Capítulo 1 – O Desconhecido Me Conhece
O sol invadiu meu quarto antes do despertador tocar pela terceira vez aquela manhã. Com preguiça espreguicei um braço e com o outro aterrizei a mão no despertador do celular parando aquela droga de uma vez. Tomar banho, escovar os dentes, comer algo correndo, dizer tchau aos meus pais e sair para a escola de bicicleta. Como sempre eu estava atrasada e só pude fazer a velha trança no cabelo comprido, vestir minha amada jardineira azul e encarar o primeiro dia de aula no sombrio ensino médio.
Cris já me esperava impaciente na porta do colégio e me dá leva tapa assim que me vê descer da bicicleta. Facilmente irritada, ela esbraveja:
— No primeiro dia de aulas Dani! Você me prometeu que ia chegar cedo, poxa! - Não pude evitar o dar de ombros e o sorriso para a cara emburrada dela. A raiva dela não durou muito e estamos nos abraçando no segundo seguinte com saudade. Cris é minha amiga desde o jardim de infância e estava de férias com sua família no Havaí para minha total inveja. Como posso perceber logo de cara, está toda da cor do sol de tantos dias na praia e suas bochechas parecem maiores que de costume, provavelmente porque comeu tudo que tinha direito enquanto ficava horas deixo do sol de verão.
— Não pude evitar fiquei até tarde vendo série… E além do mais é o primeiro dia de aula, com certeza podemos nos atrasar sem problemas. — Ela concordou e adentramos ao pátio do colégio. Tantos rostos novos, tanta gente diferente. Voltar pra escola é sempre uma novidade todo ano. Na sala de aula, não foi diferente, muita gente tinha mudado algo, seja o cabelo, seja o modo de se vestir, maquiagem aqui e acolá, muitas meninas tinham ganhado seios maiores de repente e os meninos pareciam mais altos e encorporados. O fenômeno da puberdade tinha acontecido pra valer nas férias e tudo o que eu podia fazer era observar atenta aos ânimos exaltados, todo mundo tinha uma novidade, um namoro, algo novo para contar ao colega, menos eu, claro. Cris me contou como a pousada de sua vó no Havaí era incrível e como tinha trocado telefone com um dos adolescentes que também passava férias lá. Ela parecia complemente mudada ao falar dele, seu rosto de acendia em excitação e suas bochechas grandes ficam muito vermelhas em somente citar seu nome. Ela tem trocado mensagens com ele desde então, mas ele mora do outro lado do globo terrestre e provavelmente aquele romance era inviável, o que, claro, eu não podia explanar para ela.
Eu, Cris, Amanda e Vitor estamos felizmente na mesma sala mais um ano, o primeiro ano do ensino médio e eu mal posso acreditar que tivemos mais uma vez essa sorte. Embora Cris seja minha confidente e amiga de mais longa data, ainda posso contar com Amanda desde a 5ª série e Vitor que conhecemos ano passado. Eles são incrivelmente estranhos, mas eu realmente me encaixo bem no meio daqueles estranhos no pátio e na hora do intervalo é com eles que posso sentar e conversar sobre qualquer coisa aleatória que estamos acompanhando na TV nos últimos dias. Estou devorando um pedaço de pão com queijo, quando atravesso meu olhar sobre o pátio e me deparo com o desconhecido. Bom, não tão desconhecido assim, já que infelizmente ele é da minha sala de novo, ele, o Eduardo. Como se eu já não soubesse, ele está lá sorrindo largamente para uma loira novata e delicadamente colocando uma mecha de cabelo atrás de sua orelha. Irritamente ele é assim.
Sem querer solto um suspiro e Cris se volta para mim e me diz baixinho: “Você sabe que ele é impossível, não?”. Provavelmente estou da cor de um tomate de tão vermelha que sinto minhas bochechas ficarem, imediatamente eu me volto para ela: “Eu nem pensei nisso, ele é um babaca, estava só pensando na vida” termino o pão em uma mordida só.
Estou na sala de aula meditando sobre o acontecido no pátio. Eduardo é obviamente a visão clara do típico garoto “tenho-todas-que-quero-e-quando-quero” e isso me irrita profundamente porque as meninas não conseguem ver isso, nenhuma delas. Nenhuma. Por que, vamos analisar… E daí que ele tem ombros largos, um queixo triangular e dentes brancos demais? E uma sobrancelha que erguida imita claramente um galã de TV. Sim e daí? Ainda sim, ele é um babaca. Não posso negar que suspirei por ele nos anos anteriores, mas esse ano não. Esse ano eu posso ver com clareza que tipinho ele é. E tudo que posso fazer é me dedicar aos estudos e esquecer sua existência infernal, mesmo que ele esteja ali, a poucos metros no fundo na sala cantando mais uma pobre novata.
Estou calmamente tirando o cadeado da minha bicicleta quando ergo meu olhar para a direção de um carro grande demais estacionado a poucos metros. Céus, quem iria pra escola com um carro daquele tamanho? Obviamente não demora muito até que eu descubra. Lá, está ele escorado na porta do carro, correndo os dedos na tela de seu Iphone, rico demais para ser real naquele colégio. Eduardo, claro. Paro em um movimento boquiaberta por alguns segundos e me pergunto: quando raios ele tirou carta? Seus pais são loucos a esse ponto de dar um carro daquele tamanho para um adolescente? — É nesse milésimo de segundo que seu rosto se ergue e me encara e eu louca, infantil e descompensada encaro de volta sem pensar muito. Ele sorri. Droga. Subo na bicicleta em um pulo e saio em disparada com direção a minha casa. Puta merda. Ele sorriu pra mim. Por que? Por qual raio de motivo? Pedalo loucamente com medo de olhar pra trás ou se quer imaginar que mais alguém viu aquele sorriso. Provavelmente foi algo bobo, sem importância ou coisa da minha cabeça, talvez? É, eu imaginei.
Enquanto bebo água na cozinha de casa, concluo que não imaginei. Ok, então, se não imaginei: Por que ele sorriu pra mim? Subo as escadas em direção meu quarto e minha cabeça parece em completa combustão de pensamentos rápidos demais para serem processados. Foi só um sorriso aleatório, mas depois de anos de admiração oculta minha, isso, claro, me deixou em êxtase, como a idiota romântica que sou. Foi só um sorriso, ele nem sabe meu nome, nem sabe que eu existo. Provavelmente ele sorriu ao perceber que mais uma menina estava boquiaberta com aquele gigantesco carro que ele tinha aos 16 anos. Ou somente o sorriso não era pra mim. Isso, claro! — meu celular toca.
— Alô – atendo.
— Tá fazendo o que? Vem na minha casa ver filme. Vai passar um legal daqui a pouco. — Era Cris e eu estava feliz demais em sair daquele precipício de pensamentos. Corri para um banho rápido e sai. Minha mãe era enfermeira e tinha plantão as segundas, quartas e sextas e meu pai trabalhava em uma fábrica em outra cidade e as vezes eu ficava sozinha demais em casa. Cris sabia disso e sempre inventava algo para me tirar do tédio. Eu ia na casa dela ver filme, fazer brigadeiro, ver revistas, escutar músicas, dormir, conversar, fazíamos penteados ousados e experimentávamos maquiagens horríveis uma na outra. Era bom demais, sempre. As vezes ela vinha na minha casa também e reuníamos toda a galera para fazer sessão cinema ou inventar de cozinhar qualquer coisa que Amanda inventasse. Assistíamos e reassistíamos videos no Youtube e em uma tentativa (quase sempre falha) de fazer mirabolantes receitas. Eram sempre as melhores tardes. Pena que sempre vinham provas, problemas na família de um ou de outro e afazeres aqui e acolá que impedia mais tardes como aquelas.
— Vou pegar água, quer?— Cris está vestindo seu pijama de golfinhos que a deixa horrorosa e infantil, quando levanta e pega água para mim da cozinha. O filme era igualmente horrível, um terror sem dar qualquer susto e muito lento. Cris concorda comigo e resolve conversar: — Desde ontem ele não me responde. — ela diz sem me encarar e posso dizer que segura um choro.
— Quem? — pergunto encarando a TV. Ela suspira e responde sem paciência: — Quem tu acha Dani? O Arthur. O menino que conheci no Havaí óbvio. Ele fica online e não responde. Não sei o que faço. Se ligo, se ignoro. Se esqueço, se mando mais alguma mensagem. — Fico em silêncio. Ela nunca ficou assim tão nervosa por causa de um garoto. E ela já teve pequenos romances anteriormente. Por que esse parecia diferente? Eu queria dizer algo útil, mas tudo que consigo pronunciar é: — Deixa pra lá. Talvez ele já esteja em outra. — E dou uma risada nervosa. Merda. Eu sou uma péssima amiga. Ela está chorando agora. Não sei aconselhar ninguém obviamente. Corro para abraçá-la e fico em silêncio enquanto acaricio seu cabelo. — Por favor, não liga para o que eu falo!!! Eu falei brincando… Eu…. — ela me interrompe: — Você é uma péssima conselheira eu sei. — ela diz entre soluços. Que alívio, não parecia tão grave. Caímos em uma risada nervosa no minuto seguinte e ela parece mais calma. Talvez eu deva contar. É, talvez eu deva:
— O Eduardo sorriu pra mim no estacionamento hoje de manhã. — Eu digo de uma vez despreocupadamente, como se aquele sorriso não tive significado absolutamente nada para minha cabecinha de vento. Engulo um longo gole de água e encaro a TV com a minha melhor cara de desdem. Cris está me olhando sem piscar e tudo que ela consegue dizer é: — O que? Como? Por que? — Eu não deveria ter contado, não foi tão importante. Foi só um sorriso, droga.
— Foi só um sorriso. Eu não sei porque ele fez isso. Eu não sei. Só vi que ele agora tem um carro enorme e ano passado, ele nem dirigia né? Então fiquei surpresa e fiquei olhando um pouco, talvez ele tenha percebido e sorriu porque é um convencido.
— Ok, se não foi tão importante, por que está me contando? — Eu odiava como ela me conhecia tão bem.
— Eu sei lá porque estou te contando isso. Estou com fome. Vou assaltar sua geladeira. — Levantei o mais rápido que pude e corri para a cozinha. Embora eu nunca tenha dito com todas as letras a ninguém em alto e bom som, Cris podia adivinhar que eu tinha uma queda por Eduardo. Quedinha essa que estava resolvendo dentro da minha cabeça. Eu só tinha que odiá-lo por ser tão bonito e rico e principalmente por sair com tantas meninas o tempo todo. Se eu conseguisse odiar esse tipinho que ele era, seria mais fácil enterrar minha quedinha por ele. Afinal, metade das garotas tinham uma quedinha por ele. Por que caralhos eu não podia simplesmente ignorar sua existência? Até porque eu era invisível, a escola ia acabar algum dia e seguiríamos nossas vidas, cada um seu rumo.
Terça-feira. Estou de novo atrasada. Claro.
Estaciono minha bicicleta descabelada e afivelo o resto da minha jardineira, porque em casa não deu tempo. Cris me olha com desdem e não comenta meu atraso, ela já está acostumada. Caminhamos pelo corredor e abrimos nossos armários. Ela está meio distante hoje, pude notar. Quando fecha o armário me encara e diz: “Ontem ele respondeu.” — Faço um esforço para assimilar de quem ela está falando e então me lembro. Arthur. — O que ele disse? — pergunto enquanto encaixo um livro na mochila. — Disse que eu fui um romance de verão. E que eu deveria parar de mandar mensagens, porque ele tinha namorada. — Eu paro. Encaro o rosto sem expressão dela e quero abraçá-la, mas se eu fizer isso provavelmente ela vai me odiar porque ela está a um passo de cair no choro. Droga. Eu odeio os homens. Apesar de tudo ela parece conformada e se mostrando forte ao segurar um choro preso nos olhos. Sua voz ficou embargada ao final da frase, mas ela parece firme e decidida a não chorar. Eu não vou incentivar o choro. — Que babaca! Mandou ele à merda?
— Com certeza — ela diz enquanto anda na minha frente. Ela não quer que eu veja o quanto ela está abalada. Eu posso fingir que não notei. Na sala de aula, ela mal consegue dizer duas palavras, não escreve nada no caderno e fica com a cabeça pendida para um lado em um disfarce mais que perfeito para que ninguém pergunte. Ainda bem que Amanda é desnorteada demais para notar e Vitor é nerd demais para não prestar atenção na aula. Só eu posso ver que ela está puta e sentida. Como ele podia ter namorada se ficou com ela o verão inteiro? O que será que aconteceu com eles? Eles foram até o finalmente para ela ficar tão abalada? Ela sempre fica chateada quando leva um fora, mas dessa vez ela estava muito chateada. Até demais.
— Você vai me contar o que rolou entre você e esse Arthur lá no Havaí ou eu vou ter que adivinhar? — Eu digo finalmente quando estou tirando o cadeado da minha bicicleta. Ela estava se preparando para ir embora quando digo essas palavras e ela hesita. Para de costas pra mim e eu posso adivinhar que aconteceu tudo. Droga. A primeira vez dela tinha sido com um babaca?
— Aconteceu sexo. — Ela diz sem delongas e minha boca caí. Por que raios ela tinha tido a primeira vez com uma pessoa que nunca mais veria em potencial? Era obvio que o cara nunca mais falaria com ela, até porque ele mora em outro continente. Merda Cris. Merda. — Por que não me contou? A gente se falou no telefone o tempo todo e você não me contou nada disso. — Eu largo a bicicleta e corro até ela. Abraço ela e ela finalmente chora. Por longos quinze minutos ininterruptos ela chora no meu ombro e eu só consigo alisar sua cabecinha oca pensando o que ela estava pensando para fazer tamanha merda.
— Eu…. Sabia que… não podia…. Te contar…. — ela está soluçando. — você…. Poderia me julgar…. Mas…. Simplesmente…. Aconteceu. — Ela realmente me conhecia, porque sim, eu estava lá julgando ela abertamente dentro da minha cabeça, mas sabia que agora não era o momento de dar um esporro nela e sim tentar acalmá-la. O choro cessou depois de um instante e ela estava olhando por cima do meu ombro com uma expressão de espanto de repente. Eu me virei quando notei aquela expressão e vi um garoto levantando minha bicicleta e encaixando no bicicletário com cuidado, quando subiu o rosto lá estava Eduardo sorrindo de novo. Raios. — Você devia tomar cuidado ao deixar a bicicleta sem cadeado largada assim no chão, alguém pode pegar e sair correndo. — Ele disse despreocupadamente enquanto andava em direção seu carro. O sorriso ainda correndo seus lábios. Mas que merda foi aquilo? Eu não consegui pronunciar uma palavra se quer. Ele virou de costas e eu quis agradecer, mas, ao mesmo tempo, era tarde demais. Ele não me ouviria. Virei-me para Cris e ela tinha imediatamente parado de chorar e acompanhava com o olhar encantada o desfilar de Eduardo para longe. Ótimo. Maravilhoso. O encanto daquele ser era real, em toda e qualquer mulher. Até mesmo ou talvez principalmente na minha melhor amiga.
— Cris? — indaguei enquanto estalava dois dedos na sua frente.
— Você viu aquilo? Ele se preocupou com a sua bicicleta! A sua! Tem um monte de bicicleta jogada aqui, mas a sua ele percebeu!!! — Não havia o menor sinal da menina chorosa de minutos antes. Ela estava extasiada. — Ele tava passando e percebeu caída, só isso. E daí? — Estava tentando controlar um possível surto de emoções aparente enquanto dizia essas palavras. Droga, por que ele tinha que falar tudo sorrindo? — Me despedi de Cris e prometi conversar com ela mais tarde depois do almoço das meninas que minha mãe preparava sempre que estava em casa. Os horários dela como enfermeira eram meio loucos e ela se sentia culpada por diversas vezes não ter estado presente na minha infância. Assim como meu pai e a fábrica que comandava sugava demais o tempo da semana, então eu sempre tinha alguns agrados, como presentes fora de época e almoços especiais preparados toda terça-feira.
Essa terça é macarrão paraisense, meu predileto, e salmão grelhado. Estou comendo muito devagar, pensativa demais e minha mãe percebe: — Tá tudo bem Danielle? — De supetão deixo cair o garfo na mesa. Estava me lembrando daquele sorriso maldito de novo e como ele nunca antes tinha falado comigo, mesmo estudando na mesma sala que eu desde a segunda série. Por que ele se importaria com a minha bicicleta? — Tá tudo bem. É só a Cris. Ela… — droga o que eu ia falar da Cris? Não posso contar isso pra minha mãe. —… Ela estava me contando do Havaí e fiquei com inveja demais depois de ver as fotos. É só isso. — Minha mãe apertou os olhos e fingiu engolir aquilo. Claro, eu não sabia nem mentir. Ela sabia que eu tinha inventado algo de momento ali. Desvio o olhar e tento falar sobre o tempo. Vai chover. Minha mãe corre para tirar as roupas do varal e acho que consegui escapar de mais perguntas dessa vez.
De volta ao meu quarto abro o notebook, navego no meu facebook e recebo uma notificação de repente. Cacete. O Eduardo curtiu uma foto do ano passado em que estou marcada. Sim, claro. Não estou somente eu na foto. Tem o Vitor, Amanda, Cris e um cara que esqueci o nome. Mas a foto é do ano passado… Por que só hoje ele curtiu? Por que essa foto? Investigo mais e descubro que o cara que postou a foto chama-se Rodrigo e foi nosso entrevistado em uma pesquisa para um trabalho de seminário. O cara tinha simplesmente compartilhado a foto novamente marcando um ano daquela foto. Ufa. Que susto. Foi algo comum não? Certo. Rodrigo tem Eduardo adicionado. Foi coincidência. Sim, claro que foi. Eu não tenho Eduardo adicionado e nem em meus sonhos poderia imaginar ele curtindo algo meu, mas o susto do momento me deixou elétrica. Cris me liga no minuto seguinte. É claro que ela viu a curtida. Posso adivinhar a excitação na voz dela no telefone.
— Você viu a mesma coisa que eu???? — Ela está quase gritando. — Sim, eu vi. Estávamos marcadas. A foto foi repostada. Nada demais. — Tento parecer o menos interessada possível. — Você não está entendendo? Ele foi buscar você na rede. Essa foto foi repostada ontem no final do dia. Por que ele curtiria agora as 15:45? — Cacete. Eu não tinha visto a hora. Estou andando em círculos no meu quarto. Eu queria dar uma boa desculpa para Cris, mas parecia fazer sentido, mas eu era invisível, mas ele nunca falou comigo. Ok, deveria existir alguma explicação lógica. — Ta aí? Tá me ouvindo? Menina, essa foto foi postada ano passado. Mesmo que tenha sido compartilhada ontem, por que ano passado ele não curtiu? — Cris. Cris. Droga. Cala a boca to tentando pensar eu martelo na minha cabeça esse pensamento.
— Cris… para de fantasiar. Ele… só curtiu uma foto e….— ela me interrompe com palavras rápidas demais para processar.
— E sorriu para você um dia desses sem motivo no estacionamento. E pegou sua bicicleta hoje e falou com você e está curtindo fotos em que você está. Há algum interesse rolando aí e você devia ir lá no perfil dele e curtir uma foto também para dizer “hey, o interesse é mutuo” — Eu queria não ir pra escola amanhã. Definitivamente eu poderia faltar. É, eu ia faltar. — Cris… você está louca. E eu preciso desligar, tenho que ajudar minha mãe com a louça… e esse Eduardo… eu não tenho o mínimo interesse nele… ele provavelmente está entediado na internet… é só isso. Tchau. — Desliguei. 15 minutos depois de desligar ainda tô deitada encarando o teto. Devo curtir algo em retorno? Adicionar ele? Não, não, não. Claro que não. Encaro o celular. Atualizo a página. Nenhuma notificação. É claro que não. Estou fantasiando. Cris está fantasiando. Por que o cara mais popular do colégio notaria que eu existo? Um jogo? Uma aposta? Tédio? — Entro no instagram dele. Com muito cuidado olho todas as fotos sem curtir nada. A última atualização foi 3 dias atrás jogando futebol sem camisa, claro, na praia. Droga. Que cara lindo. Mais de mil curtidas e comentários de todas as loiras da face da terra. Eu odeio todos. De repente ele está ao vivo no instagram e clico sem querer para assistir. Merda. Merda. Merda. Aparece que você entrou para assistir? Como assim???? Ele está tocando um violão com o cabelo molhado e fica olhando para a tela do celular. Como faz para sair dessa droga? Ele viu que eu entrei, droga. Certeza que ele viu. Eu me odeio, ele viu. Sei que viu. Está sorrindo pro celular no minuto que entro. Morra seu imbecil convencido. Desligo o celular e jogo pra longe. Me forço a dormir a tarde toda para esquecer tamanha vergonha.
Os dias seguintes no colégio seguem sem qualquer demonstração de interesse de Eduardo. Ainda bem, pois eu provavelmente não saberia como agir e era óbvio demais que era fantasia de Cris e da minha louca cabeça de vento. Ainda bem. Respiro aliviada a minha inexistência no colégio. Ele não está lá quando tiro minha bicicleta e não tenho mais qualquer notificação de sua existência em qualquer rede social minha. Tudo caminha como tem que ser. Cris está conformada e muito mais divertida depois de chorar um mês por Arthur e Vitor parece nutrir um interesse especial no que ela anda fazendo atualmente, o que acho, pessoalmente falando, lindinho demais pois eles combinam muito. Eu simplesmente erradio energias positivas para que Cris simplesmente note esse interesse e possa engatilhar um romance com alguém que parece gostar dela de verdade, mas tudo parece passar despercebido por ela e eu só fico na torcida. Como em um piscar de olhos estamos nas provas finais e eu mal posso acreditar como tempo foi veloz. Embora eu sempre tenha ido bem em todas as provas, posso sentir a ansiedade das provas finais chegando.
Nesse semestre decidi ajudar um pouco na biblioteca da escola, pois ganhava pontos extras em alguma matéria que estivesse precisando e eu definitivamente sabia que precisaria em educação física, já que arrumava toda e qualquer desculpa possível para não participar das aulas. Se eu pudesse simplesmente ajudar na biblioteca o dia todo depois da aula e não fazer atividade física, eu estava, com certeza, dentro. Era um serviço simples: arrumar os livros novos que iam chegando por ordem alfabética e gênero, passar um espanador de vez em quando e ajudar algum adolescente desorientado que chegava.
Hoje é segunda-feira e o tempo parece correr devagar demais e estou com sono na biblioteca. Coloco uma mão no queixo e tento não cair no sono, mas fiquei acordada até tarde de novo vendo baboseiras na internet. Eu só queria minha cama. Está soprando um vento no meu rosto enquanto fecho os olhos e me pergunto se tem alguma janela aberta. Abro os olhos e Eduardo está soprando no meu rosto. Dou um pulo para trás e ele está rindo. Estamos quase sozinhos na biblioteca, com exceção da minha “chefe” que faz um “shhh” em sinal para o riso alto de Eduardo. Encaro ele em completo nervoso. Por que ele tem que ser tão babaca? — Desculpe não consegui evitar — ele se inclina em minha direção. O que ele está fazendo na biblioteca? Eu tenho certeza que ele nunca entrou antes ali. Tento fazer a minha melhor cara de “estou sem paciência fale logo que deseja”, mas ele prefere continuar sorrindo. Me aproximo dele, onde fica o batente da recepção da biblioteca e pergunto friamente: — Está procurando algo? Posso ajudar? — estranhamente pareço profissional demais e fico feliz com minha seriedade.
— Física. — Ele diz, como seu pudesse entender o que ele deseja além disso. Como permaneço em silêncio, ele continua: — Eu preciso entender física até as provas finais. Qualquer livro que ensine essa droga. — Mas as provas finais eram em duas semanas, como ele aprenderia física em duas semanas? A matéria de um semestre inteiro? Era impossível. Nos livros só tem calculo, não tem uma explicação tão específica quanto a do professor. Eu não acredito que ele não tinha aprendido nada em sala de aula. — Isso depende muito. Até onde você aprendeu? Em que tipo de calculo parou? — Ele balança a cabeça. O sorriso some. Uma mão vai ao cabelo, a outra está parada no batente batucando algo com os dedos. Ele parece impaciente e eu queria socá-lo de tão lindo. Ele desfila o olhar para os livros atrás de mim. Parece hesitar em dizer algo, então diz:
— Eu não… sei nada de física. Nada. Eu… tirei 3 na primeira prova. Preciso tirar 9 nessa se não repito nessa matéria e meu pai vai me matar… — Ele abaixa o olhar e parece complemente envergonhado. Quero rir, mas seria horrível demais. Nada? Ele não sabia nada? Ele tinha uma nota tão baixa? Era impossível. Ele iria, com certeza, bombar essa matéria. Interessante. Eu nunca imaginaria isso do cara popular & pegador do colégio. Eu só queria rir da cara dele abertamente. Invés disso assumo tom profissional e saio de trás do batente. Me dirijo para as estantes de livros no fundo da biblioteca e pego todos aqueles que acredito ajudar, mesmo sabendo que demoraria algum tempo para ler tudo aquilo. Ele observa tudo com cuidado e vai pegando os livros da minha mão. No total somam-se 4 livros, sendo 3 deles extremamente importantes e um quarto livro apenas zoeira com a cara dele mesmo, porque eu só queria rir. Então digo:
— Procure Leis de Newton, Leis de Kepler, teoremas, ciclo de carnot, energia mecânica, conceitos básicos e velocidade, essas coisas, com certeza, devem cair — Eu enumero enquanto seus olhos atentos me encaram em espanto. E então me afasto dele segurando 4 livros pesados nos braços. Estou me sentindo tão bem. É realmente maravilhoso ver um babaca se ferrando um pouco; enquanto atravesso o salão em passos firmes para longe, ele me chama: — Ei, Danielle! — Como ele sabe meu nome? — Quando me viro para ele percebo que colocou os livros em uma mesa próxima e leva as mãos a cintura. — O que? — digo fingindo impaciência.
— Eu não faço ideia por onde começar. Sério. Qual sua média em física? Quanto tirou na última prova? — Eu tirei 10, claro. Era fácil demais, penso, mas quando vejo eu já disse aquelas palavras em alto som. Droga.
— Eu tenho uma proposta. Eu te pago. Quanto você quer pra me ensinar? Ou só trocar provas comigo? Que tal? Mais fácil, não? — ele diz a última frase em um sussurro sem que Dona Maria escute atrás de mim. Era ultrajante demais, aquele ser tão bonito ser tão imbecil. É óbvio que eu não queria dinheiro e jamais ensinaria ou trocaria provas com ele. Quem ele pensava que eu era?
— É claro que não! Eu não quero dinheiro. Estude. Você consegue. — Me dirijo novamente para longe quando sinto sua mão puxando meu braço, o aperto forte me assusta e eu fico estática.
— O que eu tenho que fazer? Sério, se eu não passar em fisica, meu pai vai tirar meu carro. Ele já disse. Eu não posso bombar em nenhuma matéria… Ok, dinheiro, você não quer. Já entendi. Então, deve ter algo que você precise…. Qualquer coisa….? — Encontro-me parada encarando aqueles olhos verdes esbugalhados demais. Sua mão ainda segura firme meu braço e eu me desvencilho com raiva. Não tem nada que eu queira dele. A não ser socá-lo naquele momento ou rir. Rir seria bom demais. Não me contenho dessa vez. Caio em gargalhada e Dona Maria irrompe em um longo “ssssshhhhhhhhhhh”. Ele me olha, parece indignado em um minuto, mas depois apenas cruza os braços e espera. — Desculpa…. Eu….. — a risada volta de novo. Dessa vez mais contida. — Terminou? — ele diz, mas dessa vez parece realmente irritado. — Terminei — Eu me ajeito e penso por um minuto. O que eu poderia pedir daquele ser lindo e burro na minha frente? A única coisa que cruza minha cabeça são pontos extras para fechar o semestre com nota mínima em educação física e não precisar morrer de sono todas as tardes na biblioteca, mas como ele pode conseguir isso? Impossível, vamos rir um pouco mais dele.
— Eu odeio educação física e estou aqui para somente somar pontos e fechar essa matéria. Eu não quero fazer nenhuma atividade física lá fora. Se você conseguir isso no meu boletim, no meu portal, temos um acordo. — Sua expressão parece divertida de repente. Ele leva uma mão a boca e faz um bico, por que raios ele estava fazendo aquilo? E então ele diz: — Você sabe que o professor de educação física é meu tio né? — Não, eu não sabia. Como eu poderia saber disso? — E claro, seu desejo será uma ordem. Qual seu nome completo? — Isso era tão fácil assim? Impossível, ele estava me zombando.
— Danielle Rodrigues Santos. — Eu digo ainda sem acreditar.
— Considere feito. — Ele estende uma mão. Eu deveria apertar? Se eu apertar vou ter que ensinar física pra ele? E agora? Como? Droga. Onde eu fui me meter. Eu jurava que era impossível. Aperto a mão querendo mudar de ideia, mas parece tarde demais, ele já está saindo da biblioteca. Antes de sair, porém ele diz: — Olhe seu boletim no portal as 15hrs. — e fecha a porta. Merda. Eu fiz merda.