SEM LÍNGUA
– Puxa! Então é assim que se beija? – pergunta Serginho ao colega mais velho.
– Foi o que me disseram...
Serginho abaixa a cabeça e olha para as suas unhas. Acabara de sair da aula de Educação Artística, onde manuseara argila e criara objetos absolutamente supérfluos. Contou três minhoquinhas de olhos furados, dois pequenos elefantes e quatro cabeças de negrinhos fumando cachimbos.
As unhas estavam impregnadas de barro. Sente-se ridículo e por isso pergunta:
– Você já beijou uma menina alguma vez?
– Muitas vezes...
– E foi língua tocando língua?
– Claro!
– Não parece muito legal.
– É que você nunca experimentou.
– Mesmo assim não parece legal.
– Você ainda tem mentalidade de criança... por isso não gosta – afirma o mais velho.
– Eu não disse não gosto, disse que não parece legal.
– E não dá no mesmo?
– Não, seu imbecil!
– Os hippies beijam pra caramba...
Os dois continuam a caminhar em silêncio. Serginho imagina o beijo. A língua até aquele momento fora uma massa disforme e vermelha, amortecia a dureza dos alimentos. Não havia qualquer sentido introduzi-la em outra boca. Tentar a acrobacia de passá-la entre dentes alheios. Não se contém diante do problema e volta a perguntar:
– E se na hora eu não conseguir beijar direito?
– Você dá um jeito.
– Que jeito?
– Qualquer jeito é jeito.
– Como qualquer jeito é jeito?
– Na hora você dá um jeito.
– E se eu não souber dar um jeito?
– Droga! É isto sempre acontece quando a gente fala essas coisas pra criança.
Serginho tem doze anos. Sua mãe sempre o ironiza. O filho chegara à idade da exatidão. Tudo precisava ser organizado e decodificado. A criança exasperava-se, mas a mãe conhecia-o bem.
Havia em sua mente a tensão pela ordem, ordem em cada espaço. O caminho da escola para casa, percorrido sempre do mesmo modo, sem pisar em certas calçadas, desviando dos riscos no cimento. As pessoas não podiam tocá-lo Voltou à carga inquisitória.
– Você não respondeu. E se eu não souber?
– Você aprende.
– Estas coisas você tem que chegar aprendido. Como é que faço?
– Pede desculpas e começa de novo.
– Pedir desculpas? Eu tenho que ir desculpado. E se eu quiser cuspir na hora? E se a menina quiser entrar na minha boca quando eu estiver no caminho? Quem decide a vez de quem?
– Pede desculpas e começa de novo. Não há outra solução.
– Não dá, cara. Eu vou passar vexame.
– Então treina no espelho do banheiro.
Silêncio.
– Essa é uma boa idéia.
– Aproveita o treino e tenta fechar os olhos. O barato é fechar os olhos.
– Ora, vai se danar! Eu sei fechar os olhos.
O menino chega em casa com o coração aos saltos. Olha-se no espelho. Conta as primeiras espinhas. Sente-se mais ridículo por pensar em beijar seu próprio reflexo.
No desespero, lembra do dicionário do pai. Procura “língua”: órgão muscular oblongo e móvel na cavidade bucal. Pesquisa “beijo”, que viu significar “ósculo”. Encontra “ósculo”, definido como “beijo”. Nem mesmo os dicionários são claros.
A questão do beijo envelheceu Serginho.
DO LIVRO:"AS CRIANÇAS DO GENERAL MÉDICI"