxo. O guerreiro puxou a Arma para si com tanta força que acabou partindo o corpo da serpente.

Uma outra derrubou Meliel na água e preparou-se para dar o bote. O mago concentrou-se e, com os olhos avermelhados, tocou na fera, queimando a parte de seu corpo que estava imersa. Cogles ajudou-o a subir de volta no pedaço de madeira onde estavam.

Roguinil e Tóro voltaram à superfície com Kalena, que estava inconsciente. Todas as serpentes haviam sido mortas. Meliel conseguiu aproximar os pedaços roliços de madeira, juntando o grupo, e conduzindo o que restava da jangada para a margem à sua esquerda, através de magia.

– Ela não está respirando! – falou Roguinil, curvado ao corpo da jovem bruxa.

Meliel pegou o grimoire na bolsa de Valmiro e começou a folheá-lo rapidamente.

– Talvez ainda haja tempo... – disse o mago.

Cogles olhava para a água, tentando ver se achava Volano.

– Consegui! Achei o encantamento! – vibrou Meliel.

O mago leu em voz alta alguma coisa no livro, mas suas palavras eram totalmente estranhas aos guerreiros. A princesa começou a tossir e a expelir água por sua boca. Seu semblante demonstrava cansaço.

– Descanse um pouco, minha jovem. Agora está a salvo. Todos estamos. – disse-lhe seu mentor, que deu um longo suspiro de alívio.

Roguinil continuou ao lado de Kalena.

– Perdemos as sacolas com comida. E Volano também... desapareceu lá embaixo... – comentou Cogles.

– Tentaremos achar alguma comida quando chegarmos em terra. – afirmou Meliel – Quanto a Volano, pode ficar despreocupado.

A água agitou-se e várias bolhas se formaram. Um estrondo foi ouvido e Volano emergiu, envolto no círculo brilhante de tom violeta. Desfez a magia e Cogles o ajudou a subir a bordo. Agradeceu ao guerreiro e olhou à sua volta, verificando que todos estavam bem, apesar do ocorrido.

Todos, à exceção de Valmiro. Aproximou-se do filho, que estava sentado no canto, cabisbaixo e tremendo.

– O que houve, por quê está triste? Estamos vivos! Conseguimos nos livrar das serpentes.

– Mas não graças a mim. Por minha causa, o círculo de magia foi desfeito. Não consegui manter a concentração. Até a sacola com ervas de palmira eu perdi! Tudo isso podia ter sido evitado.

– Sim, podia. E é por isso que você ainda não é um feiticeiro, ainda é alguém que está aprendendo não apenas sobre magia, mas também sobre diversas coisas da vida. Não estou dizendo que não enxergo seu erro. Estou dizendo que errar faz parte do treinamento, de um feiticeiro, de um guerreiro ou de qualquer outra pessoa. E mesmo quando você já é bastante experiente, ainda assim não está livre de erros. Mas já está bem mais esperto para evitá-los. Não faça desse seu erro um motivo para sentir-se fraco ou incapaz. Você já superou muitas dificuldades ao longo desses anos. Outras virão, com certeza. E só você poderá enfrentá-las. O meu papel se limita a orientá-lo, a ensiná-lo, a incentivá-lo. Mas só você deverá encarar suas dificuldades. Que sirva de lição o que aconteceu agora há pouco. Sua vida e a de todos nós correu perigo, realmente. Mas não deixa de ser um aprendizado. E é fundamental que você tire alguma lição disso tudo.

– Tenho medo de fracassar, de decepcioná-lo.

– Compreendo seu medo. Você ainda é jovem, só tem dezenove anos. É a primeira vez que fica tão longe de nossa cabana. Mas, acredite, não me decepcionarei se você tiver temores. O que não pode permitir é que esse medo tome conte de você e o impeça de tentar. Acredite na sua força interior, no poder que você tem para realizar as coisas. Você é capaz de qualquer proeza, meu filho. Basta treinar. – O mago fez um afago na nuca do filho, que correspondeu com um sorriso.

O sol já alcançava o horizonte e o céu começava a escurecer. A margem do Largo já era visível e ao longe era possível ver os contornos de uma vila que começava a se iluminar.

– Acho que é Nobena. Estamos em seu território, príncipe.

Roguinil concordou com Meliel. Sua feição era de extrema alegria. Aproximavam-se de uma pequena vila kan-potrense.

– Lá seremos bem recebidos e poderemos descansar e comer à vontade. Desfrutarão da culinária e da hospitalidade do meu povo. – afirmou Roguinil, satisfatoriamente.

Volano olhava para o céu, procurando a lua.

– Esta é a última noite de lua nova. Amanhã, o Guardião terá poderes para libertar Gorak, o demônio aprisionado no Templo de Kira.

– Espero que meus cálculos estejam certos, meu velho amigo. Espero que o Guardião só chegue ao Templo na segunda manhã de lua crescente.

– Também espero, Meliel. Se ele conseguir libertar Gorak, teremos muitos problemas.

A jangada, ou o que restou dela, atingiu a margem do rio e o grupo caminhou em direção à vila de Nobena, conjunto de pequenas casas aglomeradas em poucas ruas de terra e mais alguns estabelecimentos comerciais. Nenhum muro a protegia, mas havia alguns soldados fazendo uma ronda noturna.

Roguinil foi imediatamente reconhecido pelos moradores, que logo se colocaram à disposição para hospedar o grupo.

Após todos tomarem banho, – com exceção de Tóro, que afirmara já o ter feito quando pulou na água para enfrentar as serpentes – fizeram uma refeição. Kalena e Valmiro, exaustos, foram descansar após comerem. O jovem aproveitou para ler o grimoire. Tóro, sentindo-se já totalmente recuperado do ataque dos cerones, resolveu montar guarda. Os magos se isolaram em um quarto para continuar conversando sobre os fatos ocorridos com cada um durante os anos que não se viam.

Cogles andou um pouco pela vila para conhecê-la, o que não demorou mais do que meia hora, e logo voltou para a casa onde o grupo estava hospedado e recolheu-se para dormir.

Roguinil foi para uma outra casa, convidado por uma aldeã que morava sozinha.

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