As escolhas de Samanta e o bebê da outra vovó


Para contar como a minha história com Luan começa, talvez se faça necessário voltar no dia que nos conhecemos, no batizado do Miguel. Ele já me olhava desde a hora que fui recepcionar ele e a equipe da churrascaria. E não foi qualquer olhar, foi um olhar tão intenso que me deixou constrangida. Ignorei o quanto pude o fato daquilo ter mexido comigo, até que o nosso segundo encontro foi na cozinha. Já meio “alta”, devido a terceira taça de vinho, entrei na cozinha para buscar gelo com tanta pressa que nem vi quando topei com alguém e muito menos que esse alguém era o garçom. O resultado trágico, tipicamente coisa de Samanta foi uma mancha de vinho enorme no uniforme dele e uma vergonha tremenda.

- Desculpa!

- Tudo bem, eu também não vi você.


Peguei um pano molhado da pia, totalmente nervosa, porém tentando disfarçar. Sem pedir ou avisar, comecei a limpar o uniforme de Luan. Era uma cena meio ridícula de se ver, então acredito que qualquer pessoa que nos visse iria imaginar qualquer coisa, menos que eu estava tentando limpar o uniforme dele inocentemente.

- Hã... Desculpa, nossa, me desculpa mesmo! – Ele sorriu, tranquilamente. – Eu sou um desastre.

- A moça apesar de desastrada é muito bonita. – A voz dele era quente e meio rouca, como uma carícia daquelas em momentos íntimos. Deus do céu, eu realmente pensei nisso!

- Obrigada. - Agradeci, sem jeito.

- Como você se chama?

- Samanta! E você? – Tentei demonstrar o menor interesse possível naquela conversa.

Ele era moreno, alto, cabelo crespo, bem black power, como daqueles rapazes mais moderninhos que eu via no centro de Belo Horizonte. O sorriso, como já disse, encantador. Ah droga, ele não precisava ser tão bonito assim. Quer dizer, ser bonito tudo bem, mas está interessado em mim. Esse é o problema.

- Luan. Muito prazer, Samanta!

Delicadamente, Luan tirou o pano da minha mão. Eu já estava esfregando a mancha de vinho há muito tempo. Dei um passo para trás, meio assustada com a intensidade daquilo tudo. Trocamos olhares por algum tempo, e sem dizer nada, ele voltou ao trabalho.


Até o fim do batizado, ele ficou me encarando com um sorriso travesso nos lábios.

Naquele dia, lá pela noite, voltei para casa de metrô. E sim, ele me seguiu, mas claro que fingiu que não estava me seguindo e que o fato de morarmos na mesma região era uma imensa coincidência. Fiquei na defensiva o quanto pude, mas no fim, o sorriso dele foi mais irresistível que a minha vontade de fugir dele e acabamos trocando telefones.

Alguns dias depois estávamos passeando com Miguel pela cidade. E para o meu total desgosto meu afilhado AMOU o Luan. Por incrível que pareça, apesar de galante, ele foi extremamente respeitador e paciente. Nas raras vezes em que a atmosfera mudava ao nosso redor, ele simplesmente sorria daquele jeito que fazia meu rosto ruborizar e sorrir também.

O nosso segundo encontro (somente os dois) foi num barzinho. Essa escolha tem em vista o fato dele ter me zoado dizendo que eu era muito fresca, pois só bebia vinho. Fui desafiada a beber algo diferente, tipo cerveja ou outra coisa.

- Vai ser moleza!

- Eu duvido, Sam!


Chegamos no bar tinha acabado de anoitecer, que já tinha um fluxo bem alto de jovens e casais. A decoração era rustica, mesas e balcões de madeira, lembrava muito ao Texas. A música variava do rock dos anos 80 a música pop atual.

Luan era fácil de conversar. Não tinha amarras, não tinha defesa alguma, ele era aquilo que a gente via, simples. Contou-me sobre sua profissão e de como aprendeu a gostar de trabalhar com pessoas. Contou que apesar de vulgarizada, a profissão garçom era algo que o agradava e ele não tinha do que reclamar. Morava com a mãe e um irmão pequeno, tinha um cachorro de nome Teobaldo e torcia para o Corinthians. Riu quando eu disse que era torcedora do Galo e prometeu que me levaria para um Corinthians x Atlético Mineiro. Luan era do tipo de pessoa que você poderia facilmente passar o dia o ouvindo contar sobre sua vida sem jamais interromper. Era um dom natural dele envolver as pessoas. Em momento algum contou sobre sua vida amorosa, o que me deixou preocupada, mas não me manifestei. Algumas horas depois quando a bebida falava por mim e não eu pela bebida, Luan me pergunta sobre a minha vida amorosa.

Ele perguntou num âmbito geral, não especificou quem ou quando. Eu ridiculamente bêbada contei justamente de Bernard. Poderia ter dito que tive alguns relacionamentos que não foram muito longos? Poderia. Por que eu resolvi me abrir sobre Bernard? Não tenho a menor ideia.

- Eu perdi alguém recentemente. Ele se suicidou, sabe? Eu vi o corpo dele. Acho que nunca vou esquecer do que vi. Não foi um relacionamento longo, aliás, nunca foi um relacionamento, mas era “algo”. E esse algo me fazia ser completamente louca por ele. Ainda sou.

- Eu lam...

- Quer dizer... Eu tenho que seguir a minha vida, como todos dizem. Não é? “Segue a tua vida, você é nova, vai superar e conhecer outras pessoas”. Mas como é que se supera uma morte? As pessoas falam e falam sobre superação, mas ninguém ensina como é que se supera!


Quando percebi, já estava bêbada e emotiva. E se há algo extremamente irritante é uma pessoa bêbada e emotiva.

- Você o amava?

- Sim. Ele foi aquele tipo de grande amor, algo que a gente só vive uma vez. A morte dele foi repentina, ninguém esperava que alguém como ele tirasse a própria vida.


Luan balançou a cabeça, assentindo. Bebeu um gole de sua cerveja em silêncio.

- E como “ele” chama?

- Bernard.

- Bernard era um cara de sorte.

- Acho que não. Ele fez o que pode para se manter longe de mim, só depois que eu fui entender o motivo.
– Respirei fundo, tentando me controlar. Luan se aproximou, calmamente e limpou minhas lágrimas. – Bernard tinha AIDS. Ele não queria que eu me apaixonasse porque já sabia que ia morrer. - Como se soubesse que eu precisava falar, Luan continuou em silêncio, me ouvindo. – Mas foi inevitável, os meus patrões são amigos de longa data dele, nós sempre nos víamos. E eu também não conseguia deixar que ele se afastasse. Não contraí nada dele, pois sempre usamos camisinha. Então de certa forma a sua resistência apesar de compreensível, fora desnecessária. Todo dia eu tento não olhar para a porta do meu apartamento, pensando que ele vai entrar, mas é impossível. - Luan segurou a minha mão, era um toque firme, porém delicado. – Você não deve saber o que é isso, não é?

A minha intenção não era ser indelicada, tão pouco arrogante, e Luan compreendeu isso.

- Na verdade eu sei mais disso do que você pode imaginar. – Ele se encostou na cadeira, e seu olhar tornou-se distante. – E acho que somos mais parecidos do que você pensa. – Era a minha vez de ouvir. Torci para que minha bebedeira não me impedisse de conseguir dialogar. – Eu também perdi alguém, Samanta. E foi alguém tão importante para mim quanto o Bernard é pra você.

- Quem?

O rosto moreno agoniou-se em sua dor. Ele mordeu o lábio, nervoso e começou a piscar diversas vezes. Eu não acredito que ele vai chorar.

- Minha noiva. Nos conhecemos aos 20 anos, namoramos por 3 anos e 2 anos de noivado. Eu ia pedi-la em casamento. Já tínhamos planejado tudo, sabe? Casa, casamento, lua de mel. Absolutamente tudo! – Então a primeira lágrima desceu por sua bochecha. Involuntariamente, foi a minha vez de limpar suas lágrimas. A essa altura já estávamos sentados um ao lado do outro e nossa distância física era mínima. – Eu estava no trabalho quando recebi a ligação de que ela havia sido atropelada próximo a sua casa. Susan trabalhava como auxiliar de enfermagem, o hospital era próximo, então ela ia de bicicleta. Um motorista bêbado e imbecil não prestou socorro, o que foi crucial para o falecimento dela. Realmente, Samanta. Essas coisas não tem um manual. Ninguém te explica como se supera uma morte ou como se vive depois de perder alguém importante. Não tem como alguém te explicar... Mas, se tem algo que posso te dizer é que tem dias que vai doer demais. Dias que você vai olhar algo na rua, lembrar da pessoa e consequentemente chorar porque não aceita, tem dias que não doem tanto, mas você não supera, você só aprende a viver com a perda.

Ele passou a mão pelo rosto e tentou se recompor. O brilho nos olhos devido as lágrimas o deixava ainda mais bonito. Seria loucura dizer que achei lindo todo esse desabafo?

- Eu sinto muito. Mesmo.

- Não quis competir com você, até porque dor é algo íntimo. É seu. Mas cabe a você ser refém disso ou não. Eu sei que a Susan de onde estiver torce por mim e sabe como lamento sua perda. O quanto eu gostaria de que a história fosse diferente, acredito que Bernard também, mas... – Ele voltou a segurar minha mão, e aquilo foi absolutamente reconfortante. – Nós ficamos, Sam. Nós podemos e devemos seguir. Quer dizer... Eu vou seguir. E espero que você também... Bom, se você não seguir por querer, terei que te obrigar a seguir!

E Luan selou nossos lábios. Foi estranho ter outros lábios me beijando que não fossem os "dele". Tentei não pensar por esse lado, até mesmo porque Bernard se foi e eu teria que aprender a conviver com isso. Depois a minha mão esquerda parou no pescoço, a direita a imitou e eu me entreguei ao beijo dele completamente.

E no fim daquela noite nós estávamos na cama dele fazendo amor com uma paixão desenfreada. E como chegamos? Eu não tenho a menor ideia.


(...)

Entramos na sala de casa procurando fazer o menor barulho possível. Michel observava o filho brincar no tapete, perdido em pensamento. E eu sabia o porquê. Não tinha sido fácil convence-lo de que Sara não faria mal ao Miguel.

- Miguel? Oi amorzinho!! – Ao escutar minha voz, ambos me olharam na mesma hora. Sara não conseguiu dar um passo. – A vovó número 2 veio conhecer você...

Não precisou que nós o pegássemos no colo, ele veio engatinhando até a ex-sogra de Michel. Ela colocou a mão na boca, visivelmente emocionada e trêmula. Eu fui para o lado de Michel, que não tinha uma expressão decifrável, mas não era nada perto do confortável.

- Vai ser bom para ele. – Sussurrei, me sentando no colo dele. – Confie em mim.

- Como se eu tivesse escolhas – Resmungou, baixinho.

Miguel sentou na frente da avó e a observou, esperando que ela o pegasse no colo. Sara demorou algum tempo para entender o que ele queria, e quando o fez, chorou, segurando-o, meio insegura.


Talvez para ela ver que a filha, apesar de ser um monstro foi capaz de gerar uma criança abençoada era muito além do que seu emocional poderia aguentar. Eu sabia que para Miguel era essencial crescer sabendo que na ausência de sua mãe biológica ele teria a mim, como a substituta, duas avós (três, na verdade, a mãe de Bernard também o chama de meu pequeno netinho) um pai que é completamente apaixonado por ele, uma madrinha que o mimara MUITO entre tantas outras pessoas que conhecem a sangrada história dos Taino e sabe como Michel lutou para fazer a vida desse bebê a melhor possível, para não deixar que a ausência da mãe o afetasse. Agora ele não compreende, acha que esse monte de gente estranha e curiosa, mas daqui uns anos vai entender, respeitar e agradecer ao pai por sua luta. E fará com que nada disso seja em vão.

- Você é muito lindo, sabia? – A voz de Sara estava embargada. - Deus o abençoe.

Michel encostou a cabeça no meu braço, silencioso. Eu sabia que ainda não o tinha convencido totalmente de que a presença de Sara seria importante para a vida do filho. E era compreensível esse medo.

Era emocionante e bonito ver como a mulher da pessoa que eu mais desprezo no mundo estava feliz em estar ali. Elena a tinha privado disso. Ela já tinha privado várias pessoas de muitas coisas. Nós, diferente de Miguel, já tínhamos sido muito afetados diretamente e não era possível mudar, mas há uma esperança para ele.

E quem somos nós para privar Miguel de uma vida feliz e plena?

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 24/01/2017
Reeditado em 12/06/2022
Código do texto: T5891800
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