Mais Um Trecho

A despeito de tudo aquilo, agora o nada me era suficiente. Mesmo que não fosse, eu não levaria a sério. Ou, quem sabe, recentemente, fosse não eu o imprestável. O que acontecia era que tudo e todos se constituíam de uma maneira tão precária quanto à minha. Portanto, pouco me importava com os outros.

Pedi o violão e toquei uma, Marvin, dos Titãs. Na sequência, atendendo aos pedidos, Love me Two Times, do Doors. Encerrei com uma do kings Of Convenience, the girl from back then. Via e ouvia cochichos, contava os olhares masculinos e femininos em minha direção. Vieram mais pedidos para outras músicas, e vi que, se, por um lado, eu perdera a vergonha, por outro, eu tocava sem sentir a música. Eram notas combinadas, ritmadas, e a voz, mais ou menos afinada, imitando a voz do cantor original. Um exercício como qualquer outro, como por massa e assentar tijolos, mas até mesmo nisso poderia haver paixão por parte do pedreiro. Por mim, não. Agradeci as palmas como quem agradece o pão entregue pelo atendente numa padaria. [...]

Ainda naquele dia, quando estávamos indo embora, não sei de onde, surgiu uma conversa sobre Rubem Fonseca e Lacan. No momento em que dei por mim, Kelly argumentava:

— Os livros do Rubem Fonseca, o conteúdo deles, têm um teor psicanalítico. A história contrai-se em um sonho, a realidade se forja de inconsciente, daquele material que está lá guardado e nos horroriza, mesmo sem trazê-los à tona. Uma visão Lacaniana.

Sem tirar a atenção do trânsito calmo de domingo, Barbra retrucou:

— Nada a ver, Kelly, isso é Freud. Ter o inconsciente como espaço físico e psicológico de uma história que envolve vários personagens. Só falta me dizer que isso está lá no livro, “junguianamente”, em arquétipos e imagens ancestrais, num inconsciente coletivo “literário”. Vai, para.

— Sim, tudo a ver — Kelly rebateu insistentemente. — Lacan era o quê? Hein, meu amor? Freudiano. Rubem Fonseca analisa as pessoas, as personagens em seus livros, a partir do ponto de vista do inconsciente delas. O que elas fazem quase nunca é o mote da situação. Só o que eles desejam, pensam e deixam de falar. E isso a maioria dos seus leitores não percebe; daí o motivo de seus livros serem de tradução difícil para o cinema, que nem o Lacan para o seu público, até mesmo para os seus discípulos. [...]

De longe, acompanhei com os olhos o rapaz que me espiava no bar, até que ele entrou num carro que o esperava. Eu subi despreocupadamente. A verdade era que, por aqueles dias, pouco me importava qualquer coisa, o que fazia tudo ter a sua devida mesma pouquíssima importância, a mesma perspectiva, o mesmo valor. Mas isso não trazia apenas alívio, era também imperceptivelmente inquietante. Ainda havia em mim uma fagulha à espera de combustível? Quem tinha onde ficar podia se estabelecer, mas não aguentava permanecer por muito tempo se esse lugar fosse o espaço que devesse ocupar. Que belo ronronar filosófico, Yves!