Cartas - Parte 3
"Michel,
Eu deixei para escrever sua carta por último pois sabia que seria a mais difícil de todas. Minha mão está tremendo e estou sentindo uma vontade absurda de chorar. Nunca em quase 10 anos de amizade eu sequer imaginei que escreveria uma carta de despedida para o meu melhor amigo. Nunca, nesses quase 10 anos imaginei que sentiria uma dor tão grande assim. Desde quando nos vimos pela primeira vez, quando você me chamou pra dar umas porradas naquele garoto do 6º ano eu sabia que a nossa amizade seria mais que uma simples amizade de escola. E eu estava certo. Você se tornou o irmão que a minha mãe não me deu. Meu parceiro, meu melhor amigo, o meu maior confidente. Alguém que eu permiti que me conhecesse, alguém que me deu a honra de me deixar fazer parte de sua vida, de todas as suas vitórias e derrotas. Na escola, na faculdade, na vida adulta, o Michel pai, o Michel que vi amadurecer graças ao nascimento de uma criança, o Michel que aprendeu a reconhecer seus erros com um antigo amor. Tenho muito orgulho de você, meu irmão. Muito orgulho de ter feito parte de todos esses momentos. Não quero que em momento algum você se sinta culpado com o que vou dizer e muito menos com o que decidi fazer. Não foi fácil. Sempre fui bissexual, Michel. Eu contraí a aids na segunda vez que me relacionei com um homem. Ele não sabia que estava infectado e quando me contou sobre, eu também já estava doente. Uma única vez com ele resultou nisso. Por algum tempo isso foi algo do qual tive vergonha, que eu não sabia lidar e tinha medo de como você reagiria. Eu sei, deveria ter contado, mas achei que nossa amizade se abalaria. Preferi esconder do que nunca mais ter a sua amizade. Sei lá. Já vi uma fase da sua vida que sei que não lidaria bem com isso, talvez você tivesse uma reação normal ao descobrir minha sexualidade, talvez não. Eu não paguei pra ver. E também não achei justo o peso da minha doença atrapalhar a melhor fase da sua vida, que foi a volta da Maria Luíza. Não tenho a menor dúvida de que você moveria céus e terra para que eu pudesse me tratar de algo incurável como a aids. E isso faria com que você saísse do seu caminho novamente. Além do que, você me conhece, Michel. Sabe do quanto gosto de estar vivo, de me sentir vivo. Saber que uma doença estava acabando comigo era algo que quase me levou a loucura. Uma loucura silenciosa. Eu me recusei a ver você e Maria Luíza sofrerem por algo que foi uma consequência dos meus atos. Depois veio a Samanta. Eu tentei fugir dela de todo jeito, mas de certa forma me parecia necessário sentir aquilo. E foi delicioso. Meu Deus, como era bom tê-la em meus braços. Cuide dela, meu irmão. Seja um tipo de pai para essa garota. Ela vai precisar de todo o apoio possível. Não a deixe se prender ao que tivemos e não viver coisas novas. Ela é nova, tem muito o que viver e sentir. E quanto a você, te conheço o suficiente para saber que jamais compreenderá a minha escolha, e eu aceito isso. Talvez daqui uns anos você me entenda. Ou não. Não sei. É estranho pensar por esse campo de visão. Geralmente a gente fala da nossa própria vida e sabe que vai viver/fazer aquilo. Falar de si mesmo quando sabe que não estará mais presente para as pessoas próximas é estranho. Viver, num geral é bastante estranho. Eu descobri isso nesses últimos meses.
Lembra de todos aqueles planos que tínhamos? Realize-os. E crie outros planos também. Viaje com Maria Luíza para um lugar romântico, vá esquiar na Suíça, leve Miguel para conhecer a Disney, abra o seu próprio negócio. Você vai longe. Eu acredito em você. Eu sempre acreditei em você. Seja para o Miguel um pai melhor do que o seu foi. Eu te amo meu irmão. Obrigado por todos os momentos bons, ruins e divertidos que vivemos. Acho que foi mais do que eu podia esperar de qualquer relação fraternal. Ter um amigo é bom, mas ter você como amigo foi uma honra.
Até a próxima vida, Michel."
Após terminar de ler a carta Maria Luíza colocou a carta sob o criado mudo. Atentou-se a expressão petrificada de Michel, os olhos verdes eram perdidos, sem direção alguma. Ela teve medo de vê-lo entrar em choque, até que então o ouviu engolir seco, piscar algumas vezes, tentando segurar a natural vontade de chorar. Um par de braços foi aberto, e o afago foi rapidamente aceito. Michel a apertou com força, sem medo de chorar ou sofrer nos braços da mulher amada. A blusa de Maria Luíza foi totalmente encharcada pelas lágrimas dele. Os dois acabaram deitados na cama presos naquele momento totalmente arrasador para eles. Sua ficha, enfim, tinha caído. A perda trouxe a Michel a mesma sensação de vazio que já sentira uma vez há 8 anos com a partida de Maria Luíza. Mas eles tiveram uma segunda vez para recomeçar. Bernard não voltaria.
Bernard nunca mais voltaria.