A força do amor - capítulo 1
Quem via Amélia às margens da rodovia examinando atentamente alguma possível marca no solo não conseguiria compreender seus objetivos.
Um caminhoneiro que passava pelo local não pode deixar de observar a jovialidade de sua beleza, a boa aparência de seu corpo delgado, a perfeição de sua maquiagem, a simpatia estampada no rosto e a beleza de suas características físicas, mas não pode adivinhar o que ela fazia ali às sete horas da manhã de uma segunda-feira de muita luz e muito calor.
Para este motorista, tratava-se apenas de uma mulher bonita e atraente que, talvez, estivesse ali a trabalho – trabalho “clandestino”, diga-se de passagem.
Mas se ele pudesse ver a atenção com que ela examinava o local, certamente saberia que a moça estava disposta a correr todos os riscos para solucionar um mistério que muito a incomodava. Ela estava a quarenta quilômetros de seu destino, exatamente no início do declive onde uma cruz rude em madeira apodrecida de aproximadamente um metro de altura, com as iniciais VHN, alertava o passante sobre uma morte ocorrida naquele local em anos anteriores.
Gustavo, o recepcionista do hotel onde ela foi buscar hospedaria uma hora mais tarde, assim que pôs os olhos nela, soube que, por trás daquela voz agradável e determinada, daquele olhar amendoado e delicado colaborado pelas lentes grandes de seus óculos de grau, havia uma mulher de personalidade forte e avassaladora, capaz de desafiar o perigo e, com o perdão do clichê, cutucar onça com vara curta somente para apreciar o urro e o ataque da fera, antes de errar o alvo.
- Senhorita Amélia – apresentou-se ela, em tom objetivo, posicionando-se junto ao balcão. – Tenho uma reserva de uma semana em meu nome para o quarto treze.
- Fica ao final do corredor – disse ele, entregando-lhe a cópia das chaves e recebendo adiantado o valor referente a estadia do período, observando que a bagagem dela se restringia a uma mala pequena e um envelope amarelo que ela trazia nas mãos.
Mal ele fizera essa constatação, ela abriu agilmente o envelope, retirou dele uma fotografia antiga e perguntou pelo rapaz do retrato. Gustavo ainda pode ver que dentro do envelope havia outros dois recortes de jornal, também antigos, mas não teve tempo de elaborar uma pergunta sobre esses dois objetos.
- Conhece essa pessoa? – Inquiriu ela – levando a mão ao bolso da camisa, como se tivesse um tic nervoso.
- O fato de que você tenha direito a fazer perguntas sobre os mais diversos assuntos não significa que encontrará todas as respostas que procura.
- Mas as perguntas podem indicar um caminho de possibilidades aberto diante de si. Conhece o rapaz?
- História antiga e complicada – disse, depois de um suspiro e de uma pausa para refletir se deveria ou não dar as informações que ela estava pedindo. – Era o filho único de um farmacêutico local; rapaz bastante pacato que morreu em um acidente de carro quando voltava do próprio casamento, mas o corpo nunca foi encontrado...
- Eu vou encontrá-lo – revidou ela, interrompendo-o – O que você sabe sobre o acidente?
- O que todos sabem e o que a senhorita provavelmente também deve saber. Ele se apaixonou por uma moça bastante pobre, o pai dele se opôs terminantemente ao relacionamento e usou todas as suas influências para impedir a relação, mas o jovem resolveu ignorar todos os conselhos e proibições e se casou com ela. Fizeram isso na cidade vizinha, onde o pai dele não tinha tantos amigos. Após a cerimônia e antes da lua de mel, quando o casal retornava à cidade, segundo o relato da noiva em depoimento, uma anta atravessou a rodovia, o veículo em que eles estavam se chocou contra o animal e capotou diversas vezes sobre a pista e fora dela, chocando-se também contra uma árvore. A mulher perdeu os sentidos. O resgate só foi prestado na manhã seguinte, mas o rapaz não estava mais no veículo. A família e a polícia acreditam que ele tenha morrido. Faz dez anos que isso aconteceu e ninguém mais teve notícias dele. Seu CPF não foi mais usado, não movimentou mais sua conta bancária, não votou, não usou seu plano de saúde nem o SUS, não telefonou, não tem infração de trânsito em seu nome...
- Uma anta não é capaz de ocultar um cadáver, ainda mais se ela própria estiver morta...
- A mulher com quem ele se casou disse em depoimento que um veículo os seguia desde que deixaram a cidade vizinha, mas, por causa dos ferimentos, ela desmaiou e não soube dar maiores esclarecimentos...
- Os jornais da época disseram que não havia evidências suficientes para comprovar uma terceira pessoal no local do acidente – e ela tinha tanta convicção em sua voz que não permitia dúvidas quanto ao fato de que se informara bastante sobre o caso. – Ele era o motorista e uma mancha de sangue no volante indicava que provavelmente tivesse batido a cabeça.
- O que a senhorita pretende com tudo isso?
- Conseguir um emprego em um jornal da capital. Tenho sete dias para conseguir uma boa matéria. Falar de corrupção e criminalidade em geral não iria constituir novidade. Por outro lado, a história desse rapaz – o nome dele é Victor Hugo, não é? – me parece bastante interessante: se estiver vivo, há, com certeza, um motivo para não ter dado notícias esse tempo todo; se estiver morto, o corpo há de estar em algum lugar e eu hei de encontrá-lo, sem contar que esse fato abrirá caminho para a necessidade de encontrar o assassino. Não te parece que, sejam quais forem os rumos, essa parece ser uma boa história?
- Você precisa mesmo fazer isso?
- Há três formas de se enriquecer neste país: trabalhando muito e arduamente, ganhando uma fortuna na loteria ou incorrendo em crime de tráfico. Para o crime, não levo jeito nem tenho caráter; para a loteria, não tenho sorte nem faço apostas. Só me resta o trabalho árduo e diário. – disse ela, fazendo Gustavo respirar fundo e a encarar nos olhos para confirmar que ela estava mesmo disposta a correr todos os riscos dessa investigação. - O pai dele ainda trabalha na mesma farmácia? Onde é a residência da família? Pode me dizer onde fica o quartel da PM, a delegacia, o Fórum e a igreja matriz? – Inquiriu ela, tomando nota dos endereços. – A morte desse rapaz se deu em uma situação inusitada e não foi completamente esclarecida pelas autoridades...
- Mexer no passado, nesse passado em particular, pode não ser um caminho fácil. Com certeza, deve haver uma pessoa que queira manter o caso no esquecimento – encerrou ele, tentando esconder certo temor em sua voz. – A senhorita não concorda que está fazendo muitas perguntas sobre um assunto que, a meu ver, ainda se quer escondido sob sete chaves?
Assim que ela deixou a recepção, Gustavo teve certeza de que a cidade nunca mais seria a mesma depois da passagem de Amélia. Ele sabia que havia interesses escusos por trás do silêncio de Victor Hugo, mas, com certeza, sua nova hóspede seria capaz de muita coisa, inclusive até, de ressuscitar defuntos não confirmados. Por um motivo que ele não sabia explicar nem julgava necessário compreender, sentiu-se feliz e honrado com a presença dela, pois sabia que sua nova hóspede tinha muito conteúdo mental e muita “pólvora” em sua bagagem. Embora não a conhecesse, tinha convicção de que ela era uma mulher determinada em conseguir alcançar os objetivos traçados. Dizer que ela estava sendo fria, insensível e impassível ao ouvir e analisar a narrativa de Victor Hugo era atribuir-lhe mais sentimento do que ela, de fato, estava demonstrando. Mas, ainda assim, era uma mulher admirável!
- Se a História da Idade Média reproduz a mulher como sendo a perdição de um homem, Amélia é a encarnação da própria tentação: bonita como o nascer do dia e destemida como a escuridão da noite. Eis uma mulher com um gênio indomável em seu espírito e, aparentemente, incapaz de ter sua conduta subornada com qualquer ideia corriqueira ou idiota! Pode não ser a mulher mais bonita dessa cidade – e não é, tem muitas que ganham dela nesse quesito – mas é bastante atraente por esse modo destemido de pensar... Seduzi-la e dominá-la podem ser experiências interessantes...
Se Gustavo soubesse o que estava por vir, talvez não ficasse tão eufórico assim com a presença dela...
Enquanto isso, Amélia ganhava as ruas, sempre guiada por seus pensamentos, focada em descobrir o que aconteceu durante aquela madrugada de dez anos atrás. Se Victor Hugo sobrevivera, e essa era a sua intuição e expectativa, o que teria acontecido ao sobrevivente? Em silêncio e em estado de profunda reflexão, ela ficou elaborando hipóteses para tudo o que acontecera naquela noite. Vamos combinar aqui entre nós: não é nada comum o marido desaparecer a caminho da noite de núpcias, após dizer o sim no altar e no cartório, sem deixar indícios de para onde vai ou, principalmente, porque vai. A meditação e a especulação lhe diziam que algum evento alheio à vontade do rapaz o levou a agir daquela maneira. Se quisesse evitar o casamento, o teria feito antes de se comprometer oficialmente. Além disso, os jornais da época disseram que havia sangue dele no veículo, portanto, ele estava ferido. Mas, neste caso, porque não procurara socorro nem se apresentara à sociedade nos dias seguintes ao ocorrido?
No entanto, Gustavo não lhe acrescentou maiores informações, o responsável pelo principal meio de comunicação local não sabia de nada, o delegado de polícia não demonstrou muito conhecimento sobre o assunto e as buscas pareciam levar ao impossível. Os primeiros telefonemas não trouxeram resultado satisfatório e as respostas que ela ouviu se resumiam a um repetitivo e sonoro não, acrescentado de muitas justificativas e nenhuma esperança.
- Não sei de nada, já faz tanto tempo. Eu nem estava nessa paróquia nessa época... – alegou o padre, acrescentando uma bênção especial para que a busca dela não fosse vã.–Temos um trabalho voluntário aqui na paróquia e servimos, uma vez por semana, uma refeição a um grupo de necessitados. Se tiver interesse em nos ajudar a servir, sinta-se convidada.
- Não sei de quase nada – disse uma senhora atendente da farmácia do senhor Tarcísio Nero, funcionária antiga, quase se aposentando por idade, escondida atrás das lentes. – O rapaz era o filho único do patrão, mas pai e filho tinham brigado por causa do namoro do jovem e a relação dos dois estava abalada. Por causa desse rompimento, ninguém se atreveu a comentar o fato por aqui e o assunto logo morreu. O certo é que ninguém mais soube do rapaz e nem mesmo a curiosidade sobre os motivos que o levaram ao desaparecimento foi suficiente para que as autoridades conseguissem encontrá-lo. Victor Hugo sumiu e nem mesmo a esposa soube dizer para onde ele poderia ter ido ou por quais motivos teria desaparecido. Se a senhorita quiser vir conversar diretamente com o patrão, ele trabalha aqui todos os dias, no caixa, mas é melhor nem tocar nesse assunto com ele...
- Não sei de nada - disse o policial que a atendeu no quartel da PM. – A mulher ainda estava vestida de noiva, no banco do carona. Era o rapaz quem estava dirigindo o veículo, mas ele não foi mais encontrado. É certo que foi ferido durante o capotamento do qual foi vítima, mas nem mesmo isso é suficiente para explicar seu afastamento de todos. Na época, a guarnição militar fez várias diligências, em parceria com a polícia civil, mas ele não deixou rastros.
O delegado de polícia, ao ser indagado sobre o ocorrido, disse que era um profissional recém-chegado na cidade, mas que, até onde ouvira falar, nem mesmo o pai demonstrara interesse em resgatar o filho, já que o adolescente se casara à revelia da família. Como nunca houve um pedido de resgate, não havia sequestro; como o rapaz não apresentou mais nenhum sinal de vida, por certo não sobrevivera; então, por mais que não houvesse provas nem corpo, provavelmente estava morto.
- Ninguém pode saber se a felicidade inda iria sorrir para aquele casal – observou ela. - Foi essa a linha de condução das investigações policiais: assassinato ou morte súbita? Então, se pode afirmar com certeza que o rapaz morreu?
Não, não se tinha certeza dessa verdade. Jamais se encontrou um corpo, jamais se encontrou qualquer informação que levasse ao cadáver ou a um sujeito semelhante. O rapaz tinha sumido: isso era tudo.
- “Desmaterializou”, - ridicularizou o delegado, - sumiu no ar, evaporou, sem qualquer explicação lógica ou compreensível.
Amélia sorriu agradecida.
- Eu preciso encontrar esse rapaz. Por onde eu posso começar as buscas, doutor?
- Não é que eu seja pessimista, mas acho que você não vai encontrar muita coisa por aí, nem mesmo com o pai do falecido. O homem, ao ser informado sobre o desaparecimento do filho, disse que as portas da casa dele estavam fechadas para o rapaz e que o caso era apenas um assunto de polícia. E, dois dias depois, solicitou à polícia à suspensão das investigações.
- Não quero ser atrevida nem desrespeitosa, mas, até onde sei, no cotidiano das investigações criminosas, o suspeito é sempre alguém próximo à vítima. Nesse caso, o senhor Tarcísio seria considerado suspeito. Sendo assim, como pode um possível suspeito solicitar o fim de sua própria investigação?
- O delegado que atuava aqui na época deve ter tido seus motivos para arquivar o caso.
- Isso não te parece estranho?
Chapadão do Sul - MS, 27 de dezembro de 2019