E Uma Lágrima Cai no Retrato

Era uma manhã de sexta-feira chuvosa. Pouco tempo após o penetrar do incomodo som do despertador em seus ouvidos, o rapaz levantou-se e, por um tempo, ficou a olhar as mudas gotas de chuva do outro lado da janela de seu quarto tornarem espelhos os tetos das casas e o asfalto da rua, refletindo o amarelo das lâmpadas dos postes, no escuro das 05:00 e isso o fazia esboçar um sorriso, esboço que esvaía-se quando lembrava onde iria.

Aprontou-se.

Tomou banho, travou uma batalha com seu já apertado uniforme, escovou os dentes, pôs seus livros na mochila e desceu as escadas para sair.

Lembrou que havia ainda alguma parte, talvez metade, da barra de chocolate que comeu noite passada e decide conferir. Abre a geladeira e a vê.

O garoto reflete durante um tempo, mas dando a si mesmo a desculpa de que não quer se atrasar, rapidamente dá um fim à indecisão e pega o doce, acabando com o mesmo antes mesmo de chegar na porta de casa.

No caminho, o rapaz tentava levantar seu rosto para ver o céu cinzento, enquanto as fortes gotas de chuva atingiam-no. Ele adorava esse tempo e ainda conseguia lembrar do gosto do chocolate que havia comido.

Talvez ele houvesse encontrado naquelas pequenas coisas uma felicidade que há algum tempo não sentia, pois subitamente começou a cantarolar enquanto caminhava no ritmo da canção; quase uma dança, mas a felicidade não era tanta: ele ainda tinha senso do ridículo.

Quando o fluxo de jovens uniformizados começava a se tornar intenso, ao cruzar a esquina e se deparar com aquele prédio de 3 andares, era quando quaisquer rastros de alegria ficavam para trás.

¨É algo fácil de reverter¨, alguns podem dizer, mas na mente dele, não era bem assim. Falar com a diretora? Mesmo que conseguisse provar, a punição dada não seria suficiente e só provocaria mais complicações para ele. Reagir? Fora de cogitação, simplesmente não daria certo. Mudar de escola? Estresse que não queria causar à sua mãe. Aceitar calado? Era a escolha pela qual optava.

Mas o dia estava indo bem, não enfrentou nenhum problema, apenas assistiu às aulas em seu lugar – na primeira cadeira da primeira fileira, perto da entrada – estrategicamente escolhido, pois achava que ali, cercado por mais de 40 alunos, a possível atenção recebida seria menor, enquanto esperava que o capuz escondesse seu rosto.

Quantos haviam chegado? Como exatamente eram? Será que estavam prestando atenção na aula? Ele não sabia. Restringia sua atenção ao quadro, ao professor e à sua mesa e materiais, nada além disso, pois até mesmo uma troca de olhares acidental seria um problema para ele.

Tudo estava indo bem até que o rapaz sentiu algo atingir sua nuca. Algo leve e pequeno. Ele pensa em ignorar, mas o objeto cai próximo a ele, e a curiosidade era maior.

Se tratava de uma bolinha de papel. O garoto a pegou e a abriu.

Ao abri-la, a expressão de desconforto e receio que carregava consigo durante grande parte do tempo deu lugar à de raiva. Ele fecha seus olhos, tenta manter o controle da respiração enquanto ouve somente risadas vindas do fundo da sala. É então que, com suas coxas batendo uma na outra, o rapaz corre em direção aos garotos que fizeram aquilo.

Seu avanço é interrompido quando o rapaz no centro do grupo apenas chuta as pernas do jovem, que cai em cima das cadeiras. Ignorando a autoridade do professor, o grupo segura o garoto para que um deles - que parecia ser o comandante - pudesse judiá-lo mais. Ele pergunta o que o moleque estava pensando, se acha que ele, com aquele corpo, tem alguma chance.

Durante esse blá-blá-blá o menino acha uma brecha para, quando seus rostos estão bem perto, atingir o nariz do cara com uma cabeçada.

No calor do momento, os moleques soltam ele para ver se seu ¨chefe¨ estava bem.

O menino, deixando seus materiais em sala e fingindo não ouvir o professor, apenas corre.

Atropela estudantes, professores, inspetores e sai da escola.

Quando ouve sons de passos batendo forte no chão, como a marcha de um exército desgovernado, se tornando mais altos a cada segundo, ele decide correr em direção à sua casa.

Em nenhum momento consegue abrir suficientemente satisfatória distância, logo, torna-se impossível despistá-los. Trancar-se em casa, mesmo que a mesma não seja tão perto, se mostra, no calor do momento, a melhor decisão.

De alguma forma ele consegue não ser alcançado a tempo e atinge seu objetivo. Ele está dentro de casa e eles, fora.

Depois de passar alguns segundos sem saber se eles haviam ido embora ou não, ele finalmente tem sua resposta ao ouvir uma voz cuja alteração causada pela raiva era assustadoramente nítida. A voz dá o comando para que os jovens arrombem o portão. Eles obedecem.

Poucos chutes são o suficiente.

Nenhum vizinho ouve, ou, ao menos, não se manifesta de imediato.

São 6 no total, incluindo aquele com o nariz ensanguentado.

Seu coração bate desregulada e rapidamente, de forma que apenas um toque com a mão em seu peito diagnosticaria o nervosismo absurdo, e sua mente entra num estado onde não lhe permite pensar de forma racional, tamanho o desespero.

Expressando um medo indescritível em cada parte de seu rosto, o rapaz rapidamente se vê no chão, apenas rastejando para trás, tentando evitar o inevitável.

Poupar-lhe-ei das vinganças prometidas por aqueles em vantagem numérica pois a obviedade é grande.

Peculiar e, talvez até imprevisível, é a ideia.

O nobre comandante, enquanto, pouco a pouco, diminui a frequência com que leva sua mão ao nariz para secar o sangue, manda seus nobres súditos segurarem o garoto.

Caminha pela sala, observa as paredes, o piso e o tapete e entra na cozinha.

Revira as gavetas e finalmente acha o que procurava.

Ordena que cada um segure um membro do menino, estando um segurando sua cabeça com as pernas e mantendo seus olhos abertos com as mãos.

Ele então despeja álcool nos dois olhos da nossa pobre vítima. Pega uma caixa de fósforos - claro, tudo isso enquanto xinga o moleque e diz que ele vai se arrepender e etc. - e acende.

Gritos de dor ecoam por toda a avenida. A mão daquele que mantém seus olhos abertos também queimam, mas a dor só o motiva mais a não permitir que as pupilas se fechem.

Se visto de perto, era possível perceber o branco do globo ocular tomar uma coloração diferente, escura, à medida que o fogo o consumia, além, claro, de muitas lágrimas.

Mais álcool, mais fósforos.

O conteúdo da garrafa e da caixa acabam.

O rapaz desmaia.

Eles percebem que os barulhos podem ter alertado os vizinhos e decidem correr logo dali.

Mas antes que pudessem cruzar a porta, eles ouvem um som.

É o garoto levantando.

Seus olhos estão negros, mas ele não mais derrama lágrimas.

Sentido calor dentro de si, ele, num só avanço, cobre uma distância de 3 metros em menos de 1 segundo e, com um direto de direita, derruba um.

Além da velocidade e, consequentemente, da força aplicada no golpe - que foram descomunais - algo mais impressiona: as chamas que emanaram de seus braços e pernas durante a execução dos movimentos. O choque aumenta quando se percebe a grande marca de queimadura no rosto do rapaz no chão.

Choque por parte dos outros 5, claro. Aquele que voltou dos mortos mal se atenta a isso e parte para cima de outro. Um chute na boca do estômago. Mais uma vez, rápido. Mais uma vez, uma marca de queimadura no local atingido.

Num segundo, faltam 4. Em outro, 1.

O rapaz cujo nariz não mais sangra, cuja alteração na voz não se dá mais pela raiva, mas sim pelo medo.

- O-o-o-o q-q-q-que foi isso?!

Uma resposta é até cogitada, mas não havia o que ser dito.

Essa parte durou mais. Não porque houve resistência, porque as forças estavam acabando ou porque aquele ali era digno de piedade. Não...

Apenas seria fácil demais apenas fazê-lo desmaiar com um golpe rápido.

Entretanto, não se tornou uma sessão de tortura. Embora ciente da crueldade humana - que ele havia acabado de sentir na pele -, ele em si não a possuía, e, àquela altura, já havia recobrado a consciência e, com sua mente inocente, havia concluído que parte da culpa era dele por ter feito aquilo.

De qualquer forma, era hora de pensar o que deveria ser feito depois de tanta loucura.

Ele havia acabado de se tocar que agora, em alguns momentos, chamas envolviam seu corpo e ele estava absurdamente rápido quando o telefone tocou.

Perguntam seu nome, se a conhece e o grau de parentesco.

Morte.

Hoje.

Sua mão perde a força para segurar o telefone e ele cai.

Os 2.

De joelhos no chão e com lágrimas incessantes caindo aos montes, solta um grito de desespero que, inconscientemente, vem acompanhado por uma chama que incinera tudo a sua volta.

Os garotos desmaiados, o telefone, sua casa.

Mas não totalmente um retrato que estava ao lado do telefone.

Dele e de sua mãe.

O retrato cai ao seu lado e uma lágrima cai no retrato.

E cai outra.

E outra.

E outra.

Lavra
Enviado por Lavra em 14/08/2018
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