O vento brincava balançando os galhos mais tenros. Pingos de chuva retidos nas folhas escorregam, brilhantes, refletindo luz, e caem na cabeça das meninas. Na copa da mangueira, periquitos algazarravam em festivo alvoroço, louvando a Deus pela fartura de alimento. Dois frutos despencaram antes da maturação.
— Vamos entrar, Ravenala! Lá vem chuva de manga.
Os frutos desceram em linha reta. Velozes. Tinham roupagem verde-chumbo. Caiu na cesta o primeiro chegado, o outro, no chão, dentro da vala de escoamento das águas pluviais.
— Não presta. Jogue fora!
— Só porque é filhote de manga?
— Não! Porque é peco.
— A manga maior e mais madura, ficou presa na forquilha do tronco. Pegue, Chanana. Seu braço alcança!
— Pego não! Está coberta de mosquitos e de chien.
— Picam?
— Mosquito assenta nos olhos da gente. Caminha no branco do olho. E chien gruda nos cabelos.
— Então vamos entrar.
— Corra, olhe a chuva...
Da janela, Ravenala olhava os pássaros, nicando as mangas maduras. Elas caiam sobre o piso cimentado, varrido, lavado e escorrido por Chanana, que trazia nas mãos os calos de Corina.
— A tarefa escolar, Ravenala!
— Tô indo, vó.
Quando dizem “tô indo,” as crianças ainda ficam meia hora. Esses meninos! — Matutou Corina.
— Mãe, me ajuda na tarefa!
— Isso não sei. Pergunte a sua avó ou espere seu pai chegar do banco.
Se Dulcineia sabia ensinar. Só ela sabe se sabia. E arrastando os chinelos, voltou para se deitar.
— O lanche!
— Já vou, vó.
— Dulcineia!
— Já lanchei.
— Chanana!
— Quero não, madrinha!
Outra vez, Ravenala entrou no misterioso quarto, e pôs-se a olhar uma réstia de sol, que incidia sobre a imagem em bronze de Jesus Crucificado.
— Quem te machucou?
— Foram as pessoas que amo.
— As pessoas que amamos machucam a gente.
— Às vezes, sim!
— Está muito ferido!
— Sou Pastor Ferido. Toco flauta para minhas ovelhas.
— Vou passar mercúrio em seu dodói.
— Faça como disseste.
A menina olhava o Tocador de Flauta pregado na cruz. Machucado. Desprezado. Coberto de chagas. Resignado, não reclamava, não levantava a voz.
— Foste tu que tocaste flauta e uma rataiada atirou-se ao mar e se afogou?
— Aquele é outro tocador de flauta. Quando toquei flauta, quem se atirou ao mar foi uma manda de dois mil porcos.
Ravenala percebeu que ainda não era capaz de compreender tudo. Nem mesmo se rataiada é coletivo de rato, e preferiu mudar o rumo de suas indagações:
—O vovô mora nesta parede, mas não desce para conversar comigo.
— Teu avô mora no céu.
— Chanana disse que meu avô morava numa estrela.
— Ele é uma estrela. Olhe para o céu. Aquelas estrelas são as almas dos fiéis cristãos. A lua são as almas religiosas.
— Não consigo reconhecer uma estrela especial, entre milhões de seres luminosas. Qual delas é meu avô Generoso?
— Não faça distinção das coisas criadas, elas são obra de minhas mãos. Eu dei a cada uma o mesmo brilho, de modo que, quando olhares as estrelas, saberás que teu avô Generoso é uma delas, assim, amarás a todas, igualmente.
— Quero ser uma estrela!
— Ainda não é chegada tua hora. Vais crescer, tornar-se adulta...
— Quero crescer logo.
— Calma. És ainda e apenas a epigênese da vida.
Epigênese da vida. Pensou Ravenala. O desejo de tornar-se estrela invadiu sua pequena a alma. Mas, os dias se lhe pareciam lentos, viajando preguiçosamente nos ponteiros do tempo.
— Hora de almoçar — disse a avó.
— Quantas horas?
— Doze.
— Doze horas? Como pode, se só faz seis que o dia amanheceu?
— Boa pergunta, Ravenala. Tem sentido. Como sugeres que seja?
— O dia deve começar quando o sol se levanta. E terminar quando ele se deita.
***— Vamos entrar, Ravenala! Lá vem chuva de manga.
Os frutos desceram em linha reta. Velozes. Tinham roupagem verde-chumbo. Caiu na cesta o primeiro chegado, o outro, no chão, dentro da vala de escoamento das águas pluviais.
— Não presta. Jogue fora!
— Só porque é filhote de manga?
— Não! Porque é peco.
— A manga maior e mais madura, ficou presa na forquilha do tronco. Pegue, Chanana. Seu braço alcança!
— Pego não! Está coberta de mosquitos e de chien.
— Picam?
— Mosquito assenta nos olhos da gente. Caminha no branco do olho. E chien gruda nos cabelos.
— Então vamos entrar.
— Corra, olhe a chuva...
Da janela, Ravenala olhava os pássaros, nicando as mangas maduras. Elas caiam sobre o piso cimentado, varrido, lavado e escorrido por Chanana, que trazia nas mãos os calos de Corina.
— A tarefa escolar, Ravenala!
— Tô indo, vó.
Quando dizem “tô indo,” as crianças ainda ficam meia hora. Esses meninos! — Matutou Corina.
— Mãe, me ajuda na tarefa!
— Isso não sei. Pergunte a sua avó ou espere seu pai chegar do banco.
Se Dulcineia sabia ensinar. Só ela sabe se sabia. E arrastando os chinelos, voltou para se deitar.
— O lanche!
— Já vou, vó.
— Dulcineia!
— Já lanchei.
— Chanana!
— Quero não, madrinha!
Outra vez, Ravenala entrou no misterioso quarto, e pôs-se a olhar uma réstia de sol, que incidia sobre a imagem em bronze de Jesus Crucificado.
— Quem te machucou?
— Foram as pessoas que amo.
— As pessoas que amamos machucam a gente.
— Às vezes, sim!
— Está muito ferido!
— Sou Pastor Ferido. Toco flauta para minhas ovelhas.
— Vou passar mercúrio em seu dodói.
— Faça como disseste.
A menina olhava o Tocador de Flauta pregado na cruz. Machucado. Desprezado. Coberto de chagas. Resignado, não reclamava, não levantava a voz.
— Foste tu que tocaste flauta e uma rataiada atirou-se ao mar e se afogou?
— Aquele é outro tocador de flauta. Quando toquei flauta, quem se atirou ao mar foi uma manda de dois mil porcos.
Ravenala percebeu que ainda não era capaz de compreender tudo. Nem mesmo se rataiada é coletivo de rato, e preferiu mudar o rumo de suas indagações:
—O vovô mora nesta parede, mas não desce para conversar comigo.
— Teu avô mora no céu.
— Chanana disse que meu avô morava numa estrela.
— Ele é uma estrela. Olhe para o céu. Aquelas estrelas são as almas dos fiéis cristãos. A lua são as almas religiosas.
— Não consigo reconhecer uma estrela especial, entre milhões de seres luminosas. Qual delas é meu avô Generoso?
— Não faça distinção das coisas criadas, elas são obra de minhas mãos. Eu dei a cada uma o mesmo brilho, de modo que, quando olhares as estrelas, saberás que teu avô Generoso é uma delas, assim, amarás a todas, igualmente.
— Quero ser uma estrela!
— Ainda não é chegada tua hora. Vais crescer, tornar-se adulta...
— Quero crescer logo.
— Calma. És ainda e apenas a epigênese da vida.
Epigênese da vida. Pensou Ravenala. O desejo de tornar-se estrela invadiu sua pequena a alma. Mas, os dias se lhe pareciam lentos, viajando preguiçosamente nos ponteiros do tempo.
— Hora de almoçar — disse a avó.
— Quantas horas?
— Doze.
— Doze horas? Como pode, se só faz seis que o dia amanheceu?
— Boa pergunta, Ravenala. Tem sentido. Como sugeres que seja?
— O dia deve começar quando o sol se levanta. E terminar quando ele se deita.
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim."
Contato com o autor: adalbertolimapoetadedeus@gmail.com