O dia que Renan soube a verdade
Missaire estacionou sua moto vermelha em frente à casa de Leonardo, e o viu abrir a porta. Era uma tarde de domingo com um sol quente e agradável, típico da estação.
- E aí! – Ela o cumprimentou, guardando as chaves no bolso da jaqueta. – Como foi lá no interior?
- Intenso. – Se abraçaram rapidamente. – Bem intenso.
- Como assim?
- Marine até que aguentou a carga emocional de ter que lidar com a lembrança que a casa da avó lhe traz. – Missaire sorriu, orgulhosa pela força da amiga. – Mas acabamos nos enfrentando novamente.
- Isso não me surpreende.
Leo abriu a porta de sua casa, mas antes deu uma olhada para a silenciosa casa de Renan. Esperava que os dois não estivessem brigando, embora achasse difícil depois da cena que o amigo criara na casa da avó.
- É... Começou assim...
(...)
- A Marine é a melhor garota do mundo, sinceramente! – Missaire exclamou, sorrindo. – Gente, como pode só me dar orgulho?
Leonardo revirou os olhos, mas sorriu também.
- Eu não aguentei, de verdade. Tinha que falar para ela.
- E como você se sentiu?
- Eu não a quero longe, nunca mais. Não dá. - Missaire colocou as mãos nas bochechas e sorriu, emocionada. – Mas eu preciso me resolver com a Cristina.
- Sempre aquela vaca desprezível... Impressionante!
- É, eu preciso falar com ela. O Renan precisa saber de nós dois.
- E por onde ela anda, hein?
- Boa pergunta, mas como toda pessoa indesejada, logo ela aparecerá.
- Antes você precisa falar sozinho com ela. Sabe disso, não é?
- Sei. E sinto que esse momento não vai demorar a acontecer. – Os dois sentaram no sofá.
- E o Renan?
- Ele fez a maior cena na casa da avó ao falar do “namoro” dele com Marine. Nem a tia Lana acreditou, inclusive, chegou a perguntar para ela se realmente era verdade.
- E aí? – Missaire não conseguia segurar o sorriso no rosto.
- Ela disse para a Marine que os dois não tinham nada a ver. Eu nunca vi o Renan tão puto na vida. Saiu da casa da avó gritando que a mãe não o apoia em absolutamente nada, que ele sente falta do pai e tudo mais. – A garota franziu o cenho, surpresa. – A viagem para cá foi um silêncio só.
A conversa durou até o início da noite, pois Missaire recebera uma ligação do trabalho e precisou voltar para casa. Sozinho, Leonardo se viu dentro de uma onda nostálgica que envolvia a ex-namorada. Caminhou até seu quarto, abriu a porta do guarda-roupa e buscou uma caixa vermelha escondida embaixo de sua gaveta de meias. Abriu ela lentamente e passou a mão pelas cartas e presentes que receberá de Cristina, na época em que namoravam. Depois do fim, diversas vezes se pegou revendo aquelas memórias e tentando entender onde falhara. Viu uma foto dos dois na adolescência. Era evidente como já havia uma diferença gritante entre eles. Cristina era confiante e exibia um sorriso contagiante. Leo era contido em seu meio sorriso. Hoje, adulto, soubera entender que o relacionamento deles fora fatal para sua autoestima.
“Eu amo tudo o que você faz me faz sentir. Amo o seu sorriso gentil, o seu cheiro e o seu toque.” – Leu a frase escrita na carta dobrada de Cristina.
Leo segurou o celular e discou os números da ex-namorada, ela o atendeu prontamente. E como ele já imaginava, a sua primeira frase fora cheia de deboche.
"Olha só que milagre! Saudades de mim, Leo?"
- Nós precisamos conversar.
"Ah, você não vai começar de novo com o papo chato de que o Renan precisa saber de nós dois e blá, blá, blá!"
- Precisamos conversar sobre nós dois.
"Como assim?"
- Conversar, Cristina. Nunca conversamos depois do término. Tivemos discussões e brigas, mas eu nunca pude falar tudo o que penso.
"Não falou porque você não quis. Você sempre foi introspectivo comigo em relação ao nosso término."
- Eu não vou discutir com você por telefone. Precisamos conversar. Só isso.
Ele finalizou a ligação e guardou o celular no bolso. Voltou a olhar as memórias que o lembravam do namoro, da adolescência e de toda a combustão emocional que também o fazia lembrar da morte de sua mãe. Tudo ocorrerá em um tempo curto demais para ser processado. Preso à suas próprias lembranças, deu um pulo, assustado, ao ouvir a campainha de sua casa tocar alguns minutos depois.
“Será que é a Marine?” – Se perguntou, com leve esperança de que poderiam resolver a briga na casa da avó dela. “Não. Eu a conheço... Sei que não falará comigo tão cedo.”
Ao abrir a porta, deparou-se com Cristina parada na sua frente.
Inegavelmente sabia que ela era uma presença que mexia com ele, mas também sabia que lhe causava calafrios. Como se com ela ali viesse uma enxurrada de problemas.
- Você sabe que eu tenho ansiedade e continua fazendo essas coisas que me deixam completamente doente, não é?
- Como conversar, por exemplo? – A pergunta fora devolvida com deboche.
Ela passou por Leonardo como um furacão cheio de charme e poder. Olhou para a casa dele, sem se atentar a nada em específico.
- Eu ainda tenho muita raiva do dia que você me expulsou daqui.
- Você mereceu!
- Me poupe, Leonardo, sério! Você dramatiza uma coisa que já foi deixada para trás há anos! Para que desenterrar isso?
- Porque EU quero! Como é que você consegue viver com isso e não sentir culpa?
- Você pensa que eu não sinto culpa por me caracterizar como um monstro, mesmo eu tendo dito a você que não sabia da amizade de vocês dois.
- E quando você soube também não terminou com o Renan! – Cristina respirou fundo. – Você me magoou, Cristina! Você me magoou por muitos e muitos anos e ainda assim me sinto emocionalmente preso à você. Isso me impede de seguir em frente e eu não aguento mais não conseguir seguir em frente por sua causa. Isso não é justo comigo!
- E tudo isso é pra você ficar com a cadelinha gótica da prima do Renan?
- Ela não é cadelinha! – Ela soltou uma risada debochada que fez as estruturas do rapaz estremecerem. – E o que eu tenho com ela ou deixo de ter não é da tua conta!
- E se ela te deixar como eu o deixei pelo Renan?
Leo colocou a mão no rosto, impaciente em como Cristina batia numa tecla desnecessária. O problema não era somente Marine. Ela era um dos pontos, mas não o principal.
- É uma escolha somente dela, você não acha?
- Quer dizer que eu preciso perder tudo por causa da sua paixão por aquela insossa?
A pergunta foi mais do que suficiente para Leonardo perder o controle. Ele puxou Cristina ao seu encontro de forma agressiva.
- Você é tão tapada a ponto de não entender que o problema não é a Marine e sim a MENTIRA que nos liga? Pelo o amor de Deus, para de se preocupar com quem eu estou ou com quem Marine está e comece a pensar em como o Renan vai reagir a tudo isso! Já entendi que você não está nem aí para o que eu senti naquela época, mas pensa NELE! - Ele a empurrou contra o sofá, sem se preocupar com seu descontrole. – Eu simplesmente não aguento mais. Você é suja e imoral! E de hoje não passa esse assunto!
Ele ficou de costas para ela e quando se virou novamente, foi atacado com um beijo apaixonado que só parou quando duas figuras surgiram em frente a sala. O silêncio era cortante.
- Renan, eu posso explicar... – Cristina deu dois passos até ele, mas foi empurrada para o chão. O ex golpeou Leonardo com um pesado soco no rosto. Braços femininos tentavam separar os rapazes, mas parecia impossível.
“COMO VOCÊ PÔDE?” – Renan perguntava, enfurecido, sem dar tempo de Leo explicar a verdade. Numa única deixa Marine conseguiu se por entre os dois e fez, enfim, o primo ouvir a verdade.
- É SÉRIO QUE VOCÊ ESTÁ AGREDINDO SEU MELHOR AMIGO SEM SE PREOCUPAR EM ENTENDER QUE A GRANDE MENTIROSA É A SUA TÃO PERFEITA CRISTINA? – Um pouco atrás de Renan era possível ver Cristima aos prantos.
- DO QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO SUA IMBECIL?
Leo colocou a mão na cintura de Marine, sentindo dificuldades de respirar.
- Ela está te dizendo que quando você conheceu a Cristina ela tinha terminado comigo na época da morte da minha mãe. Ela terminou comigo para ficar contigo, cara! E em todos esses anos nunca tive coragem de te falar a verdade, pois, você parecia feliz, mas essa mentira chegou num nível absurdo e eu simplesmente não aguento mais.
- VOCÊ É UM MENTIROSO, UM FILHO DA PUTA MENTIROSO! – Esbravejou contra o melhor amigo. – A Cristina nunca faria isso comigo, não é, amor? – Não houve resposta. O silêncio dela falou por todos eles e aquilo estarrecedor. – Cristina?
Ela engoliu seco, sem conseguir falar, apenas chorava incansavelmente.
Marine deu apoio a Leo que tossia seco e os lábios sangravam muito.
- Não é mentira, Renan. Basta fazer as contas. Se você se esforçar um pouco se lembrará que no dia que a me apresentou eu tinha recém terminado com a minha namorada misteriosa. Tudo se encaixa, é só você pensar.
Renan encarava Cristina em silêncio. Marine acompanhou o olhar dele e sabia o que se passava ali na cabeça dele. Ela ajudou Leonardo sentar no sofá esperando o pior da reação do primo, mas surpreendentemente, após a ficha cair, saiu da casa sem dizer uma palavra.
- RENAN! ME ESCUTA!
Cristina saiu atrás dele, e quando Leo fez menção de imitá-la, Marine o impediu.
- Ele precisa me ouvir, Marine! – Exclamou uma indignada e quase chorosa voz masculina ao seu lado.
- Sim, ele precisa, mas agora não adianta você tentar falar. Ele não vai ouvir ninguém! – Ela o abraçou de lado, tomando cuidado para não o machucar. – Você está muito machucado, vamos ao hospital!
- Não, hospital não, por favor... – Ele segurou a mão de Marine. – Eu detesto hospital, só preciso de um banho e tudo ficará bem.
- Eu te ajudo a ir até o banheiro.
A caminhada foi difícil. Leonardo respirava com dificuldade e precisou do auxilio dela para tirar suas roupas. No final, o banho que era para um tornou-se à dois. Demorou algum tempo para que ela ouvisse a voz dele.
- Eu estou me sentindo livre, mas triste, muito triste. Entende isso?
- Sim, entendo. É um sentimento normal, mas pesado de se carregar. – Marine tocou delicadamente o lábio dele, que sentiu dor. – Tem álcool?
- Tenho uma caixinha para ferimentos que está no armarinho do banheiro. - Ainda de toalha, ela foi até banheiro e pegou a caixa de ferimentos e cuidou dos machucados deixados por Renan. – Obrigado.
- Pelo o que?
- Por ter me incentivado a fazer o certo.
- Olha, por um momento eu pensei em desistir de você... – Brincou, arrancando um sorriso dele. – Sabemos que o Renan não reagiria bem a nada disso, mas acho que com o tempo ele entenderá.
- E se ele não quiser mais ser o meu amigo?
- Quem perde é ele, não? Ser amigo, Leo, não é passar a mão na cabeça e fingir que entende tudo que a outra pessoa faz. Por anos você manteve essa mentira para vê-lo feliz. O que adiantou?
- É, você está certa.
Ela ajudou o rapaz a se vestir, tomando cuidado para não tocar nas áreas em que ele fora atingido por Renan.
- Pronto. – Ele a abraçou carinhosamente. – O que foi?
- Eu sei que você pensou em desistir muitas vezes... – Os olhos castanhos encontraram os azuis. Com algum esforço, Leo ficou de pé. – E caso tivesse feito isso, eu mereceria. – Ele tocou seu rosto. – Você é uma pessoa incrível, Marine.
Ela o beijou de modo casto, preocupando-se em não o machucar. Naquele momento alguma coisa tinha sido restabelecida entre os dois, além da confiança e cumplicidade, Marine agora tinha rompido a barreira da insegurança que impedia Leo de seguir em frente. Agora eles se tinham, se completavam e por ora não haviam obstáculos para afastá-los.