Eu ando só – Parte I

- Você tem fugido das nossas consultas, Bernard. – Laura prendeu os cabelos loiros num rabo de cavalo depois ajeitou os óculos modernos. Apesar de já formada em Psicologia, ela tinha somente 21 anos.

- Você as vezes me deixa irritado, Laura.

Sua risada doce contagiou o ambiente por alguns minutos, mas depois voltou a habitual curiosidade por minha existência. Ela ajeitou seu caderninho entre as pernas, pronta para me ouvir. Por um momento vacilei com o que ia falar. Respirei fundo e cruzei os braços no peito.

- Eu tomei uma decisão.

- Sobre o que?

- Sobre mim.

- E qual seria a decisão?

- Eu vou me suicidar.

Laura riu alto. Nossa relação médico-paciente as vezes era assim, um tanto diferente. Eu gostava dela, mas nem sempre das consultas. Demorou algum tempo para notar que eu não estava brincando. Ela arregalou os olhos azuis, espantada.

- Você o que??

- Laura, eu não vim aqui perguntar o que você acha ou se você concorda.

- Bern..

- Só me escuta. Eu estou morrendo, você sabe disso. Olha pra mim! Eu estou definhando. Não quero virar um problema para as pessoas que amo. Não quero Maria Luíza e Michel deixando de viver o que eles têm de viver por minha causa! – Ela abriu a boca para falar, mas a fechou em seguida. – Será algo simples, indolor. Eu preparei tudo.

- Você fala como se ninguém fosse sofrer. – Retrucou, com a voz embargada. Eu gostaria de que ela não chorasse na minha frente.

- Eu sei que vocês irão sofrer. – Revirei os olhos. – Eu já estou sofrendo em silêncio por isso tudo, mas é o que tem de ser feito.

- Não!

- Laura... – Amenizei o tom da minha voz. – Obrigado por tudo, de verdade.

- Bernard, não faz isso, por favor.

Fomos interrompidos por uma ligação vinda do meu celular. Olhei no visor e uma tinha uma foto de Samanta mostrando a língua. Agradeci mentalmente por ser salvo de mais uma longa e difícil conversa com Laura.

- A gente se fala depois, ok? – Falei para Laura, que assentiu, chorosa. Na verdade não teria um depois.

Atendi a ligação dela, forçando-me parecer tão normal como sempre.

“E aí!”

- Ei, caipira! Como vai?

“Acho que bem... E você?”

- Eu estou ótimo.

Ouvi uma risadinha irônica do outro lado que preferi ignorar. Era uma sensação de tranquilidade falar com Samanta. O silêncio prevaleceu por alguns minutos, o que me fez lembrar de minha noite com ela. E eu sabia que era mútua a lembrança.

"Eu só liguei para avisar que a dona Malu e o Michel viajaram para a Alemanha. Eles tentaram falar contigo, mas não conseguiram."

- Então você resolveu me avisar.

"Na verdade eu não queria ouvir a sua voz, mas como foi um pedido deles..."

Sorri ao ouvir sua resposta. Era inevitável não pensar em como tudo seria diferente se Samanta tivesse chegado na minha vida antes.

- Obrigado.

"Não há de que."

Naquele momento eu já sabia o que fazer com a viagem de Maria Luíza e Michel. Isso não me preocupava ou me angustiava, o que me fazia sofrer era saber as pessoas que eu deixaria para trás. Isso incluía a teimosa caipira.

"Eu vou desligar."

- Samanta...

"Não."

- Mas...

"Eu disse que não!"

- Eu sei.

Prestes a desistir de tentar conversar, ouvi um suspiro triste vindo antes de sua fala.

"Não você não sabe. Você não sabe o que faz, pois se soubesse não o faria."

- O Miguel está contigo?

"Não. Está com a dona Alice."

- Me espera.

Finalizei a ligação sem esperar por uma resposta. Eu preciso vê-la novamente.

(...)

A primeira reação que Samanta teve ao me ver foi meio explosiva. Ela passou pelo menos 2 minutos me batendo e dizendo o quanto me odiava e queria que eu morresse (a ironia da frase na minha atual situação não me passou despercebido). Para contê-la tive que fazer o que qualquer pessoa faria nessa situação.

- (...) e eu não aguento mais me sentir bem só quando estou com você! – Fechei a porta do apartamento e fui seguindo uma irritadiça Samanta pela sala. – Eu nem sei porque diabos deixei você entrar!

- Eu também não sei.

Puxei Samanta para os meus braços. Ela estava encantadoramente linda com os cabelos cacheados presos em um coque frouxo, apesar da cara sempre braba.

- O que você está fazendo? – Eu segurei sua cintura e a levei até o sofá. – Bernard...

Sentada a força no meu colo, Samanta voltou a brigar comigo. E a cada tapa eu lhe roubava um beijo. Ganhei alguns arranhões e um soco não intencional no canto da boca.

- CARALHO! – Gritei, colocando a mão sob a boca, que sangrava. Samanta tentou se desculpar e usei isso a meu favor.

- É sério, me desculpa. – Pediu, ainda no meu colo. Sua mão macia tocou o meu rosto. – Eu não queria fazer isso.

- Ok. – Respondi, seco. Tentei limpar o sangue, mas sem muito sucesso.

Ela tirou a minha mão do lugar machucado e colocou sob a cintura dela. Seu corpo inclinou, de modo que agora nossos lábios estavam praticamente selados. Segurei o rosto dela, memorizando cada detalhe de seu rosto. Suas sardinhas delicadas, o nariz arrebitadinho e os olhos castanhos incrivelmente gentis, apesar de nem sempre condizer com o humor. Os lábios eram tão sensuais, tão meus.

- Você é tão linda.

- Não faz isso comigo. – Beijei seu pescoço, alternando os toques entre a cintura e as coxas, arrancando leves gemidos. – Bernard...

Coloquei o dedo indicador sob seus lábios e a beijei novamente, mas não foi só um beijo, foi uma entrega de sentimentos. Parecia como um filme antigo em câmera lenta. Um filme antigo, sensual e romântico. Até então eu duvidava do que realmente sentia por Samanta, mas o meu medo de perde-la foi mais do que suficiente para eu ter certeza dos meus sentimentos.

- Samanta... – Os meus dedos trabalhavam no meio de suas pernas. Ela gemeu, jogando a cabeça para trás, sem conseguir criar uma resposta. – Olha pra mim.

Ela obedeceu, trêmula de tanto prazer. A respiração na mesma proporção. Era a coisa mais linda que eu já tinha visto.

- Você promete que não vai me esquecer?

- Nem se eu quisesse seria possível. – Samanta selou os nossos lábios, puxando o meu corpo para deitarmos no sofá. – E eu juro que tento.

Samanta riu gostoso e baixinho no meu ouvido, depois me olhou com uma paixão, uma alegria de me ter com ela. Também nas íris castanhas eu encontrei uma inteira felicidade de quem queria estar ali e comigo. E aquilo me era o suficiente.

Passamos a noite inteira juntos, dividindo histórias e lembranças, coisas que pareciam normais, que me faziam pensar num futuro. Até que Samanta dormiu em meus braços, tão exausta e ao mesmo tempo dolorosamente linda. Deixei ela dormindo no sofá, mas enquanto me trocava para ir embora, continuei a observa-la.

E o que me veio após foi uma terrível crise de realidade.

“Qual é o propósito disso se vai ficar tudo para trás quando eu morrer? Eu vou ser só uma lembrança para ela. Por que tanta dor? A vida é tão estranha.”

E eu tinha a resposta para a minha própria pergunta: eu não queria estar doente. Eu não queria ser uma página virada na vida dela. Não queria virar uma memória para os meus melhores amigos. Eu não queria estar morrendo.

- Dorme bem, minha princesa. – Dei um beijo na testa de Samanta, que apenas ressonou alto, mas não acordou. Saí em silêncio do apartamento de Michel, mas me peguei olhando para trás com um sentimento de angustia. Eu nunca mais entraria naquele lugar novamente.

(...)

O vidro que combinava os comprimidos fatais para o meu suicídio se encontrava no mesmo lugar que eu havia deixado: em cima da mesa na cozinha. Eu olhei o vidro, depois peguei as cartas que eu escrevi para Michel, Maria Luíza e Samanta e deixei ao lado. Sentei-me a mesa e segurei meu celular por um tempo até tomar coragem de ligar para a última pessoa que eu gostaria de ver na vida.

“Oi. Sim, sou eu. Você está em casa? Ok, eu vou passar aí.”

Era um cheiro particular e familiar o da casa. Não havia mudado muito desde a última vez que estive ali. A última vez eu fui embora prometendo a mim mesmo que nunca mais voltaria, que nunca mais procuraria por ela. Abri a porta de acesso a cozinha e a encontrei lavando a louça. Não nos olhamos e por alguns minutos o silêncio prevaleceu no cômodo da minha antiga casa. Segurei a miniatura do globo que ficava em cima da geladeira. Eu havia feito na escola no 7º ano e dado para ela de presente.

- Não é à toa que o clima está um tanto peculiar na cidade de São Paulo. – Só encontrei na voz dela um sarcasmo que também era meu, afinal, eu herdei dela.

- Acho que vai chover.

Ela se encostou na pia, secou as mãos no avental rosa e me avaliou por um algum tempo. Pela primeira vez eu não consegui sustentar seu olhar.

- Estou surpresa com a sua visita.

- Eu também. – Sentei-me a mesa. E senti um cansaço inexplicável. - Como você está? – Ela deu uma risada debochada que automaticamente eu entendi o motivo. – Certo.

- Eu acho curioso você perguntar como se por acaso se importasse.

Era o estopim de sempre com minha mãe.

- Eu não vim aqui para isso. – Ela respirou fundo, e balançou a cabeça negativamente e voltou a lavar a louça. – Não quero brigar.

- Eu estou bem, Bernard. Sempre estou bem.

- Mãe.

- O que é?

- Eu estou morrendo.

Quando seu olhar encontrou o meu novamente era um par de olhos castanhos me encarando com estranheza, como quem não estava entendendo aquilo. Minha mãe poderia ter rido ou me perguntado se era alguma espécie de brincadeira a minha declaração, mas ela sabia que eu não era de brincar. Não com ela.

- Bernard, do que você está me falando? – A voz, antes seca, agora tornara-se levemente desesperada.

- Mãe, eu descobri há alguns meses que estou doente, muito doente... Eu estou com AIDS.

A reação dela foi o que mais me surpreendeu. Ela começou a me dar uns tapas na cabeça, depois no braço, eu fui me defendendo como pude de seu ataque até que vi um pingo de lágrima caindo no meu braço. Abruptamente a vi se afastar, voltando até a pia e ficando de costas para mim.

- Você está se medicando?

- Sim.

- Ótimo. - Dissera, simplesmente. Fria e forte, como sempre fora desde que meu pai nos deixou. – Então tudo vai ficar bem. Eu já li que quem se medica direito quando tem AIDS vive por bastante tempo.


Ela continuou falando, agora de forma mais otimista que eu viveria bem com isso, pois era forte. Eu não a escutava. Não conseguia mais processar qualquer coisa. Eu não podia falar para ela sobre o que eu pretendia fazer. Ela era a minha mãe, independente de todas as razões que tenham me feito ficar longe dela ou me feito por muitas vezes odiá-la. Como explicar para a mulher que me pôs no mundo que eu não conseguia lidar com uma doença que me matava gradativamente? Era uma dor que ela não conseguiria suportar.

- Vou na minha vizinha, ok? É rápido! Você me espera aí que eu preciso conversar contigo. – A voz de minha mãe me puxara a realidade. Eu apenas assenti. Ela saiu da cozinha apressada.

“Eu preciso fazer isso sozinho.”

Procurei por um papel e uma caneta na cozinha e os encontrei dentro da gaveta de pratos. Respirei fundo antes de começar a escrever uma breve despedida. Eu não esperava muito de uma despedida com a minha mãe. Infelizmente as nossas mágoas um com o outro eram maiores do que a nossa vontade de nos perdoar. Algumas coisas são assim. E nada pode mudar.

“Mãe,
Apesar de todas as nossas incontáveis diferenças você sabe o que eu sou, pois eu sou muito de você. E talvez aí esteja o maior atrito, somos extremamente parecidos. Por favor, lembre-se de mim nos nossos bons momentos. E quanto a minha escolha... Eu fiz o melhor por mim e por todas as pessoas que me importo. Talvez digam que foi orgulho ou covardia. Eu prefiro dizer que o meu maior ato de coragem.
Bernard.”


Deixei o bilhete dentro da gaveta de pano de prato e saí alguns minutos depois. Era uma escolha minha, ninguém teria que lidar com isso ou se culpar.

A primeira coisa que eu senti que me olhava quando entrei em meu apartamento, por mais bizarro que fosse, era o vidro com os comprimidos. É claro que isso devia ser algum tipo de paranoia que a pessoa tem quando vai fazer algo que vai mudar não apenas a sua própria vida, como também a de pessoas de seu círculo de importância afetiva. Por alguns minutos me permiti ter uma onda de nostalgia.

Peguei o frasco e fui para a sala. “A minha velha sala.” Lembrei de como começou minha amizade com Michel, de como eu odiei e amei Maria Luíza o maior imã para problemas que já conheci. Abri o vidro e tomei o primeiro comprimido. Pensei em Samanta e sorri com a lembrança de quando a vi pela primeira vez e de como eu a desejei de imediato. Meu pai me abraçando na minha formatura da 4ª série, minha mãe sorrindo amorosamente. – Era extremamente forte o efeito, tomei mais um. - Meu pai indo embora, dizendo que era impossível viver com alguém como a minha mãe. Eu e minha mãe discutindo durante o meu aniversário. A primeira vez que ela disse que me odiava. Joguei 5 comprimidos na mão e os engoli. Senti meu corpo reagir com aquela dosagem alta de remédios para depressão. Náusea. Foquei nas lembranças. Eu, Elena e Michel na escola rindo de um garoto que usava óculos fundo de garrafa. O nascimento de Miguel. “É claro que você vai ser o padrinho dele.” – Michel me disse, completamente bêbado e alegre pelo nascimento de seu garoto. A minha primeira vez que eu tive dúvidas sobre minha sexualidade. O meu primeiro envolvimento com alguém do mesmo sexo. A minha boca secou e uma dor no peito me atingiu com força suficiente para me fazer cair no chão. A última coisa que me veio à mente foi o dia que Arthur me contou que estava doente e coincidentemente reencontrei Maria Luíza. Era para ser o início do meu fim, mas na verdade a gente morre todo dia. Todo ano que você faz aniversário é um ano a menos na sua existência. A matemática básica da vida é uma das coisas mais cruéis que existem.




"Não há beleza alguma em morrer." Bernard se concentrou nas batidas de seu coração. E a minutos de morrer descobriu um prazer sombrio na batalha que seu coração travava dentro do peito dele. “Eu não tenho mais forças.” As memórias não tinham mais forças, tudo era um emaranhado de pessoas e lugares.


Um último choque no peito e ele caiu no chão. Viu o pé de seu sofá pela última vez e repetiu para si mesmo antes do fim de seus agitados 24 anos de vida. “Não há beleza alguma em morrer.”

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Oie!!!!!!!

Pessoal, peço desculpas pela demora. Eu tentei adiantar alguns capítulos e também fiz uns trabalhos aí pra uma amiga. Depois divulgo aqui também.

O título do capítulo ``Eu ando só´´ é uma alusão a uma música do Green Day. Eu achei muito parecido com Bernard. Ele morreu sem querer envolvendo os amigos (mesmo que de alguma forma mais para frente isso os envolva), fez tudo sozinho e sem arrependimentos de seu feito, porém, triste por saber do que deixaria.

Acho que essa foi a história que eu mais dei fim nos personagens auaheuheuhauhauhea eu tinha um medo cruel de matar meus personagens.

Não estamos na reta final de UD mas estamos encaminhado para tal... E sim, já tem uma história na cabeça e um conto, não sei pra quando, mas aos poucos eu vou dando informações.

Pra quem acompanha UD espero que esteja gostando. <3

Dúvidas, xingamentos, elogios, presentinhos (rsss) estou no face: "Tamiris Vitória" e e-mail: tavitoria1@gmail.com

Breve tem a parte 2.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 25/10/2016
Reeditado em 12/06/2022
Código do texto: T5803116
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