O segredo de Letícia - 4

Ricardo passou a tarde assistindo à televisão e vigiando discretamente Letícia, que adormecera. Ela dormia tão serenamente que ele não acreditou que pudesse estar enfrentando um problema tão sério.

-Precisamos ajudar você, Letícia.

O pai foi o primeiro a chegar.Ricardo jamais havia conversado sério com o pai e sabia que seria duro.

-Pai...aproximou-se timidamente.

-O que foi, Ricardo?

-É sobre a Letícia, ela está com um problema.

-Onde ela está?

-Dormindo.

-Ela sempre tem problemas, não é? Cadê o Lusinho?

-Telefonou agora há pouco dizendo que vai dormir na casa do amigo dele.Bem, acho melhor a gente esperar a mãe. É bom que eu converse com vocês dois.

-Vai ver, sua irmã está tendo problemas na escola porque estão mexendo com ela. Ai, meu Deus, que filha problemática que fui ter! Toda sensível, ninguém pode dizer nada com ela!

-Pai, a Letícia está com problemas sérios, precisando de ajuda.

-Desde pequena, essa menina é problemática, chorona. Ela devia entender que o mundo é cruel.

-Você é o pai dela, não devia ser cruel com ela.

Os olhos do pai fuzilaram o filho.

-O que você está insinuando, rapaz?

Ricardo sabia que não podia recuar.

-Pai, fazer piadas com o peso da Letícia não foi cruel da nossa parte? Nós a fizemos sofrer.

O pai o agarrou pela gola da camisa, berrando:

-Se você abrir novamente a boca, eu lhe arrebento!

-P-pai, não grite, a Letícia está descansando.

Pouco depois, a mãe voltou do trabalho e Ricardo se aliviou. Seria mais fácil.

Ela viu a tensão no rosto do filho e a raiva no rosto do marido e quis saber o que acontecera. Ricardo sabia que precisava conduzir a situação com tato.

-Mãe, pai, eu quero dizer que sabemos que há tempos anda acontecendo algo estranho com a Letícia. Eu...

-Sim- interrompeu a mãe - ela emagreceu de forma estranha e inexplicável, mudou o comportamento, parece doente. Não sabemos o que há com ela.

Ricardo retomou a conversa:

-Eu resolvi investigar, conversei com uma colega dela, pesquisei na Internet e hoje, depois do almoço, resolvi falar com a Letícia. No começo, foi bem difícil, ela não quis dizer nada, mas depois ela... me revelou...

-Desembucha, meu Deus! o pai não aguentava.

Então, Ricardo contou aos pais o segredo de Letícia. A mãe levou a mão à boca, horrorizada. O pai sacudiu a cabeça, incrédulo. Por fim, falou:

-Era isso que você queria dizer, Ricardo? Que a culpa é minha agora? Que ele tem problemas porque brincávamos com ela por ser gorda? Mas me diga, rapaz: que culpa nós temos se a Letícia tem uma cabeça fraca e não aguenta que mexam com ela? Em todo canto, vamos encontrar gente que vai mexer com a gente, querer derrubar a gente! Se sua irmã está com esse problema, é porque ela é doida, descontrolada, entendeu?

A mulher repreendeu o marido:

-Cale-se, Henrique! Não fale assim da sua filha!

O filho não queria acreditar:

-Pai, isso é horrível da sua parte!

Entretanto, o homem estava incontrolável e prosseguia:

-Ora essa, não bastaram, durante anos, a vergonha e a chateação de andar com uma filha gorducha, desajeitada e chorona, agora terei o constrangimento de ter uma filha com um problema desses! Uma filha doida!

Se ele prestasse atenção à mulher e ao filho, veria os rostos constrangidos de ambos.

-Eu só represento isso para você, pai? Vergonha e chateação? Você me acha doida?

O homem se voltou. Letícia, o olhava, pálida, os olhos brilhantes de raiva e mágoa.

-Bem...ele murchou.

-Você não é meu pai, você é um monstro, eu odeio você, seu desgraçado!Letícia desabou em lágrimas, parecendo que ia cair.

-Letícia, querida, vamos para o quarto.Ricardo a abraçou e a levou da sala.

A mãe foi atrás, deixando o pai sozinho na sala, só voltando após um certo tempo, sentando no sofá.

-E então? perguntou o marido.

-Conversei com ela e lhe dei um calmante. É bom deixá-la descansando. Ela hoje quase não comeu e está muito fraca e abalada.

-Perguntou a ela sobre...?

-Sim, perguntei. Pedi a Ricardo para nos deixar a sós e nós duas conversamos. Quando ela contou, eu não quis acreditar. Deixei-a descansando. Minha menina!chorou.

-Bem...Amélia...

-Vamos ter que encarar, Henrique, a Letícia está com bulimia! Isso é uma doença! E ela pode morrer disso! E outra coisa: nunca mais quero ouvi-lo dizer que nossa filha é doida! Ela já sofreu mais do que o suficiente!

No quarto, agarrada ao seu urso de pelúcia, Letícia estava de olhos fechados, pensando no que seria de sua vida agora que sabiam de seu segredo.

Epílogo

Letícia abriu a porta. Um senhor grisalho levantou a cabeça ao vê-la e perguntou gentilmente:

-Letícia Medeiros?

-Sim, sou eu mesma.

-Sente-se, filha.falou o terapeuta.

A jovem sentou, pensando em como tinham sido seus últimos dias: exames médicos e uma ida ao nutricionista. Uma endoscopia revelara uma úlcera, resultado dos vômitos induzidos.

De olhos baixos, envergonhada, falou baixinho:

-Doutor, eu tenho bulimia.

-Estou aqui para ajudá-la, Letícia, apenas para ajudá-la. Lembre que primeiro você tem de estar bem consigo mesma, fortalecendo-se para vencer sua doença.

Foi a primeira vez que Letícia se sentiu confiante e serena naquele dia. Mas ela sabia que a luta seria longa e sofrida.