IV.14 – A CURA DE BENJAMIM E SULINA. (ELE, O MEU AMOR... MEU PEQUENO BEIJA-FLOR)
Cap. XXV ao XXVI - (fls.78/93) - O PEQUENO PRÍNCIPE E A RAPOSINHA – Beija-flor/Benjamim e Lobo Guará/Sulina.
______Hoje podemos demorar um pouco mais aqui. O que acham?
______Eu acho é ótimo vovó. Mas... por que podemos demorar hoje?
A artesã sorri.
______Pedi a Mariana para trazer o nosso almoço... hoje é um pic nic de final de verão. E... por que hoje falaremos sobre a cura de Benjamim e Sulina. Alguém lembra o que aconteceu com os dois?
______Eu lembro vovó! A Coralia contou para Valentina que Benjamim sofreu um acidente e depois disso, ele e Sulina, desapareceram do vilarejo.
______Pois bem, contarei o que aconteceu durante o tempo no qual eles estiveram desaparecidos. Lembrando que a pancada na cabeça de Benjamim bloqueou suas lembranças.
______Ficamos tão encantados com as histórias que quase esquecemos dos dois personagens mais importantes.
_____Vamos sentar e ficar em silêncio. Posso cronometrar o tempo, vovó?
A senhorinha acena afirmativamente com a cabeça.
______Então... um, dois e três... shiiiiiiiiiiiii...
Um silencio repleto de encantamento envolve o grupo e tudo o mais ao redor, como se de repente o relógio do tempo houvesse parado.
As crianças olham fascinadas as mãos da vovó passearem sobre a manta colorida, criando contornos, enquanto conta mais uma história.
Os pequenos tem a nítida impressão de que não estão mais na margem do Abapiar, sob a frondosa copa do ingazeiro.
Naquele momento, estão na frente de uma gruta profunda, acompanhando o desenrolar da história de Benjamim e Sulina. A vovó conta todos os detalhes do lugar.
______Ali, na frente da gruta, havia uma cadeira de galhos retorcidos, trançada com cipós. Um banquinho, sobre o qual uma jovem coloca um cesto de cipó. Dentro do cesto, forrado com um tecido branco, estavam arrumadas com capricho frutas, tapiocas, canecas e uma garrafa de café. No chão, uma corda enrolada. Com passos silenciosos ela entrou na gruta e retornou, conduzindo pela mão, um homem cego. Ele tateou devagar até encontrar a pequena cadeira e se sentou.
______Ele ficou cego?
______Cala essa boca Rafael. Você quebra o encanto da história... continue vovó, por gentileza.
E a artesã continua sua narrativa.
______Espera só um pouquinho Beija-flor, vou pegar o balaio que lhe trouxe...
Rafael não se contém.
______Beija-flor? Mas a história não era sobre Benjamim, vovó?!
______Ô Rafael, Benjamim ainda vai chegar. Você não sabe que essas pessoas são outras pessoas? Meu Deus... para de atrapalhar. Afffff
A vovó sorri e continua contando a história. A cena penetra a retina dos ouvintes e abstração se instala. A jovem se afasta, pega o banquinho, sobre o qual deixara o cesto e o entrega ao rapaz. Ele o segura, com firmeza, aproximando do rosto e aspira deliciado o perfume que emana do seu conteúdo.
______São araçás, romãs, pitangas, umbus, gomos de cana caiana... isso aqui... deixe-me ver... são tapiocas de coco, quentinhas ainda... uma garrafa de café...
______Trouxe duas canequinhas também (bate levemente uma caneca na outra, fazendo um barulho peculiar)... vim tomar o café da manhã com você! O dia está lindo Meu Pequeno Beija-Flor! O sol está brilhando num céu limpo e incrivelmente azul... parece que hoje vai fazer um calor daqueles!
______Guará, aqui estamos a salvo do calor excessivo. A queda d’água refresca toda a gruta. (põe um araçá na boca e sua expressão é de puro deleite)... hummmmm, está madurinha, doce e cheirosa feito flor na primavera... experimenta!
Rafael faz menção de questionar alguma coisa, mas Petrônio coloca a mão sobre sua boca, impedindo que fale. A vovó nem percebe, tão absorta está no seu tear e na sua contação.
O jovem cego estende a mão oferecendo a Lobo Guará um pequeno fruto de cor esbranquiçada. A jovem aproxima a boca e morde o fruto. Seu riso ecoa na gruta.
______Uma delicia! (retira delicadamente a casca de uma romã e a entrega ao amigo) prova essa... deixe-me lhe mostrar o sabor das romãs...
O jovem cego pega a fruta e leva a boca, mastigando e sorrindo feliz...
______Estou me sentindo um rei!!! Amo você Guará...
______... eu também te amo Beija-flor... você é a minha razão de estar aqui!
______Guará, quero lhe mostrar como sou bom ouvinte de suas histórias. Sabe aquela do menino que nasceu numa fazenda chamada Adaf Ahnirdam? Pois bem, hoje sou eu quem vai contá-la para você. Sei que perdi a memória. Não recordo nada do meu passado. Não sei quem sou... quem são meus parentes, meus amigos... do lugar de onde vim... nada. Entretanto, percebo que com o passar do tempo... consigo memorizar muita coisa. Principalmente as histórias que você me conta.
______Então, vamos ver até onde você memorizou...
______Está bem. Era uma vez...
Após contar parte da história, Beija-flor se cala, pensativo. Lobo Guará... ao ouvir novamente a palavra Lobo Guará, Rafael se levanta rápido.
______Beija-flor... Lobo Guará... vovó, ela é uma menina. Por quê Lobo Guará?
______Pelo amor de Deus Rafael, você não sabe esperar o final da história não?
______Podemos amordaça-lo vovó?
Todos começam a rir. Rafael se senta e fica calado, meio cabreiro. Sabe que para ouvir uma história, as outras crianças são capazes de mandá-lo embora para casa. E a narrativa continua.
______O que aconteceu? Desistiu de me contar o final da história?
______... não, não. É que de repente uma ideia iluminou meu pensamento... talvez eu haja perdido a minha visão para aprender a ver com o coração. Eu... eu sempre fiz questão de ver... mas isso tornava meus sentimentos confusos porquê... eu sempre observava o exterior... o comportamento das pessoas... entretanto era incapaz de ver o seu interior. Incapaz de entender Sua Alma... sua Essência Imortal. Agora é diferente Guará... sem os meus olhos, aprendi a ver, de verdade! Aprendi a sentir asas me cercando... cuidando de mim, quando tudo parece estar escuro... e não há como escapar da dor! Aprendi a ouvir o que as pessoas me dizem, escutando o que elas são incapazes de verbalizar! E você Guará, perdeu algo ou alguém para aprender uma lição?
______Não, não perdi, o certo é que ganhei uma oportunidade singular... necessitava aprender uma bela lição: confiar! Antes eu desconfiava de todo mundo. É uma história complicada, prefiro não falar sobre ela... pelo menos não hoje. O dia está tão lindo e essa lembrança é tão triste que não quero ensombrecer essa beleza. Outro dia, tá?
______Quer dizer que aprendeu uma lição...
______... cuidar de você Beija-flor, me ensinou que não é a hora marcada para o encontro que me mostra o quanto eu amo você, o quanto você é importante para mim! A certeza de que você existe, em algum lugar e que... qualquer dia a gente pode se encontrar e nos darmos um abraço demorado para 'matar a saudade'... ou simplesmente ver um ao outro, mesmo de longe, mas perto o suficiente para um sorriso e um aceno, isso sim é que é importante! Aprendi que somente o Amor é para sempre. O resto é apenas complemento ou convenção. Aprendi que nada tenho para ensinar... posso simplesmente ajudar relembrar o que está adormecido no subconsciente de cada um!
O jovem acaricia suavemente a face de Lobo Guará.
______Você é o Meu Anjo Guardião! Sabe Guará, quando cheguei aqui, no refugio, guiado por sua mão... no início fiquei com medo, e procurava me esconder quando ouvia vozes, perto da gruta. Aos poucos comecei a distinguir o som dos seus passos, o som da sua voz... e gradativamente fui perdendo o medo dos sons e das vozes! Quando não era você, eu entrava e ficava quietinho... o som dos seus passos me faziam quase correr para fora, para receber seu abraço! Para ver a vida através dos seus olhos... da sua voz!
Rafael se levanta novamente, de um salto.
______Eu já ouvi essa conversa... foi o Lobo Besouro quem falou.
______Eitaaaaa, agora você vai pra casa!
______Esperem, é normal que ele esteja agitado. Vamos deixar passar, por agora. Realmente, Rafael... parece haver uma conexão entre eles mesmo... mas continuemos.
Lobo Guará pára, encantada, ouvindo o amigo dizer da sua alegria ao senti-la perto, ao ouvir sua voz...
______... está resolvido. Hoje é um lindo dia de sol e vamos passear. Não precisamos levar comida, apenas um cantil com água. Vamos?
______Claro! Só me deixa vestir algo mais apropriado... você me trouxe roupas, botas e chapéu... só um instantinho.
Beija-flor entra na gruta, retornando momentos depois, pronto para o passeio. Lobo Guará segura sua mão e o leva pela trilha através da mata. Ele sente o frescor do vapor da cascata penetrar sua epiderme.
______Conheço esse som... esse cheiro! Meu Deus, Guará, pra onde está me levando?
______É surpresa! Quando chegarmos lá, você saberá!
Caminham um pouco mais e de repente Lobo Guará pára. Beija-flor percebe que ela fica de cócoras e toca em sua perna direita, em sinal de que deve levantá-la... ele obedece e sente algo como uma corda ser colocada ao redor de sua perna, ao nível da virilha. Instintivamente ergue a perna esquerda e ela coloca outro laço da corda na mesma altura. Após, prende o laço em sua cintura, formando como que um assento, prendendo-o a uma grande argola que ela iça e prende a um cabo de aço um pouco acima de sua cabeça. O barulho da argola deslizando pelo cabo de aço, dá a Beija-flor a certeza de que essa é uma aventura singular. Seu coração bate acelerado, no peito, como uma ave, recém-capturada, que se debate dentro de uma gaiola, tentando fugir. Agarra-se a corda presa na argola, como querendo se proteger.
______Estamos voando sobre a mata. Está com medo Beija-flor?
______Um pouco... creio que estamos sobre um rio... deve ser profundo... não lembro de saber nadar...
______Você confia em mim?
______Você salvou a minha vida... cuida de mim, como se eu fosse o seu tesouro mais precioso... como posso não confiar em você? (sorri) Claro que confio, Guará, até de olhos fechados! Com você sei que estou seguro.
______... vou te levar para um lugar encantado... lá, Beija-flor, é um portal para outra dimensão... quero realizar um desejo seu. Diga-me, o que você mais deseja nesse momento?
Beija-flor solta uma das mãos e toca, gentilmente, a face de Lobo-Guará.
______Ver a sua face!
______Que seja feita a sua vontade!
Lobo Guará abraça fortemente o seu companheiro e abre a argola que prende a corda ao cabo de aço. A vertigem da queda livre penetra fundo nas terminações nervosas de Beija-flor. O homem sente o impacto do corpo na água fria enquanto afundam na massa líquida, abraçados. Uma fração de segundos e tudo desaparece... de repente uma luminosidade invade sua retina e ele percebe que está enxergando... não são apenas braços que o abraçam... sobre eles, fechando-se ao seu redor, um par de asas iridescentes o protege! Tenta falar, mas a água entra em suas narinas e boca, obrigando-o a tomar impulso e subir. Parece uma eternidade os segundos nos quais ele luta para atingir a superfície e respirar, levando consigo seu fardo precioso: Lobo Guará, silenciosa, como se estivesse morta! Ao chegar à margem do rio, Beija-flor arrasta a amiga, até um lugar seguro. Percebe que Lobo Guará não se mexe. Afasta os cabelos dela, e grita entre assustado e radiante.
______... você... você... você é... SULINA!!!
Ela entreabre os olhos e sorri brejeira.
______Agora posso lhe chamar pelo nome... bem vindo às cores, à claridade, à beleza da vida, Benjamim!
Abraçam-se sorrindo e chorando, felizes como só dois seres bem aventurados sabem ser! Benjamim beija os olhos, a face, os cabelos de Sulina... olha para ela, como se tivesse medo que ela pudesse desaparecer de um momento para o outro.
______... me diga que não estamos mortos, Sulina!!! Diga que estamos aqui, você e eu, vivos...que estou enxergando você... o mundo... a mim mesmo! Diga que não é um sonho... quer dizer... cadê suas asas? Lá, no fundo do rio eu vi... sobre seus braços haviam asas enormes e lindas... pareciam as asas de um Beija-flor! Você me chamou Beija-flor, mas eu não tenho asas, as asas que eu vi eram suas! Você é um anjo Sulina?
______... essa é uma história que você não pode contar a ninguém, promete?
______ (muito sério) Prometo sim!
______Fui enviada pelo meu Mestre, o Arcanjo Haniel, para cuidar de Adaf Anhairdam e de seus habitantes. Você necessitaria da minha ajuda e...
_______... só lembro de quando Coralia me empurrou. Senti uma pancada forte na nuca e... tudo apagou... o que houve? Você por acaso sabe o que aconteceu?
Calmamente Sulina conta tudo como aconteceu naquele dia, já tão distante. Benjamim a escuta, como se o que ela estivesse contando fosse uma história acontecida apenas na sua imaginação...
______Sim, sei, Benjamim! No dia em que você sofreu o acidente, por acaso eu estava no local da discussão, lendo, no meu horário de folga. Vocês não me viram e eu sem querer assisti a tudo, em silêncio. Não podia interferir no desenrolar dos acontecimentos. Coralia estava realmente transtornada após ouvir a revelação de Doralice dizendo que vocês eram namorados. Quando ela lhe empurrou, creio que a intenção era lhe jogar dentro do rio... ela ignorava que você não sabia nadar.
______Minha Nossa Senhora, Sulina!!! Eu estava frito, de qualquer jeito. Morreria afogado, a menos que você me salvasse.
______(sorrindo) ... eu não sei se poderia. Havia mais alguém observando e ouvindo vocês...
______Quem?!
______... Petrúcio!!! Ele seguiu Coralia até as margens do Abapiar... sem que ela o pressentisse! Assistiu toda cena, da discussão até o acidente. Quando Corália correu, ele pegou você e levou até a entrada do “Castelo do Príncipe de T'nom Luza” e o deixou lá. Retomou o caminho, creio que em busca de Coralia, tentando, quem sabe, protegê-la!
______... mas por quê tudo isso? E você...
______Esperei alguns segundos até me certificar que Petrúcio não voltaria tão rápido, e... peguei você, levei-o para dentro do “Castelo”... eu sabia que você estava vivo, pois sua aura vibrava intensamente! E, mesmo que Sua Alma tivesse partido, eu a traria de volta. Era Minha Missão cuidar de você para que nenhum mal o atingisse.
______ Mas Sulina, eu fui ferido mortalmente... o mal me atingiu!
______Havia mais uma pessoa ali, Benjamim, na hora em que Coralia lhe empurrou...
______Mais uma pessoa? Quem?!
______Dona Manuelita ou melhor, O Meu General: O Arcanjo Haniel!!!
______Meu Deus!!! Ela, a mãe de Corália é o seu General? Como pode ser? Eu... eu... jamais imaginaria que um exército de Anjos estava o tempo todo ao meu lado, me cuidando e protegendo... lembro agora do dia em que Gerôncio tentou me matar... Celeste?!
______... sim, ela é um dos nossos! Sua tarefa foi a mais tirana... cuidar de Gerôncio! Tentar guiá-lo para o caminho do Amor... mas ele já havia escolhido a escuridão do egoísmo e da ganância. Celeste se libertou da missão de uma forma trágica, mas foi a única forma que se apresentou para ela, infelizmente! Dona Manuelita... quero dizer, Haniel resolveu cuidar de Coralia, quando ela nasceu e foi abandonada sobre os trilhos da linha de ferro. Corália é, também, um dos nossos, só não sabe ainda... e o resultado foi maravilhoso!!!
______... como assim?
______Benjamim, já se passaram 16 anos, desde que trouxe você para a gruta. Corália, agora é a atenciosa médica e dirigente do Posto de Saúde Santa Clara de Assis. É, também, a amorosa esposa de Petrúcio, o dono da farmácia e motorista da ambulância da comunidade.
O semblante de Benjamim se ilumina e ele ri com vontade. Pelo visto, tudo valeu a pena. Vali Oãs Cricosfan, finalmente encontrou o Caminho, a Alegria e a Paz.
______Meu Deus... Sulina!!! 16 anos? E tudo está bem, assim? Conte-me sobre as outras pessoas. Florisvaldo, Doralice, Narciso, Antenor, dona Manuelita... desculpa, Arcanjo Haniel... Celeste... ela sobreviveu? E Gerôncio, como o meu irmão está?
______Vamos retornar ao vilarejo. Você verá com seus próprios olhos e ouvirá com seus próprios ouvidos, todas as histórias e todos os finais felizes... ou nem tão felizes assim ... mas verá que tudo valeu a pena!!! Vamos?
______Como será que irão me receber depois de tanto tempo?
______Só saberemos indo. Vamos?
______.. só mais uma coisa, Sulina... você nunca mais me deixará sozinho outra vez, promete?
______Vamos?
Benjamim sorri ao perceber que Sulina só repete o chamado, mas não lhe dá uma resposta.
______Está bem, Meu Amor, vamos!!!
_______________________
OBS: em construção...