A Arca de Zândrus - Vol. 1 - O Guardião - Capítulo 1
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Capítulo 1
AMARGAS LEMBRANÇAS
Era uma calma madrugada de lua nova. A terceira daquela fase. Havia poucas nuvens no céu. O silêncio reinava na cidade de Damasco, circundada e protegida por uma imponente muralha de rocha. As edificações raramente ultrapassavam três andares, mas uma se destacava de todas as outras. Não apenas por se localizar no centro de Damasco, mas também por sua grandiosidade e importância para aquele povo. Era o maior símbolo do poder do Reino de Dilames.
Erguido há séculos, o Castelo Muntal possuía torres que pareciam alcançar o céu. De uma delas era possível ter uma visão de florestas, rios e até vilarejos há muitos quilômetros de distância. Muitas histórias sobre o castelo já foram contadas; algumas exageradas, é verdade, mas todas baseadas em fatos. Muitos tesouros estavam guardados lá, alguns cobiçados por ladrões, outros por guerreiros e reis. Mas também havia artefatos que até mesmo magos gostariam de possuir.
Obviamente, algumas tentativas de saque já tinham ocorrido. Todas frustradas. O Muntal era protegido por um sistema de segurança infalível, repleto de armadilhas e vigilância de centenas de soldados, além de feitiços e encantamentos. Por isso também era conhecido como A Impenetrável Maravilha.
Uma dezena de soldados fazia sua ronda em uma das muitas torres do castelo até que um suspeito movimento no corredor chamara-lhes a atenção. Logo avistaram um vulto tentando abrir a porta de acesso do único salão daquela torre. Ficaram estáticos por um instante. Como um intruso conseguira passar pelas armadilhas e chegar até ali, tão alto? Agora não importava saber. Dispararam lanças em sua direção enquanto um dos soldados tocava um pequeno sino próximo, cujo som alcançou o ouvido de diversos outros guardas. O invasor se desvencilhou da saraivada de lanças e saiu correndo pelo corredor, com os soldados em seu alcance. Apenas um ficou de prontidão, frente à porta do salão.
Vendo-se encurralado por quatro grupos de guardas, o vulto começou a pular de uma torre para outra, se desvencilhando de ataques de pedras e lanças. Feitiços em forma de raios coloridos iluminavam o céu na inútil tentativa de acertar o invasor. Um guarda, que aparecera repentinamente, conseguiu surpreender o vulto e ficar em sua frente. Sem pestanejar, enfiou-lhe uma espada no abdômen. Foi quando sentiu uma textura estranha naquele corpo. Aproximou-se ainda mais do intruso e assustou-se com o que viu. Era apenas uma sombra. Uma sombra com vida própria!
Um assobio cortou o silêncio e a sombra voltou a se movimentar freneticamente, em direção à torre onde foi vista pela primeira vez. Recomeçou o tumulto de guardas em seu encalço. Alcançaram aquele corredor ainda a tempo de testemunhar a sombra ambulante se enroscando no corpo de uma mulher e configurando-se numa capa. O guarda que ficara de prontidão estava desmaiado no chão. A porta do salão estava escancarada. A sombra fora apenas um chamariz para que aquela mulher entrasse no salão e roubasse seja lá o que for que estivesse lá dentro. Mas como? Diziam estar protegido por uma poderosa magia!
Os guardas se voltaram para a intrusa, mas ela já havia desaparecido. Um outro sino ecoou, mais forte que o primeiro. Alguns conseguiram ver o vulto da ladra, já longe, ultrapassando facilmente a muralha da cidade e correndo para o leste, em direção à Grande Floresta.
Não muito distante, em uma outra torre, um ser encapuzado, protegido pelas sombras, espreitava o ocorrido.
* * * * *
Tóro fiscalizava a muralha que estava sendo erguida na fronteira oeste do Reino de Xetric. Quando finalmente fosse concluída, seria um importante instrumento de proteção de seu povo contra as tentativas de invasão do reino vizinho.
Verificava pessoalmente aquela obra todos os dias, e ali passava o dia inteiro, auxiliando os construtores a carregar pesados pedregulhos com a sua fenomenal força física. Ao término do dia, enquanto os demais voltavam para seus lares e familiares, Tóro cavalgava pela fronteira, vigiando. Sabia que os inimigos tentariam atacar e destruir a muralha. Mas isso nunca chegou a acontecer naqueles tantos meses de construção. Ainda assim, continuava com a vigilância quase todas as noites. Não se preocupava em regressar para casa. Não tinha ninguém para recebê-lo. Perdera esposa e filhos há alguns anos.
Uma fina chuva abaixara a poeira levantada pela construção e os trabalhadores agradeceram, pois há horas estavam expostos ao sol. Tóro carregava sozinho uma rocha quando avistou um cavaleiro se aproximando. Viu a bandeira escarlate com contornos turquesa que empunhava e logo soube que se tratava de um mensageiro do Reino de Dilames.
– Procuro o paroler Tóro. Fui informado em Bromapé que poderia encontrá-lo aqui.
– Perde o seu tempo, mensageiro. Aqui não há nenhum paroler. Aqui ninguém é bom em diplomacias. Somos todos guerreiros, bárbaros.
– Se não fosse um paroler, não me receberia com explicações, senhor. Um bárbaro não tem a sensibilidade das relações civilizadas entre as pessoas. Como foi o único amistoso por aqui, devo supor que seja quem procuro.
Aborrecido, Tóro jogou a rocha no chão, bastante próximo ao cavalo, assustando-o.
– O que deseja, mensageiro?
– Apenas cumprir com a minha função. – o dilamésio entregou-lhe um pergaminho. – O Rei-Maior exige a sua presença até amanhã, ao meio dia.
O bárbaro pegou o pergaminho, encarando desconfiado para o mensageiro.
– O que Endoro quer comigo?
– Ora, senhor, a mensagem é escrita. Afinal de contas, é para ser entregue a um paroler, e não a um bárbaro. – o mensageiro tinha um tom sarcástico – Meios de transporte oficiais de Dilames estão à sua espera em Bromapé. Sugiro que parta imediatamente.
– Limite-se a entregar mensagens, afinal é apenas um mensageiro, e não um conselheiro. – agora era Tóro quem levantara o tom de sarcasmo.
A chuva engrossara. Tóro montou em um cavalo e disparou rumo à principal cidade de seu reino, ainda segurando o pergaminho, deixando o dilamésio para trás. Usava apenas um par de botas de cano longo de couro e uma tanga de pele de urso, além de um cinto de pele de cobra. Tais vestes acabavam por revelar um corpo repleto de cicatrizes.
Em menos de uma hora já avistava os contornos de Bromapé, a capital do Reino de Xetric. Era uma vista que trazia orgulho para Tóro, pois foram seus familiares de não muitas gerações atrás quem a idealizaram e a tornaram realidade. Mas também era uma visão que lhe trazia tristeza. Se não tivesse abandonado o cargo de paroler, hoje seria o rei de seu povo. Mas desistiu de tudo para tornar-se um bárbaro, deixando o fardo das relações políticas e administrativas para seu primo, o então rei Kívio.
Desmontou e rapidamente chegou à Sala do Trono. Encontrou o rei e alguns Senhores da Guerra, estrategistas de combates de seu povo. Conversavam concentrados, mas uma sentinela informou a presença do ex-paroler.
– Tóro, meu bom amigo e primo, fico feliz em vê-lo aqui. Imagino que o mensageiro dilamésio tenha lhe alcançado...
– Sim, majestade, ele me encontrou. Endoro deseja ver-me.
Kívio entreolhou rapidamente os Senhores da Guerra.
– E... posso saber para que ele quer que você vá ate o Muntal?
– Creio que só saberei disso quando chegar lá. Apenas avisa que devo ir sem nenhum tipo de arma.
– Sem armas...? Hum... Apenas uma conversa diplomática, imagino.
– Ou uma tocaia. – interrompeu um dos Senhores.
– É possível, pois Endoro não é nada confiável. Ficarei bem; minha força é a maior arma que possuo.
– Sabemos disso. – Kívio sorriu sinceramente. – Fui informado de cavalos dilamésios à sua espera.
– Partirei agora, e pretendo regressar o quanto antes.
– Faça isso, então. E quando retornar, há novidades que quero contar-lhe. Estou ansioso por fazê-lo.
– Novidades?
– Sim, novidades. E sei que ficará feliz em ouvi-las. Mas deixemos isso para quando você retornar. Essa conversa com Endoro não deve ser nada além de confirmar nosso acordo de paz.
– Se de fato for isso, então que vá um paroler, e não eu.
– Mas você é um paroler, meu primo. Por mais que tenha decidido se tornar um bárbaro, e dos melhores de nosso reino, as suas palavras ainda são mais poderosas que a sua força física. Foi com elas que conseguiu estabelecer nosso atual acordo de paz com os dilamésios. Devemos centenas de vidas a você e sua incomparável habilidade com as palavras.
Tóro não retrucou. Apenas olhava firmemente para Kívio. Ficou assim por alguns segundos, que lhe pareceram horas. Imagens agonizantes de uma guerra vieram à sua mente. Uma guerra que lhe trouxe perdas, sofrimento, ódio. Uma guerra que o transformou em um bárbaro.
Retirou-se sem se despedir. Um paroler seria mais civilizado, diplomático. Mas não o era mais. Ser civilizado não o ajudou. A única diplomacia que Endoro compreendia era a das espadas.
Montou em um dos cavalos dilamésios que estavam à sua disposição. Outros dois cavaleiros daquele reino o aguardavam.
– Senhor Tóro?
O bárbaro nada respondeu. Apenas lançou-lhes um olhar assustador.
– Somos responsáveis por sua segurança até o Muntal. Cavalgaremos até o porto de Bromapé, onde há uma embarcação oficial nos aguardando. Navegaremos até a margem leste do Rio Largo, desembarcaremos no porto de Libória, e continuaremos cavalgando até Damasco.
– Responsáveis por minha segurança?
Tóro deu uma estrondosa gargalhada e disparou com o veloz cavalo, forçando os dilamésios a seguirem seu ritmo. Levaram menos de meia hora até alcançarem o porto de Bromapé, onde outros soldados dilamésios os aguardavam. Rapidamente embarcaram e começaram a fazer a travessia para a margem leste do Rio Largo, a fronteira natural entre os reinos dilamésio e xetriquênio.
Uma outra embarcação começou a aportar. Tóro reconheceu que era um pesqueiro. Quando adolescente, chegou a trabalhar em alguns deles, partindo para alto mar, para caçar serpentes marinhas, tão necessárias para a economia do reino de Xetric. Pela experiência que tinha, supôs que aquela embarcação estava repleta dos répteis aquáticos. Ultimamente, aquele tipo de caça aumentara. As recentes chuvas haviam deixado o mar mais agitado e perigoso.
O leve balanço da embarcação durante a travessia era como uma hipnose para Tóro. Sempre que a fazia ficava divagando em memórias que insistiam de residir em sua mente. Memórias doces, alegres, revitalizantes, de uma época em que o ex-paroler sentia-se o homem mais feliz em toda a ilha de Fesgra. Memórias que tornavam ainda mais dolorosas as lembranças agonizantes da perda de sua família, de sua fé nas pessoas e de sua esperança de que um dia seu povo se tornaria livre do domínio dilamésio.
Memórias que sempre culminavam no dia em que jurou fidelidade ao Rei-Maior Endoro em troca de um acordo de trégua e paz. “Devemos centenas de vidas a você e sua incomparável habilidade com as palavras”. Talvez Kívio não soubesse o quão doloroso para Tóro era ouvir aquela frase. Sua habilidade como paroler conseguiu evitar que seu povo fosse dizimado pelas forças de Endoro e as poderosas Armas de Zilon. Mas foi um acordo que veio tarde demais. Lágrimas escorreram pelo rosto do bárbaro. Seu olhar estava perdido em memórias doces de sua amada esposa, em lembranças das divertidas caminhadas pelos bosques com seus filhos em busca de madeira para fazer lenha.
– Senhor...?
Tóro pareceu sair de um transe. Fitou rapidamente o soldado dilamésio.
– Sim...? – falou com voz grave, enxugando as lágrimas.
– Já chegamos. Estamos desembarcando.
O xetriquênio estufou o peito, parecendo ficar mais robusto do que já era. Olhou para o horizonte e avistou a ponta de algumas torres do Muntal. Respirou profundamente mais uma vez e caminhou para o desembarque, com toda a sua imponência de bárbaro, deixando para trás as suas doces e amargas lembranças de quando era um tolo paroler.
Foram várias horas de cavalgada até alcançarem os majestosos portões de Damasco, já noite. Tóro percebeu um outro grupo de dilamésios chegando, escoltando um príncipe de um outro reino também submisso, Kan-Potras, na fronteira sul de Dilames.
Serviçais recepcionaram o bárbaro e o conduziram pelos corredores do Muntal até um aposento.
– Seja bem-vindo, senhor. Amanhã, pouco antes do almoço, o Rei-Maior o receberá no Salão das Decisões. – informou uma das mulheres, que parecia ser a responsável pelas demais, fechando a porta do aposento atrás de si.
O xetriquênio deitou na confortável cama e começou a especular sobre o que Endoro trataria no dia seguinte. Seria sobre o acordo de paz? Foi Tóro quem o negociou com o próprio Rei-Maior, mas isso foi em um momento de guerra, quando era oficialmente um paroler. Agora, que os dois povos estavam em paz, esse era um assunto para ser tratado entre reis, e não com um bárbaro. E por que o príncipe kan-potrense estava ali? Também foi convocado por Endoro para essa mesma conversa? Conhecia um pouco de sua história: um príncipe por direito, mas que havia optado por ser um guerreiro. Um bravo combatente nas guerras que seu povo travou com as forças de Endoro na busca de independência, assim como os xetriquênios.
O estranho era que o príncipe não gostava de política, não sabia resolver assuntos diplomaticamente, como seria de se esperar de um nobre. Se seria para falar dos acordos de paz, qual a razão dele ter sido chamado, ao invés do rei?
Não, não podia ser sobre os acordos de paz ou qualquer assunto político. Sobre o que então? Ouviu o relinchar de cavalos. Foi até a janela, numa curiosidade tola. Mais um grupo que escoltava um convocado. Era um homem de longos cabelos de um rubro tão intenso que parecia labaredas. Não o conhecia, mas pelo jeito também participaria da reunião do dia seguinte.
Voltou para a cama. Os olhos custavam a fechar. Sabia que teria de aguardar muitas horas ainda para saber do que se tratava. Alisou a longa cicatriz que marcava seu rosto. Pensou em caminhar pelo castelo até que o sono viesse. Desistiu. Havia sentinelas espalhadas por toda parte. Fariam centenas de perguntas sobre o que ele estava fazendo rondando o castelo altas horas da noite. Ficaria aborrecido com isso, sentiria uma incontrolável vontade de pegar os soldados pelo pescoço e esmagá-los. Deu um sorriso. Até que seria divertido e relaxante. Ficou imaginando milhares de formas de se divertir com os patéticos soldados dilamésios.
E assim conseguiu adormecer.
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