O FILHO DO MOLEIRO
O FILHO DO MOLEIRO --- 9 FEV 2017
(Versificação, tradução e adaptação do conto Das Licht (A Luz) de Thaddäus Rittner, publicado em Viena, 1917, na coletânea Legenden und Märchen unserer Zeit [Lendas e Contos de Fadas de nosso Tempo] por WILLIAM LAGOS).
O FILHO DO MOLEIRO I
Não há como negar. O filho do moleiro,
Para sua idade, já era muito forte:
Aos doze anos, ter dezesseis já parecia,
Que após os dez, crescera bem depressa.
E tendo um físico saudável dessa sorte,
Muito mais forte e alto ainda seria;
Mas era tímido. E como muitos o são
Se apresentava como um fanfarrão. (*)
(*) Prepotente, o que hoje estão chamando pelo nome bully, em inglês.
Ao mesmo tempo, o seu melhor amigo,
Que com ele a mesma série frequentava,
Era o pequeno Adam, filho do sapateiro.
São dessas coisas que surge o perigo:
Com doze anos, Adam só alcançava
O ombro de Thomas, o filho do moleiro
E isso mal e mal... Porém ambos brincavam
Davam passeios e bola ainda jogavam.
Não é que não se dessem com os demais
Meninos de sua classe e de sua idade,
Mas era muito forte a sua amizade:
Brigavam juntos, por motivos naturais...
E por estranho que pareça, na realidade,
Era Adam que protegia, na verdade,
Ao grande Thomas, cuja timidez notavam
Os seus colegas e contra ele se juntavam...
Após as aulas, iam contra o grandalhão,
Devido a suas atitudes prepotentes,
Jogando pedras e pegando mesmo paus,
Chamando burro aquele fanfarrão,
Por suas respostas pouco inteligentes
E em função dos resultados muito maus
Que obtinha nas chamadas “sabatinas”
e por terem um certo ciúme das meninas!
O FILHO DO MOLEIRO II
(Elas o achavam bastante interessante,
Forte e maior que todos os colegas).
Chegava Adam em seu auxílio, então
E bem depressa dispersavam essa gente.
Em pouco tempo, terminaram as refregas
E davam queixa só de Thomas na ocasião,
Quando chegavam em casa machucados,
De Adam mencionarem envergonhados...
São dessas coisas... Thomas era esperto
O suficiente para então reconhecer
Que Adam era dos dois o mais valente,
Mas não podia, de coração aberto,
Demonstrar quanto ao menor tinha a dever
E foi, aos poucos, se tornando diferente...
Dava a entender que era ele que ganhava:
Adam sorria e nunca o contrariava...
Mas aos poucos, cresceu o ressentimento,
Confusamente percebendo sua injustiça;
De fato, nunca se queixava abertamente,
A Adam observando, de olhar atento,
Sem encontrar qualquer motivo que uma liça (*)
Justificasse com o amiguinho, realmente.
Mas seu rancor no coração crescia
E por se achar inferior se ressentia...
(*) Desavença, briga.
Até que um dia Adam, com inocência,
Pois começava a já ficar escuro,
Falou que o passeio deviam terminar.
Thomas, então, deu vazão à prepotência:
“Mas como é isso? Para brigar é duro,
Porém do escuro precisa se ocultar?”
Adam desconversou: “Mamãe insiste
Que volte enquanto alguma luz se aviste...”
O FILHO DO MOLEIRO III
Ficou Thomas sobre aquilo matutando,
Mas realmente já era hora de voltar.
Já no outro dia, continuou a prepotência
E logo estava ao outro experimentando,
A mata densa querendo atravessar,
Saindo em dias fechados com frequência.
Era uma forma de sentir-se superior,
Envergonhando o amiguinho bem menor.
Mas Adam certa desculpa sempre tinha:
“Temos deveres de casa a terminar!
Estou cansado, tu és muito maior.
Para teu passo acompanhar eu vinha
Dando dois!” Sempre algo a inventar,
Até que Thomas insistiu com o menor
Até que Adam, finalmente, confessou
Que tinha medo – e seu rosto avermelhou...
“Mas como podes ser assim covarde?
O que no escuro te parece perigoso?...”
“A gente pode no caminho tropeçar...”
Mas Thomas começou a fazer alarde
Diante dos outros, troçando, desdenhoso:
“Adãozinho quer do escuro se escapar!”
Os seus passeios, assim, foram rareando,
Embora Thomas o seguisse convidando.
E ao perceber que o amiguinho o evitava,
Para passearem juntos insistia
E o conduzia em longas caminhadas...
E quando o inverno já se aproximava
E mais escassa se fazia a luz do dia,
Troçava dele nas tardes encurtadas:
“Para que serve, Adam, a sua espinha,
Se até a sombra de um pardal o descaminha?”
O FILHO DO MOLEIRO IV
Não se fez esperar o resultado:
Adam seu amigo passou mesmo a evitar
E após as aulas ia logo para casa.
Pelos colegas, isso em breve foi notado
E começaram com Thomas a implicar,
De atacá-lo, não perdendo vaza...
Sem o amiguinho, ele tinha de lutar,
Naquelas brigas muitas vezes a apanhar...
E assim sendo a natureza humana
Foi a Adam que começou a culpar:
Se ele ao menos não fosse tão covarde!
Do sapateiro ao filho ele reclama:
“Nossos passeios têm agora de acabar?”
“Chegou o inverno e logo fica tarde!”
“Já entendi, está com medo do escurinho!
Não quer cravar no dedão algum espinho!”
E foi assim que se encontrava a situação
Quando açúcar faltou e a mulher do sapateiro
Disse a seu filho que um bolo começara,
A venda e a feira já fechadas na ocasião:
“Vá depressa até a casa do moleiro
E diga à Helga que sua mãe solicitara
Um pouquinho de açúcar emprestado:
Leve este vidro e carregue com cuidado!”
Eram de fato muito amigas as senhoras,
Mas a tarde já passava da metade...
“Preciso mesmo ir, Mamãe querida?”
“Ora, daqui partindo sem demora,
Em meia hora volta, com facilidade...
Ande depressa ou a receita está perdida!”
Adam pensou existirem três perigos
Em seu caminho, verdadeiros inimigos!
O FILHO DO MOLEIRO V
Mas à sua mãe precisava obedecer
E de explicar se sentia envergonhado.
Caso quisesse ir e voltar depressa,
Antes que o Sol fosse desaparecer,
Precisava ser o pátio atravessado
Daquela granja, em que rondar não cessa
O feroz cão mastim do agricultor,
Que lhe causava, com razão, grande temor!
E do outro lado, ficava a ponte velha,
Que já deviam ter mandado consertar,
Diversas tábuas havendo apodrecido!
Nos intervalos, do riacho a água se espelha
E já caíra toda a proteção de um lado...
De ali cruzar fora até mesmo proibido!
E depois, junto à porta do moleiro,
Estava Thomas, seu antigo companheiro!
O Sol se achava já bem perto do horizonte
E caso Adam desse a volta pela estrada,
Bem mais depressa chegaria a escuridão
Que ele temia muito mais que a ponte!...
Assim correu até a sebe levantada
Em torno à granja e arrastou-se pelo chão
Até o ponto em que um espaço haver sabia
Por onde o mastim avistar já poderia!...
E por sorte, viu que estava adormecido!
Então correu bem veloz pelo terreiro,
Chegando à sebe que marcava o outro lado.
Soltou um suspiro, por sentir-se protegido...
Dos três perigos, vencera já o primeiro
E para a ponte caminhou bem apressado.
Estava claro ainda e, pé ante pé,
Na outra margem já chegava até!...
O FILHO DO MOLEIRO VI
Do outro lado, avistou logo o moinho,
Para onde foi, agora andando devagar,
Sem ver sinal de Thomas no lugar.
“Dona Helga,” – saudou-a, bem baixinho,
“Mamãe falou para a cumprimentar
E um pouquinho de açúcar lhe emprestar...
Segunda-feira, ela lhe manda devolver...
É só a senhora este vidrinho encher!...”
De boa vontade, a esposa do moleiro
O vidro cheio depressa lhe entregou.
Muito aliviado, Adam agradeceu.
Agora basta que retorne bem ligeiro!
Porém Thomas já esperava e o chamou:
“Mamãe seu vidro de açúcar já lhe encheu?”
“Pois foi, Thomas. Agora tenho de voltar,
Senão a massa do bolo vai estragar!...”
“Ora, ainda é cedo... Vamos conversar.”
“Thomas, preciso retornar depressa agora!”
“Por que? Está com medo de seu pai?
Leva uma sova caso muito demorar?...”
“Não é isso... É a ponte. Sem demora
Tenho de ir... No escuro, a gente cai!...”
“Ah, já entendi!... É do escuro que tem medo!”
“Não é, Thomas... Mas preciso voltar cedo...”
“Tenho medo é do cachorro do granjeiro!
Quando passei, o encontrei dormindo,
Se demorar, pode estar já acordado!...”
“Pois vou então com você, meu companheiro.
Eu levo um pau. Só vai ficar latindo,
Do meu porrete vai ficar amedrontado...
Mas primeiro, vamos os dois prosear um pouco,
Por que ter medo desse cachorro louco!”
O FILHO DO MOLEIRO VII
“Mas minha mãe me mandou voltar depressa!”
“Ora, amiguinho, fale com sinceridade:
Você tem medo é de voltar no escuro!
Mas realmente, esta noite está espessa,..
Vamos buscar uma lanterna, na verdade,
Lá na sua ponte a gente enxerga qualquer furo!
Vem comigo... A lanterna está guardada,
Mas eu sei bem onde se acha pendurada...”
Levou-o Thomas até dentro do moinho,
O ar pesado, meio até de sufocar,
Tudo tomado por semiescuridão...
Thomas então o empurrou, devagarinho,
Até ao depósito do fundo ele chegar,
Mais abafado e apertado na ocasião.
“A lanterna está ali dentro pendurada.
Está escuro, mas é fácil ser achada...”
Mas de repente, Adam foi empurrado
E atrás dele, foi fechada a porta!
“Thomas, não me deixaste aqui sozinho?”
Do amigo escutou riso abafado:
“Só quero ver como aí dentro se comporta!
Esse é o lugar mais escuro do moinho!...”
“Acende a luz, Thomas, por favor!”
“Não há motivo para qualquer temor.”
“Thomas, não me deixes aqui preso!
Por favor, por favor, acende a luz!”
“Ora, Adam, é para teu próprio bem!
Aprende de uma vez, covarde leso:
Não há perigo! A nenhum mal te expus,
Está vazio esse depósito também!...”
“Thomas, a luz acende, por favor!”
“Aqui fora está claro, perdedor!...”
O FILHO DO MOLEIRO VIII
“Tens de perder é teu medo do escurinho...”
“Thomas, acendo a luz, te peço, por favor!”
Como é ridículo! -- pensou Thomas, lá de fora.
Adam, enfim, compreendeu estar sozinho.
Thomas ficara ali no corredor!...
Já parecia estar preso há mais de hora!
“Deixa-me sair, Thomas!... Acende a luz!”
“Espia nas frestas... Qualquer coisa ali reluz...”
Só quando Adam cansou-se de gritar
É que Thomas a abrir-lhe a porta decidiu.
“Como é, acabou perdendo o medo?”
Mas Adam só pensava em se escapar:
Com um empurrão, depressa ele fugiu:
Preciso em casa chegar ainda cedo!
“Ei, espera, a lanterna eu vou pegar!
Eu prometi que te iria acompanhar!...”
Mas o pequeno não queria mais nada.
Com seu olhar já ao escuro acostumado,
Achou depressa a porta do moinho
E saiu dali, bem depressa, pela entrada,
Para a ponte seus passos apressados,
Seu coração a bater num redemoinho!
Mas o açúcar por sorte ainda encontrou
No bolso interno em que primeiro o colocou!
Mesmo no escura, encontrou fácil a ponte
E ao longo dela se precipitou,
Mas uma tábua a seus pés se partiu!...
O resultado nem é preciso que se conte:
Na água gelada bem depressa mergulhou,
Por sorte sua seu pai depressa o viu,
Que logo o retirou da correnteza
E para casa o carregou, com ligeireza!...
O FILHO DO MOLEIRO IX
A essa altura, já o estivera procurando,
Pedira até a ajuda de um vizinho.
“Por que cruzaste a ponte? O que fazias?”
Repreendeu, enquanto a braços o ia levando.
“O açúcar! Ainda está dentro do vidrinho?”
“Querido, não entendi o que dizias...”
Chegando em casa, insistiu em entregar,
Para que a mãe pudesse o bolo terminar!
Já estava o bolo esquecido totalmente!
Suas roupas lhe trocaram, encharcadas,
E foi levado para a cama quente,
Mas uma febre o atacou, incontinenti!
Só na segunda as providências alcançadas,
Adam, coitado, já então muito doente!...
Quando Thomas à escola retornou
De Adam a falta bem rápido notou...
E lhe disseram: “Adam está morrendo.
No sábado, ele pegou pneumonia!
Ele caiu daquela ponte perigosa!...”
Mas como pode estar isto acontecendo?
Eu só curá-lo de seu medo pretendia!
Nunca pensei em tal coisa horrorosa!
Porém de noite, Adam faleceu
E seu enterro depressa aconteceu!...
Mas o que mais eu poderia fazer?
Thomas tentava se justificar...
Não esperou que o fosse acompanhar!
Ele escutou seu professor dizer:
“Já faz três anos que deveriam consertar
Aquela ponte! Ou então tirá-la do lugar!”
Há três anos! Então a culpa não foi minha!
Caiu da ponte pela pressa que ele tinha!
O FILHO DO MOLEIRO X
Se ele esperasse, a lanterna eu buscaria.
Sem haver qualquer perigo de cair!
Por que saiu correndo desse jeito?
Mas a si mesmo não podia convencer;
Era sua a culpa, não adiantava se iludir,
O coração a lhe pular dentro do peito!
Amolecera, após ter sido duro...
Por que razão eu o prendi no escuro?
Após o enterro, a noite já chegando,
Thomas deixou a sua porta meio aberta,
Para que no quarto entrasse alguma luz,
Mas a sua mãe a porta foi fechando,
Deixando Thomas na escuridão deserta!
Pela janela, nem sequer luar reluz!...
De olhos abertos, acordado continuou
E de repente, voz fraquinha ele escutou!
“Acende a luz, Thomas, por favor!”
Era aquela a voz de Adam, certamente!
“Mas o que queres agora, Adam, comigo?”
“Acende a luz, Thomas, tenho horror
De estar no escuro de forma permanente!
Mesmo deitado, sinto-me em perigo!...”
E bem depressa da cama ele saltou:
Uma lanterna para o quarto ele buscou! (*)
(*) Naturalmente, na aldeia não havia luz elétrica.
Com o barulho, o moleiro se acordou:
“Quem é que está fazendo a barulheira?”
“É o garoto, marido, está nervoso!...”
Chegou à porta e rápido exclamou:
“Acaba agora com toda essa zoeira!
Levanto cedo!... Apaga logo, é perigoso
Dormir de luz acesa!” Thomas se aquietou
De Adam a voz já não mais escutou...
O FILHO DO MOLEIRO XI
Disse o moleiro, de manhã bem cedo:
“Tu não sabes que desde a madrugada
Eu preciso trabalhar? Não faz de novo!
Nunca pensei que fosses de ter medo;
Mas se é assim, eu te dou razão dobrada!
Uma bela sova, como diz o povo,
Coloca qualquer medo no lugar!
Terás motivo até para chorar!...
Mas nessa noite, o moleiro se acordou
Com os passos de Thomas... Devagar
Descia de novo, em busca de uma luz...
“Acende a luz!” – Adam lhe suplicou
E Thomas se viu obrigado a ir buscar,
Rezando em vão aos santos e a Jesus!...
Falou o moleiro: “De hoje ele não passa:
Dou-lhe uma sova que acabe essa pirraça!”
Mas disse a mãe: “Primeiro deixa eu conversar.
Do amiguinho, o Adam, tem saudade!...”
“E daí? O garoto já morreu!...
Será que pensa que a doença vai pegar?
De mim que tenha medo de verdade!”
Virou para o lado e de novo adormeceu.
De manhã Thomas o olhou, muito assustado:
“Não faz de novo, que vais ser castigado!”
Mas na terceira noite, novamente,
Mesmo tendo deixado a porta aberta,
Escutou Thomas a voz de seu amigo:
“Acende a luz, Thomas!” Finalmente,
De madrugada, já estando bem alerta,
Saiu à rua, sem temer perigo,
Louco de medo de acordar o pai,
Mas com plena certeza de onde vai!...
O FILHO DO MOLEIRO XII
“Acende a luz!” – a fina voz sempre escutando.
“Está certo, hoje eu vou te obedecer,
Mas precisas me dizer aonde tu estás!...”
“Tu sabes muito bem. Estou esperando.
A minha luz precisas de acender,
Ou não consigo descansar em paz!...”
E deste modo, mesmo a lanterna carregando,
Furtivamente, ao cemitério foi chegando.
A sua mãe, com o máximo cuidado,
Para não despertar o seu moleiro,
Vestiu-se às pressas para o acompanhar.
Logo viu Thomas, caminhando a passo airado,
Até alcançar o cemitério e o derradeiro
Ponto em que Adam fora posto a descansar,
Acertando de imediato o tal lugar,
Mesmo sem ter ido o enterro acompanhar!
E sobre o túmulo, sua lanterna colocou
E perguntou: “Estás agora bem assim?”
Nenhuma voz se sabe se escutou...
Mas após um intervalo, ele falou:
“Olha, a tua luz vim te trazer, enfim,
Não vou trazer de novo, já chegou!”
Somente a luz a bruxulear no campo santo,
De um galo ao longe se escutou o canto.
E ao se virar, um vulto o surpreendeu,
Mas bem depressa o susto lhe passou
E sua mãe recebeu-o num abraço...
La no alto, a luz da Lua apareceu
O par então para o moinho retornou,
Em seu silêncio, só a escutar-se o passo...
No seu leito, o moleiro ainda dormia
E a voz de Adam nunca mais se escutaria!
Naturalmente, esta é uma parábola
sobre crime, remorso, castigo e redenção.
William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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