O mergulho na moeda-> experimento
Na minha mente tudo parecia claro, como uma cena de filme. E meu avô continuou seu estranho relato de como tinha descoberto sua habilidade, que agora eu também dominava, com sua voz firme e rouca, estranhamente gostosa de ouvir, e seu jeito de falar absolutamente único:
“Então eu entrei na moeda. Não era como se eu tivesse ficado microscópico e estivesse caminhando por sobre as ranhuras do cobre. Era como se eu fosse a moeda. Era como se cada partícula do meu ser, cada célula, cada tecido meu na verdade fosse uma parte daquele disco minúsculo. Eu estava em êxtase. O que estava acontecendo não era possível, não era permitido pelas leis da física. Eu já não me sentia humano. E ao mesmo tempo não me sentia moeda. Eu era diferente de tudo no mundo. E comecei então a me sentir solitário. E angustiado. E aquele sentimento foi tomando conta de mim, enquanto eu refletia que a minha vida inteira foi assim, solitária, ninguém via o que eu via ou sentia o que eu sentia. E eu fui abruptamente jogado para fora da moeda, como um aborto. E comecei a chorar.
Por duas semanas eu tentei entrar de novo naquele trocado. Fiz até um colar com ele para não perdê-lo. Tentava a todo o momento, mas quando eu sentia que estava quase conseguindo, mergulhava naquele sentimento de solidão. Não entendia o porquê. E aquele sentimento ia me consumindo, e junto com a frustração de não ter conseguido entrar na moeda novamente, ia me definhando. Não era uma coisa normal. Em duas semanas eu emagreci oito quilos. Oito. Meu rosto já não parecia o de um jovem de treze anos, mas de um idoso, como aqueles monges indianos que aparecem nos documentários. E foi então que aconteceu o evento mais importante da minha vida.
Um dia, quando eu estava voltando da escola, uns garotos começaram a me xingar, assim de longe. Naquela época era comum esse tratamento com os de cor, principalmente nos bairros mais ricos, ainda mais nessa parte do país. Diziam coisas horríveis sobre minha mãe, que ela era escrava do meu padrasto. Eu era, como já te disse, um covarde de nascença. Não reagi, fugi correndo e chorando. Quando cheguei na varanda de casa, vi algo que nunca vou esquecer, e que até hoje, quando lembro, meu punho se fecha involuntariamente e meus olhos lacrimejam. Pela janela vi meu padrasto, aquele filho da puta, segurando minha mãe pelo pescoço com uma mão, e com a outra segurando uma leiteira que estava esquentando no fogão. A boca dela já estava toda roxa, o rosto cheio de lágrimas. Já nem tinha forças pra resistir, devia ter apanhado muito. Meu padrasto a xingava quase sussurrando, para os vizinhos não ouvirem. Dizia algo sobre ela aprender a fazer um café decente. A cara dele era só fúria. Eu corri para a porta gritando socorro, mas ninguém veio. Tentei arromba-la, mas não era forte o suficiente. Olhei para os lados, para a varanda do vizinho, e vi a mulher dele entrando apressada em casa, mas não sem antes me dar um olhar de medo e nojo. Foi aí que eu percebi. Não era necessário meu padrasto estar sussurrando, porque os vizinhos nunca viriam. Eles nunca vieram. Isso já havia acontecido várias vezes, porque senão, quem não iria ajudar um garoto gritando por socorro? Eles sabiam o que vinha acontecendo. Mas não intervinham. Preferiam deixar de lado. Afinal, a mulher só estava sendo corrigida pelo marido.
Essa reflexão minha foi tão forte que me paralisou. Naquele momento, algo dentro de mim começou a pulsar. Por incrível que pareça, minhas lágrimas secaram. Meus músculos estavam relaxados. Minha mente se esvaziou de todos os pensamentos, exceto um: eu devo matar esse homem. Não sei de onde veio tanta força, talvez de Deus, mas chutei a tranca da porta tão forte que ela não simplesmente cedeu, mas se arrebentou. O barulho foi alto, muito alto. Eu entrei em casa com calma. Meu olhar, minha mãe me disse depois, já não era humano. Meus passos eram pesados. O ódio que eu sentia era algo frio e mórbido. Eu olhei bem nos olhos de meu padrasto, aqueles olhos orgulhosos, e vi que, debaixo de toda a ira e loucura, ele estava com medo. Era o mesmo olhar que as pessoas tinham quando passavam do meu lado à noite, e seguravam com força suas bolsas. Mas era mais forte. Era como se a presa estivesse frente a frente com seu predador. Eu avancei. Como em um último impulso de sobrevivência ele jogou a água fervente em mim. Eu defendi meu rosto com meus braços, e senti-os queimar. Por isso até hoje eles são assim, e minha barriga também. Mas meu ódio dominava meu ser, e esmagou a dor, do mesmo jeito que meu pé agora esmagava o peito de meu padrasto, com meu chute enfurecido. Ele se desequilibrou e caiu de bunda no chão, arfando, derrubando a leiteira. Mas era muito forte e muito grande, e recuperou rapidamente o fôlego. Ele pegou uma cadeira de ferro do lado dele com uma mão só e ergueu como se não fosse nada. E veio pra cima de mim, como uma besta enlouquecida. Ele jogou a cadeira em mim, e uma das pernas atingiu em cheio a minha testa. Eu caí no chão. Ele subiu em cima de mim e começou a me esmurrar. Minha mãe ainda estava fraca, mas começou a bater nele, sem efeito. Cada soco que ele me dava era como se um bastão estivesse esmagando minha carne. Senti meu nariz se partindo. Eu ia perder a consciência, mas ainda estava calmo e pensando em um jeito de sair daquela posição. Foi aí que eu me lembrei. Me lembrei de entrar na moeda. Eu a segurei com força, e como se estivesse adentrando um calmo e suave rio, me deixei mergulhar. Era um com a moeda novamente. Nem me lembrei que não conseguia fazer isso há dias. Eu conseguia ver meu padrasto de dentro da moeda, olhando pras palmas daquelas mãos gordas enormes com uma expressão de espanto. Então, com toda minha força, resolvi emergir. Foi como se toda minha frieza tivesse se transformado em ódio novamente. Como se uma bomba dentro do meu peito tivesse explodido. Meu sangue estava fervendo, meus punhos cerrados, meus músculos tensos. Eu tenho certeza que meu olhar calmo se transformou numa careta de fúria. Eu saí da moeda como um foguete, e atingi meu padrasto com meu punho direito, bem no queixo. Ele caiu de lado. Eu subi nele da mesma maneira que ele estava em mim, e ia continuar batendo, mas percebi que ele estava desacordado. O impacto do meu soco foi extremamente forte. Nocauteou o homem. Sabe, depois eu fui perceber, quando eu soube que haviam outros como eu, que essa era minha “marca”, minha característica única. Porque geralmente se emerge com a mesma velocidade com a qual se mergulhou. Mas eu não. Eu conseguia controlar se saía suave como um gato ou feroz como uma onça.
Depois que tudo se aquietou, eu liguei pra polícia. Pra resumir, meu padrasto foi internado num hospício, eu tive que sustentar minha mãe, e alguns meses depois, meu irmãozinho. Quando fiz catorze anos, já não era mais criança. Eu tive que crescer muito, em muito pouco tempo. Mas sabe o que é legal? Depois que o boato de que eu havia batido tanto no meu padrasto que ele havia ficado louco se espalhou, aqueles garotos nunca mais me xingaram. E o mais importante: eu aprendi a reagir quando alguém xingava. Não só a mim, mas a outras pessoas da minha cor e da minha classe. E nunca mais me senti solitário. Eu tinha a mim mesmo e a Deus, e isso me bastava. Bem, vivi algumas aventuras, casei, tive seu pai e seus tios e tias, e hoje estou aqui. É isso.
Você deve estar se perguntando o motivo de eu estar te contando isso. Você não vê? Você é o mais esperto dos seus amigos, é o líder deles, não me diga que não percebeu. O que fez eu mergulhar de novo na moeda não foi meu medo. Também não foi meu ódio pelo meu padrasto. O que me fez mergulhar na moeda, meu neto, foi a certeza de que eu ganharia aquela briga, nem que tivesse que morrer no processo. Foi a minha determinação. A minha vontade. Aquilo que faz as pessoas terem gosto de enfrentar os perigos. Aquilo que faz os seres humanos subjugarem a natureza, as leis da física, até mesmo os desejos do destino. O que me salvou, criança, foi meu Espírito de Luta. E isso é a única coisa que não pode ser tirada de você.”
Foi aí então que Dario percebeu, para sua alegria, que seu avô era o maior homem que já havia conhecido. Depois daquela história, já nem sentia mais dor. A tristeza havia ido embora, e outro sentimento ia crescendo em seu lugar. E ele sabia muito bem qual era.