IV.1 – A NÃO CURA DE GERÔNCIO. (ELE, O MEU AMOR... MEU PEQUENO BEIJA-FLOR.)
Cap. XIII (fls. 43/47) - O EMPRESÁRIO – Gerôncio.
Como sempre, as crianças acompanham atentas o desenrrolar da história e se abstraem da realidade, embarcando num mundo encantado, onde tudo é possível. A vovó conta, com detalhes, os acontecimentos de Vali Oãs Cricosfan. Um homem de aparência desleixada mas ainda assim extremamente arrogante, arrasta, com brutalidade, a cadeira que está vazia, senta-se e olha a idosa, com uma expressão de pura animosidade. A mulher levanta a cabeça e o olha com o mesmo afeto com que olha as outros presentes.
______ Pode falar amigo. Fique a vontade.
______Não lhe conheço e nem sou seu amigo. Você entra no meu vilarejo e, sem procurar saber se pode parar e armar sua barraca de bugingangas, já vai se aboletando. Aqui é uma comunidade e não aceitamos estranhos espaçosos... se não sabe, agora ficará sabendo: para fazer suas apresentações de feitiçarias, terá de pagar uma taxa.
As pessoas se aproximam e formam um circulo, no centro do qual ficam Valentina e Gerôncio. O olhar que dirigem a ele, não deixa dúvidas de qual lado estão. Valentina percebe a animosidade deles contra o homem a sua frente, e tenta apaziguar a situação.
______ O senhor me desculpe, mas eu não sabia desse detalhe. Com quem devo falar então, para conseguir a licença?
Gerôncio esmurra violentamente a pequena mesa, quase derrubando seu conteúdo. Seus olhos parecem boiar em sangue.
_______ Comigo mesmo!
_______Que conversa é essa, Gerôncio? Desde quando um Caminhante tem que pagar taxa para nos alegrar e fazer companhia? Você está com febre?
_______ A senhora, doutora Coralia, devia se preocupar com seus pacientes lá do PAM, não comigo!
_______Esqueceu o que Benjamim falou? Somos os dirigentes de Vali Oãs Cricosfan e todos os Caminhantes são bem vindos aqui. Em especial os que nos fazem companhia e nos alegram. Quanto aos meus pacientes do PAM, estão todos em suas casas e muito bem, obrigada.
______Você não se envergonha disso não?
______Não aprendeu nada mesmo... não adianta, ele não perde oportunidade de querer tirar vantagem das pessoas. Coisa mais feia. A senhora nos desculpe.
Valentina ergue os ombros e sorri. Gerôncio não se dá por vencido e resolve contar sua história.
______Falam do que não conhecem. Desde criança, toda minha vida vivi em função do trabalho. Sem descanso. Quando meu pai ainda estava entre nós era eu quem estava ali, ombro a ombro com ele. Trabalhando em prol do crescimento e do bem estar desse vilarejo. Vocês foram chegando, aos poucos, mas apenas para usufruir dos benefícios que tinhamos para oferecer. Digam-me, o que fizeram para melhorar a situação do lugar? Não precisam falar, eu mesmo respondo. Fizeram NADA!
______Como você tem a coragem de abrir a boca para falar tanta asneira?
______Não me provoque doutora Corália! Não vai gostar de saber o que aprendi nesses anos de prisão!
______Está me ameaçando Gerôncio? Não tenho medo de você!
O homem pára olhando fixo, para além de Valentina. Parece hipnotizado. Súbito arregala os olhos, leva as mãos ao peito e cai, sem um gemido. Coralia se abaixa e toca seu pescoço, num ponto especifico, com os dedos indicador e médio, tentando encontrar sua pulsação. Não encontra. Gerôncio está morto. Ataque cardíaco fulminante. As crianças “retornam à realidade” e ficam alvoroçadas.
______ Coitado!
______De nada lhe serviu tanta arrogância...
______... e maldade! Ele quis matar o próprio irmão e feriu gravemente a irmã... o Gerôncio era do mal!
______ Sabe, uma coisa que eu nunca entendo... eram irmãos, filhos dos mesmos pais... e porquê cargas d'água ele era tão diferente dos outros dois?
______Da mesma forma que, mesmo estando na nossa face, nosso nariz tem uma narina com o formato diferente da outra!
______Não entendi!
______Nem eu... quer saber? Vamos ajudar a vovó recolher seus objetos que está quase na hora do almoço... e hoje, o prato principal é ensopado de repolho!
______Eita meu Deus! Hoje ninguém dorme...
O som da risada infantil se espalha pelo espaço, enchendo todos de uma alegria benfazeja. Já nem lembram mais da desventura de Gerôncio.