OS DOZE DE INGLATERRA

OS DOZE DE INGLATERRA

(Episódio histórico da Baixa Idade Média Portuguesa, embora envolto em lendas, ocorrido após o assassinato da “mísera e mesquinha” Ignez de Castro, versão

poética de William Lagos, 4 de abril de 2016)

OS DOZE DE INGLATERRA I

Eu me lembro, era ainda adolescente,

quando Camões me despertou curiosidade,

ao decorar, entusiasmadamente

três dezenas de estrofes, em breve ingenuidade,

de seu Primeiro Canto, qual se a tarefa ingente

de Os Lusíadas relembrar na integridade

fosse possível para um tal jovem moderno,

ante as pressões de seu viver hodierno...

Com trinta estrofes, enfim, me contentei;

porém a cada vez que as declamava

nesses Doze de Inglaterra me fixei,

que mais ninguém que conhecesse recordava;

aos professores na escola consultei:

nenhum sequer do nome se lembrava!...

Fui sopitando a inicial curiosidade

sob outras coisas de maior necessidade.

Mas ao longo do tempo fui reunindo

informações que agreguei à mesma ideia;

daqui uma citação, dali um bem-vindo,

mas breve fato sobre um ponto da odisseia;

de Ignez de Castro na velha saga descobrindo

que dois dos Doze eram filhos – que epopeia! –

precisamente de um dos assassinos!...

Ficou-me o cérebro bimbalhando em sinos...

E desse modo, finalmente me atrevi,

na melhor ottava rima Camoniana,

a recontar sua história – e eis-me aqui,

com ousadia que a fantasia irmana;

e não somente a velha lenda recolhi

dessa antiquíssima saga lusitana,

como explicar suas falhas tentarei,

com liberdade que a mim mesmo atribuirei...

OS DOZE DE INGLATERRA II

Pelo Brasil os escarnecedores

buscam zombar dos portugueses ancestrais,

sem relembrar os seus navegadores,

seus soldados, seus valente generais;

por toda a Europa foram lutadores,

nesses séculos passados imortais;

por todo o mundo sua linguagem espalharam

e até cinco Prêmios Nobel conquistaram!

E os brasileiros não têm um só sequer

(tanto em ciências como em literatura);

sem o português, fragmentação qualquer

teria ocorrido em nossa pátria obscura,

qual ocorreu na Hispanoamérica, a perder

a unidade que a tornaria mais segura,

até a língua espanhola abandonada,

por dialetos indígenas superada!...

Pois quero aqui recordar antepassados,

não só os meus, mas de muitos brasileiros,

que ao verem os ancestrais vilipendiados,

pretendem descender só de estrangeiros;

os portugueses como cômicos lembrados

seus territórios conservaram derradeiros,

só os abandonando por pressão violenta

da ONU, que interesses escusos implementa!

Este meu Prólogo já foi longe demais;

minha ideologia é a arte pela arte,

em fantasia ou em descrições reais,

do que um dia ocorreu em antiga parte.

Vamos portanto a essas eras medievais

que a lusitana gente então comparte,

no mesmo pé que esses reinos poderosos

a nos impor seus heróis por mais gloriosos!

OS DOZE DE INGLATERRA III

De mil trezentos e oitenta e seis corria o ano

em que John of Gaunt ou João de Gantes,

com D. João de Portugal, que chamou “mano”,

fez um tratado dos mais interessantes:

deu-lhe sua filha Philippa, em grande afano,

num casamento de pompas importantes,

contra a aliança com Dom João Primeiro,

que foi chamado de “invicto cavaleiro”,

Era o Duque de Lancaster João de Gantes;

John of Gaunt era só corruptela

do nome Ghent, em Flandres, em que dantes

ele nascera da família nobre e bela

dos Plantagenetas, em épocas brilhantes

das Cruzadas... e com Constança de Castela

já contraíra o seu segundo matrimônio,

com a certeza de aumentar seu patrimônio.

Ora, Constança era de Castela a herdeira;

casaram em trezentos e setenta e um;

sua pretensão apresentaria bem ligeira

para o trono castelhano, algo comum,

quando irmãos não havia. E era certeira

a referida pretensão, porém quase nenhum

dos orgulhosos nobres castelhanos

se demonstrou satisfeito com tais planos.

Por certo tinha João de Gantes partidários,

desde mil trezentos e setenta e dois

e aduziu a seus títulos nobiliários

o de Rei de Castela, porém logo depois,

em León se ergueram seus adversários:

Juán de Trastâmara insurgiu-se, pois,

por ser parente e tio dessa Constança,

o seu trono assumindo sem tardança.

OS DOZE DE INGLATERRA IV

Reinava Ricardo, o Coração-de-Leão,

nessas terras brumosas de Inglaterra

e os exércitos ingleses com ele vão

reconquistar de Jerusalém a terra;

foi combater com Saladino o Curdo, então,

em uma longa e dolorosa guerra;

mas derrotado, demandando o norte,

preso foi por um barão em grande forte.

Este exigiu para soltá-lo um grão resgate,

que o povo reuniu em sacrifício, mas em vão;

de alguma forma foi roubado em saque,

talvez chegando ao tesouro de seu irmão,

chamado João Sem-Terra, em triste baque,

o qual ansiava ser chamado de Rei João,

que após revolta, assinou a Magna Charta,

que os direitos primeiros com o povo seu reparta.

Ora, entre Cruzadas e tais revoluções,

João de Gantes só pôde, enfim, lutar

pela coroa de tão grandes ambições,

pós mil trezentos e oitenta e seis chegar,

com o João português iniciou negociações,

fez o tratado que acabou por assinar

e uma tropa de corajosos lusitanos

foi auxiliá-lo contra os castelhanos!...

Juán de Trastâmara com Navarra então se aliou

e recebeu um certo auxílio até de França;

em consequência a João de Gantes derrotou,

mas acabaram por assinar nova aliança,

pela qual João de Lencastre concordou

em desistir da pretensão que o trono alcança,

casando a filha Catarina com Henrique,

filho de Juán, que a paz destarte se edifique...

OS DOZE DE INGLATERRA V

Seu genro um dia será o Henrique Terceiro

de Castela e de León. Destarte, João de Gantes

teve em seu neto o sucessor e herdeiro,

do mesmo modo que em Portugal, já dantes,

por Dona Philippa de Lencastre o reino inteiro

de Portugal, em tais tratados dominantes,

foi governado por essa dupla dinastia

em aliança secular que ainda seria!...

Depois, é claro que os castelhanos

se empenharam a combater os mouros

e mesmo um Papa auxiliou-os em seus planos,

declarando uma cruzada com seus louros,

na qual chegaram franceses e italianos,

mais atraídos por conquista de tesouros.

Um dia Castela toda a Espanha dominou

e conquistar a Portugal também tentou...

Mas isso é outra história, realmente.

Dom João de Gantes retornou à Inglaterra,

na sua guarda pessoal levando gente

da corajosa e lusitana terra,

ao mesmo tempo que, naturalmente,

Dona Constança sua confiança mais encerra

em suas damas de honra castelhanas,

tecendo a corte ducal em finas tramas.

De que outro conde ou duque medieval

fazer se pode semelhante afirmação:

que sete casas reais gerou, afinal?

Descendem dele a espanhola geração

e os grandes reis do antigo Portugal;

os Lancasters e os Yorks, na longa duração

dessa que foi Guerra das Rosas já chamada,

mais os Tudors, de que Elizabeth foi gerada.

OS DOZE DE INGLATERRA VI

Ainda os Nevilles e os Beauforts da Inglaterra,

de que descendem dinastias europeias;

e mesmo quando linha direta encerra,

seus descendentes em famílias já plebeias,

a vencer e a morrer em alheia guerra,

por toda a Europa nas constantes odisseias...

Mas onde está dos Doze a grande glória?

Surge daqui a sua chamada e a sua vitória!...

Ora, ocorreu que, por razões diversas,

conforme as fontes que sejam consultadas,

Doze Damas da Corte, por perversas

ilações foram por nobres insultadas; (*)

dizem alguns que por calúnias tersas,

outros, por serem espanholas, condenadas;

não da Rainha, porém damas da duquesa,

às quais injúrias se lançaram por vilezas...

(*) Falsidades.

Mas a versão que suporta a maioria

é a de que foram se banhar numa lagoa

e sua nudez ali exposta se veria,

como o faria qualquer plebeia à toa,

numa época em que camisola se vestia,

mesmo no leito do casal, quando amor voa,

sem se deixarem ver sequer pelos maridos:

corpos desnudos pela Igreja proibidos!...

Certo é que havia aias ao redor,

para impedir a chegada de curiosos,

estando pajens mais além, em protetor

círculo para impedir a escandalosos

desvendar dessas damas o rubor,

pois fariam comentários perniciosos...

Porém dois nobres romperam tais defesas,

mesmo de longe espiando suas belezas!...

OS DOZE DE INGLATERRA VII

Mais tarde um deles foi por dama repelido:

seria Ethewalda o nome da donzela;

e em seu rancor afirmou ter assistido

essa nudez que ela agora não revela:

nome de “damas” não tendo merecido,

todas Doze a incluir em tal procela...

Ao rei pediram a defesa de sua honra,

contra o mau cavaleiro que as desonra!...

Este, porém, reuniu onze seus amigos,

sem nada a ver com o fato a maioria,

mas atraídos a lutar contra inimigos...

“São Doze Damas,” seu ofensor dizia,

“Seremos Doze a exigir os seus castigos!”

E concordaram com tudo o que queria,

Doze, portanto, a apresentar-se ao rei,

Doze Campeões então requer a antiga lei!...

Mas eram os doze mais famosos cavaleiros

a que nenhum se apresentou para enfrentar;

também os válidos do rei e seus parceiros,

que declarou que a ninguém iria obrigar!...

Tomaram as damas os conselhos mais certeiros,

indo no Duque de Lencastre se apoiar,

que na sua guarda ainda tinha portugueses

e era genro de Dom João há tantos meses!...

Dizem alguns que de memória ele escreveu

os nomes desses doze cavaleiros,

os quais lembrava de quando combateu;

mas falam outros que cantaram os pregoeiros

e uma centena e até mais se ofereceu,

numa urna seus nomes parelheiros...

Dona Philippa de Lencastre, sua rainha,

nome após nome retirou com sua mãozinha!

OS DOZE DE INGLATERRA VIII

Há um argumento contra esta versão,

bem detalhada por Theophilo Braga:

de João Pacheco era Lopo seu irmão;

Álvaro e Ruy Cerveira em igual saga;

saem dois pares de irmãos em tal leilão?

Entre centenas a sorte aos quatro afaga?

Talvez alguns tenham sido nominados,

só os restantes então sendo sorteados.

As Doze Damas escreveram também cartas

e é possível que fosse esse o tal sorteio.

Houve motivos, Fado, que as repartas

entre os Doze Cavaleiros, sem receio?

Teriam as chances sido assim tão fartas

Que de Ethewalda quisesse a sorte de permeio

que fosse destinada ao Grão-Magriço,

Dom Álvaro Coutinho, em compromisso?...

Foram de fato treze os cavaleiros;

já há muitos séculos seu rol foi demarcado:

Álvaro Gonçalves Coutinho entre os primeiros,

de Magriço ou Grão-Magriço apelidado;

Dom Álvaro Vaz de Almada entre os parceiros,

o melhor por tal missão aquinhoado,

pois Cavaleiro da Jarreteira foi nomeado,

Conde de Avranches depois sendo instaurado.

Dom João Fernandes Pacheco, que era filho

desse Diogo que matara a bela Ignez

de Castro e que fugira em um potrilho,

quando aos comparsas a execução de fez;

Lopo Fernandes Pacheco, de igual trilho,

da irmã do Magriço foi marido, por sua vez;

nasceu bastardo, mas foi legitimado,

antes que o pai se tornasse um exilado...

OS DOZE DE INGLATERRA IX

De Ferreira de Ares era o senhor,

Dom João Fernandes, de todos o mais velho;

Álvaro Mendes Cerveira sendo o possuidor

do Paço da Pena e do seu Concelho; (*)

Ruy Mendes Cerveira era dele seguidor,

o irmão mais velho tomando como espelho;

Luiz Gonsalves Malafaia, que sangue antigo talha;

Soeiro da Costa, que de Azincourt fez a batalha.

(*) Distrito em província portuguesa.

A João Pereira da Cunha de Agostim,

sobrinho-neto de Nuno Álvares Pereira,

o Condestável, escolheu a sorte assim;

Martim Lopes de Azevedo, em igual eira;

Pedro Homem da Costa, ao mesmo fim;

Dom Ruy Gomes da Silva, em cuja esteira

o aguardava no porvir de Campo Maior

e ainda de Ouguela ser o Alcaide-Mór!...

Foi Vasco Ayres da Costa o derradeiro,

cujos amigos apelidaram “Corte Real”,

da confraria sendo o décimo terceiro.

Tropa de gente corajosa e mui leal,

ainda um destes não armado cavaleiro;

muitos discutem qual seria, afinal,

os mais prováveis sendo Ruy Cerveira,

ou então Lopo, do irmão seguindo a esteira.

Sempre surgiram maliciosos zombeteiros,

a comentar que Camões os inventou,

no Canto Sexto, em narração aos marinheiros

de Vasco da Gama, Fernão Veloso colocou,

em mil quinhentos e setenta e dois, porém primeiros

nomeados foram, pois crônica se achou

“De Alguns Fidalgos as Cavalarias”,

talvez servindo-lhe de fontes e seus guias...

OS DOZE DE INGLATERRA X

Também Jorge Ferreira de Vasconcellos,

em mil quinhentos e sessenta e sete, no “Memorial

das Proezas dos Doze Cavaleiros Belos

da Segunda Távola Redonda”, redigiu o fanal;

Tal narrativa era contada nos castelos;

Pedro Mariz também escreveu o seu “Jornal”

em Noventa e Oito; e quinze anos depois

Manoel Corrêa foi completar os dois!...

Pois os Doze Cavaleiros existiram

e certamente estiveram na Inglaterra;

em um veleiro juntos prosseguiram,

mas o Magriço decidiu seguir por terra,

que na hora do torneio se veriam:

não ficariam sozinhos nessa guerra!

“Porém quero conhecer terras estranhas,

várias gentes e leis, variadas manhas!...”

Até aqui falamos só de história,

mas neste ponto é que começa a lenda;

buscou o Magriço a sua própria glória

e em seu cavalo seguiu estrada e senda,

sem que tivesse gravado na memória

que entre França e Inglaterra grande fenda

pelo Canal da Mancha fora aberta,

belo obstáculo para a gente mais esperta!

Teriam os Doze atravessado a Irlanda,

em que enfrentaram guerreiros e gigantes,

duendes, canibais, gente nefanda,

em aventuras bastante interessantes,

com leprechauns e goblins dessa banda... (*)

Mas tais relatos são bastante discordantes;

só se concorda que foi gente do mar,

chamados Silques, na travessia os ajudar... (+)

(*) Uma espécie de duendes; pronuncie “lepercóns”. (+) Os “Silkies” da lenda

eram um povo assemelhado aos tritões e sereias.

OS DOZE DE INGLATERRA XI

Desembarcaram no País de Gales,

até Londres longuíssima viagem,

sem ter estradas e, para seus males,

enfrentando salteadores com coragem...

Porém que em tua paciência não te rales,

das peripécias encurtamos a voragem,

Chegaram a Londres feridos e cansados,

pelos futuros adversários desprezados.

E para mal dos pecados, não acharam

o seu Magriço, que ainda mais se demorara,

que este tempo em que os Doze se atrasaram.

Da Cavalaria o Código porém determinara:

com os campeões ingleses aprazaram

o dia do embate, tal qual se combinara...

Mas cada dama acolheu seu cavaleiro,

gente forte, a recobrar-se bem ligeiro!...

Mas Ethewalda, a que mais fora ofendida,

não tinha ainda seu campeão e cavaleiro...

“Nosso Magriço jurou, desde a saída

que aqui estaria, fiel sendo e companheiro...”

Mas chega a data de tal luta renhida:

para Ethewalda só sobrava o escudeiro!

mas quando disso souberam os ingleses,

só aceitaram os cavaleiros portugueses!

“Não lutaremos contra nosso inferior!

É contra as leis da real Cavalaria!...”

Chegara o dia e o paladino defensor

pensou Ethewalda que nunca chegaria!...

E decidiu-se por combate de estridor:

a justa individual não haveria;

seriam Onze contra Doze na “Mistura”, (*)

a margem dando a carnificina pura!...

(*) Tradução literal de Melée, ou combate coletivo em torneio.

OS DOZE DE INGLATERRA XII

Iria Dom Álvaro falhar ao compromisso?

Por certo um acidente lhe ocorrera!

Cruzara a Espanha toda o bom Magriço,

as Astúrias e a Navarra percorrera,

entrou na França pela Aquitânia no seu viço,

nenhum percalço até então lhe sucedera...

Mas finalmente, na altura de Calais, (*)

viu que esse mar não cruzaria só por fé!...

(*) Poro francês no Canal da Mancha. Pronuncie “calé”.

Mas eu jurei que seguiria a cavalo!

Dei minha palavra! – falou o português.

Afinal, é tão somente um grande valo!

E pelas ondas a nadar se fez...

Mas seu corcel não suportou o abalo

da travessia em tal desfaçatez

e Dom Magriço teve à praia de voltar

ou sua montada iria se afogar!...

No outro dia, intentou-o novamente,

fortes as ondas, igual o resultado;

no dia terceiro, mais um esforço ingente,

sendo outra vez pelo estreito derrotado.

“Por que não vai de barco?” – indagava a gente.

Dom Álvaro Coutinho já desacorçoado...

Então pediu conselhos a um barqueiro:

“Onde é mais fácil se cruzar primeiro...?”

“Eu lhe sugiro contratar barco maior,

subir a prancha montado em seu cavalo,

e que durante a travessia, por pior

que seja o vento, nunca desmontá-lo!...

Será assim de sua promessa cumpridor,

Sobre o animal o tempo todo e a cavalgá-lo!”

E assim se convenceu o bom Magriço:

maneira única de atender seu compromisso!

OS DOZE DE INGLATERRA XIII

E ainda se conta, por ali, à beira-mar,

a estranha história do espanhol ou português,

que mesmo um barco precisando contratar,

ficou montado por duas horas ou três,

no tombadilho do veleiro a navegar!...

Desembarcou em Dover, por sua vez, (*)

numa estalagem se deixando repousar

e ao pobre bicho deixando descansar!

(*) Porto inglês junto à Mancha, que chamam de “Canal Inglês”.

O fato é que na hora do torneio,

acompanhado por tambor e por clarim,

apresentou-se na liça, sem receio!

Ethewalda já pusera luto, enfim,

pela sua honra, perdida de permeio...

Mas o Magriço apresentou-se, assim,

antes que o rei anunciasse o seu começo:

“Majestade, a permissão lhe peço!...”

Para surpresa de toda a corte inglesa,

apesar de estar exausto da viagem,

Dom Álvaro demonstrou grande firmeza,

aos companheiros infundindo de coragem,

Venceu-se a luta, com a maior certeza,

provada a honra das damas, sem miragem,

como previa esse costume medieval,

lavado em sangue o insulto primordial!

O insultador pereceu com alguns mais,

ao enfrentarem o temível lutador;

nos portugueses só feridas não mortais...

Mas difundiu-se entre amigos o rancor.

Não temeram traições, porém rivais

em desafios para combates de valor,

nos quais acabariam por ser mortos

e demandaram de Portugal os portos...

OS DOZE DE INGLATERRA XIV

Mas nem todos voltaram. O Magriço

quis prosseguir nas suas aventuras;

logo em Flandres assumiu um compromisso,

pela defesa de mais donzelas puras;

era no “amor cortesão” o mais castiço,

voltando à pátria só depois de mil agruras...

Com Ethewalda, contudo, não casou,

ainda que várias damas desposou...

Passados tempos, contava história diferente:

que esse barqueiro não era outro que Charão, (*)

de tantos mortos o condutor indiferente,

tendo em seu bote já pequena multidão...

“Eu não transporto em meu barco viva gente,

porem posso dar-lhe ajuda, meu patrão:

ao Rei dos Peixes vou pedir que o auxilie

e à outra margem, em segurança, o guie!...”

(*) Caronte, o barqueiro do Hades.

“A sua palavra assim há de cumprir,

pois não fará de barco a travessia...”

Logo depois, um silvo agudo a emitir,

que um imenso espadarte atrairia...

“Porém depois de meu pedido ouvir,

me garantiu que só o cavalo levaria...”

‘Sempre apreciei sua bela carne quente,

mas não me agrada comer carne de gente...’”

“Naturalmente, a sua oferta recusei...

Ficou Charão a olhar-me, pensativo.

‘Então as aves do céu eu chamarei...’

Chegou uma águia veloz, em voo altivo

e logo meu pedido lhe expliquei...

‘Posso levá-lo, cavaleiro, eu pairo ativo

no meu voo, porém não o seu cavalo:

será um peso demasiado e meu abalo!’”

OS DOZE DE INGLATERRA XV

“Novamente eu recusei... Meio impaciente,

Fitou-me ainda outra vez o tal Charão:

‘Alternativa ainda tens remanescente:

vou convocar a bruma em turbilhão...’

Vasto nevoeiro se condensou, potente,

e na coragem de meu forte coração,

eu avancei para a balsa que formava

e em breve tempo pelo ar atravessava!”

Seus muitos filhos, em sua juventude,

por algum tempo até creram nessa história;

na adolescência, já ninguém disso se ilude,

embora cressem em sua passada glória,

com tanto esforço no combate rude,

em que obteve grande e real vitória...

Em mil quatrocentos e quarenta e cinco faleceu

quando seu filho Gonçalo o sucedeu...

Quem mais contesta essa história são ingleses:

ficou tão feia para a sua nobreza!...

Mas Soeiro da Costa ali lutou por muitos meses

e em Azincourt executou grande proeza,

a combater contra os rivais franceses...

Dom Álvaro de Almada serviu sua realeza,

chegando mesmo a receber a Jarreteira,

mais o condado de Avranches nessa esteira!

E na “Crônica de Enguerrand de Monstrelet”

foi registrado que três dos cavaleiros

contra gascões combateram pela fé

na honra de outra dama: cavalheiros!

Seriam Dom Álvaro, Dom João e outro, até,

Pedro Gonçalves, assim chamado por terceiros;

E nessa luta venceram seus opositores,

como nobres guerreiros lutadores!

OS DOZE DE INGLATERRA XVI

Dos gascões também os nomes nos são dados:

François de Grignols, também bravo guerreiro;

Archimbaud de la Roque, acompanhados

por um certo Maurignon, como o terceiro;

em Saint-Ouen nessas justas esforçados,

os portugueses senhores do terreiro,

que em mil quatrocentos e quatorze aconteceu,

tal qual combate que em Londres antes ocorreu.

Mas em que data se travou essa disputa?

De mil trezentos e oitenta e nove foi depois,

quando João de Gantes retornou da infensa luta;

antes do ano de Noventa e Quatro se propôs,

após a morte de Constança, a Impoluta.

Seria em Noventa e Três, falou-se, pois

Álvaro de Almada em Basileia combateu

Já em Quatorze, quando um suíço ele venceu.

Esse Magriço, Dom Álvaro Coutinho,

em mil trezentos e setenta e três nascera,

em Penedono, tão só um povoadinho

que El-Rei Dom João a seu pai só concedera,

em mil quatrocentos e oito, um pequeninho

feudo, mas que assim honra lhe trouxera.

Já em Noventa e Três teria vinte anos,

bem no verdor das ilusões e enganos...

Foi em Quatorze que o duque borgonhês

e Conde de Flandres seu serviço mencionou

pela coragem que mostrou mais de uma vez.

Somente honra, contudo, ali ganhou,

breve depois tornou ao solo português,

no qual, finalmente, se casou

com Isabel de Castro e descendentes

deixou, dos quais seis sobreviventes...

EPÍLOGO

Dom Álvaro Gonçalves Coutinho era filho de Gonçalo Vasques Coutinho, Senhor de Lionel, um marechal do reino, Alcaide-Mór de Trancoso e de Lamego, também Copeiro-Mór da Rainha Dona Philippa de Lencastre; e de Leonor Gonçalves de Azevedo, filha de Gonçalo Vasques de Azevedo, Senhor de Lourinhã, e de Dona Ignez Affonso, dama da Rainha precedente, Dona Leonor. Nasceu em algum ponto de 1373 e faleceu a 2 de julho de 1445.

Foi o Magriço pai de Gonçalo Coutinho, o segundo Conde de Marialva; de Fernando Coutinho, o quarto Marechal de Portugal; de dona Leonor Gonçalves Coutinho Fernandes; de Gonçalo Álvares Coutinho, que adotou o sobrenome de “Magriço”; de Pedro Vaz de Moura Coutinho e de Álvaro de Moura Coutinho, filhos de suas três esposas, embora a primeira tenha sido Dona Isabel de Castro, que morreu de parto.

Esta senhora, da melhor nobreza de Portugal, era filha de Dom Pedro da Costa, Senhor de Cadaval e de Dona Leonor Telles de Menezes, filha de Dom João Affonso Telles de Menezes, Conde de Barcellos. Faleceu em data ignorada e Dom Álvaro casou-se novamente, pelo menos duas vezes.

Mesmo que alguns britânicos contestem a Melée (Mistura ou Combate Coletivo) dos Doze Cavaleiros, foi esta registrada no mural que acrescentamos supra, pintado em afresco na Prefeitura de Londres por Ford Maddox, no final do século quatorze ou início do século quinze. Também afirmam que o Magriço nasceu em 1383, tendo portanto apenas dez anos na data mencionada para o combate, contestando de igual modo a possibilidade de vários dos demais cavaleiros mencionados terem podido participar.

Muitos dos detalhes, como a retirada dos nomes de uma urna por Dona Philippa de Lencastre, foram especificados por Theophilo Braga, em 1905, durante um dos raros desentendimentos entre Portugal e o então Reino Unido. O escritor e jornalista teria, segundo os britânicos, escrito por rancor e entusiasmo patriótico. O fato é que só a partir de então esses mesmos comentaristas passariam a pôr em dúvida a existência do combate.

Ficou o Magriço no imaginário português e, em 1966, a equipe portuguesa foi participar da Copa do Mundo realizada em Londres, na qual tirou o terceiro lugar. Foi apelidada de “Os Magriços”, pelos jornais lisboetas...

“Dom João de Gantes” ou John of Gaunt, como dissemos, corruptela de “Ghent”, cidade de Flandres, hoje na Bélgica, nasceu no castelo em que morava sua mãe, Dona Philippa de Hainault, sendo o terceiro filho vivo do rei inglês Edward III. Foi inicialmente Conde de Richmond, mas ao se casar com Dona Blanche de Lancaster, acabou por herdar o título de Duque de Lancaster, antes pertencendo ao pai desta dama. A partir de 1390, também recebeu o título de Duque da Aquitânia. Depois do falecimento de Dona Blanche, casou-se, como vimos, com Dona Constança de Castela e após a morte desta com Dona Katherine de Swynford, tendo deixado pelo menos dez filhos e filhas vivos após seu próprio falecimento.

Das Doze Damas só se registrou o nome de Dona Ethewalda, a ofendida e por sorteio a dama do Magriço, um nome anglo-saxão, contrariando a teoria de que as damas teriam sido insultadas por serem espanholas. Do ofensor e de seus onze companheiros os nomes não foram registrados.

Apenas a lenda diz que os Doze desembarcaram na Irlanda, impelidos por tempestades. As peripécias mencionadas caberiam no melhor romance de cavalaria tão em voga na época e podem ter sido compiladas de algumas dessas histórias que roubaram a razão de Dom Quixote de la Mancha. A travessia da Mancha do Magriço montado a cavalo no tombadilho é contestável, porém nada impossível para um cavaleiro obstinado com ele é descrito. A mais antiga crônica inglesa refere a chegada de um campeão acompanhado por drum and bugle, portanto “tambor e clarim”, perfeitamente possível, já que o Magriço poderia ter contratado facilmente dois músicos.