Sob Olhar das Erínias — Epílogo

Arthur abriu os olhos lentamente. A claridade do dia já havia diminuído, o céu encontrava-se num tom azul-escuro, e uma sombra cobria tudo. Sentou-se reto e mirou o oeste.O sol estava quase desaparecendo no horizonte.

O rapaz olhou para o lado,pensativo.

"Tá na hora...", afirmou a si, resignado.

Então o vento soprou forte e uma delicada, porém firme voz feminina soou às costas do rapaz:

- "Se a ninguém prejudicar, faça o que desejar...". O que você não entendeu nessa frase,Arthur?

Ciente de quem se tratava, abriu o sorriso e imediatamente pôs-se de pé. Daí girou nos calcanhares, ficando de frente para a dona da voz.

Parada de pé diante da estátua de terno sorriso, achava-se uma jovem. Ela era alta, magra e muito bonita. Usava um fino vestido branco,de corte curto,e possuía longos cabelos prateados e claros olhos verdes.Pendente sobre o peito,trazia um Triskele de prata.

Circunspecta, encarava Arthur.

O sorriso que ele esboçara quando a ouviu falar, esvaiu-se.

- Eu sei... Me deixei dominar pela raiva e quis me vingar usando os meus conhecimentos, só pra satisfazer o meu ego ferido.

De semblante fechado, a jovem passou rente a Arthur, deixando no ar um doce perfume de rosas. Ele a olhava ir, com expectativa. Eis que em sua cabeça ouviu: "Siga-me..."

Obedeceu.

A garota desceu a colina e levou-o para baixo de uma grande figueira, cujo pesado farfalhar fez-se escutar no momento em que, mais uma vez, o vento soprou forte... e agora faltava pouco para anoitecer. Restava apenas um pálido brilho dourado lá longe no horizonte, todavia, algumas estrelas já podiam ser vistas no firmamento...

- Aqui. - disse a moça, séria, sentando-se ao pé da árvore. Mal Arthur pôs-se ao lado dela, a ventania acalmou. Ele contemplou o céu a procura da lua, mas não a encontrou...

A garota descarregou:

- Humpf! Do que adiantou todo o trabalho que os seus ancestrais passaram para transmitir a vocês os conhecimentos sobre o Equilíbrio da Vida, As Leis Universais e o Amor ao Próximo, além de técnicas especiais para tornar a vida mais fácil, se esquecem de tudo ao menor acesso de raiva e desejo de vingança? Quantos mais deverão sofrer,passar fome e morrer até que vocês acordem? O que falta para se unirem e darem início a uma nova era,em vez de se separarem por preconceitos, vaidades, orgulho,e tantos outros sentimentos que nada acrescentam de bom? Por que anseiam tanto a infelicidade uns dos outros?

Cabisbaixo, o outro respondeu:

- O ser humano é uma criatura triste, sem dúvida... Aqui neste lugar - e mirou os planaltos sombrios a sua volta - vejo que deveria ter pensado mais possíveis consequências de meus atos. Agi que nem aquele a quem sempre detestei. Eu podia ter evitado tudo aquilo.Entretanto,me deixei prender na sombra de meu passado,e desprezei a sabedoria que aprendi para me vingar...- e olhou por cima do ombro com o coração tomado de arrependimento.- Eu só tinha 20 anos ...Tinha toda uma vida pela frente...

Fez-se silêncio. Enquanto a jovem admirava as estrelas, pensativa, Arthur permaneceu fitando o vazio, perdido em sua lembranças...Por um momento,apenas escutou-se o leve balançar das folhas sobre as suas cabeças...

Então a deidade falou:

- Dentro de vocês há dois leões: um negro e um branco. Eles vivem se conflitando. Sempre...Mas um dia um irá subjugar o outro.E sabe quem será? - após voltar-lhe o rosto, com os olhos verdes vívidos, ela mesma respondeu: - Aquele que vocês alimentarem...

- Verdade, Donzela... Se eu não tivesse optado por dar força ao que havia de pior em Cristhian, e em mim, nós não teríamos que iniciar tão cedo uma nova jornada. Fui o maior responsável pela rumo que as coisas tomaram.Se eu não tivesse sido tão impulsivo,orgulhoso e prepotente,agora não estaríamos presos por laços de ódio que só serão desfeitos quando domarmos o leão negro e nos deixarmos guiar pelo leão branco.Poderá demorar uma,duas,três vidas,não importa...renasceremos quantas vezes forem necessárias,até que tudo se resolva.- aborrecido,enterrou a cabeça nas mãos e completou: - Tomara que pelo menos a Agnes tenha mesmo conseguido escapar...

A Donzela levantou e, com um sorriso nos lábios, largou:

- Melhor do que sobreviver ela conseguiu. - e estendeu a mão pro guri. - Vem comigo.

Intrigado, o rapaz pegou na mão dela e deixou-se levar. Logo a noite caiu. Entre as estrelas, clareando um pouco os escuros planaltos, encontrava-se uma espécie de véu de luz ondulante, cortando o céu. Ao contornarem um monte,chegaram a beira de um lago.Das águas tranquilas e límpidas,irradiava um cálido brilho azul.Pararam com a água pelos joelhos.

"Que água quentinha", alegrou-se Arthur, desfrutando da sensação.

Sem soltar a mão dele, a menina curvou-se sobre a água e afundou os dedos da outra mão no lago. Começou a rodá-los numa espiral decrescente. Terminado, endireitou as costas, e apontou para a água.

- Veja...

Com incrível nitidez, Arthur viu Agnes correr em direção dos pais e abraçá-los emocionada.A volta deles viaturas policiais passavam velozmente.Ainda chovia,mas de leve.

Após a imagem fechar nos rostos chorosos, porém alegres , de Roberto, Rúbia e Agnes. a deusa comentou:

- Depois daquilo, os laços entre eles foram restaurados. Os pais deixaram de ser tão distantes e egoístas, enquanto a filha de ser impulsiva e teimosa. Tiveram quase que perder tudo para darem valor ao que tinham. Para começarem a entender um ao outro.

As águas borbulharam, e a visão mudou. Agora mostrava dona Eda acompanhada dos amigos de Arthur, ante o velho galpão. Este,destruído, como se uma bomba tivesse explodido ali. Angustiada,a mão do garoto conversava com um policial quando outro guarda aproximou-se,oriundo dos restos do galpão.O homem falou direto com ela.Mal ele terminara,a mulher contorceu-se em desespero e dor.Diana e Lídia,em lágrimas,abraçavam-na,tentando acalmá-la.Dionathan e Gabriel olhavam por cima do ombro arrasados.

- Ah, pessoal... Mãe... - condoeu-se o rapaz, com um aperto no peito.

Novamente a jovem pôs-se a falar:

- É destino de tudo aquilo que vive morrer. Tudo passa, tudo se esvai de acordo com seu próprio tempo. Seja ele natural ou autoimposto...Eu trago conforto e consolo para aqueles que cruzam os portões da morte,para que possam rejuvenescer,pois a morte não é eterna.Sendo a vida uma viagem para a morte,a morte é uma passagem para a vida.Assim o círculo gira...

Ao contemplar as estrelas, conformada, prosseguiu:

- Mas mesmo que todos soubessem como a vida funciona, por mais cientes que estivessem que não é o fim, o choque e a dor se farão sempre presentes. E com elas a revolta de não conseguir entender o porquê das coisas serem assim...Não os culpo...Ser humano é ser imperfeito.E imperfeição é aprendizagem.

Como antes, as águas se agitaram e a cena modificou-se. Desta vez voltou a mostrar Agnes. Sentada sobre a cama, de pernas cruzadas, ela estudava um livro grosso intitulado "A Dança Cósmica das Feiticeiras",de autoria de Starhawk.

Retomou a Donzela, olhando com atenção pra guria:

- Os trágicos acontecimentos mexeram com ela, a ponto de duvidar de suas próprias convicções e começar a ver o mundo através de outra perspectiva...

Viram Agnes interromper a leitura e fitar o quadro que se achava pendurado próximo da janela. Nele, ela leu:

"Somos bruxas, livres, amadas, honradas, amadas, filhas, mães, esposas, somos a Deusa e o Deus, somos aquilo que existe e que há de existir, nós somos e sempre seremos!"

Então, inspirada, retornou ao estudo do livro.

A Deusa continuou:

- Antes de conhecer você, ela estava adormecida nas trevas, agora ela despertou para a luz. Ainda há muito que aprender, de fato, mas a Agnes será uma grande mensageira. Por amor a mim, perderá com o tempo muitos amigos, no entanto, conhecerá vários outros. Ainda mais sinceros e leais.Com exceção dos pais,será repudiada pela família...Todavia, terá outra ainda maior e mais calorosa.No visível e invisível...Preconceito,desrespeito,calúnia e difamação a Arte continuará a sofrer por mais um tempo.O tempo da ignorância ainda impera...Contudo, meus filhos não desistirão de fazer o bem,de irradiar a paz e ao fornecer energias benéficas àqueles que tem ainda pela frente um longo caminho até acordarem.Tudo isso com muito amor nos corações.

A Deusa apertou forte a mão de Arthur. Subitamente, o mundo a sua volta desintegrou-se que nem areia ao vento, transformando-se num tornado de pó prateado. Quando, espantado,tencionou perguntar algo a menina,conteve-se:no instante seguinte tudo se reconstruiu,só que diferente do que era...

O rapaz viu-se no meio dum Ritual de Iniciação. O que na Arte, significa a aceitação de um grupo Wicca pela pessoa e a lealdade incondicional dela aos Deuses.Dezenas de pessoas reunidas de mãos dadas formavam um círculo perfeito.Dentro Dele,ao oeste,achava-se a escultura de três mulheres:uma era jovem,formosa e alegre;outra,madura,amável e gestante;a última,anciã,sábia e misteriosa.E também havia outra representação,esta,a leste,de três homens:um era adolescente,belo e apaixonado;outro,adulto,robusto e galhudo;o último,velho,sombrio e ardiloso.

Entre as estátuas tinha um bloco de pedra,esculpido na forma dum pentagrama. E no seu centro repousava um punhal de bronze, cunhado de vários símbolos mágicos e astrológicos.

Era noite e estava frio. No céu a lua resplandecia majestosa.

Sorrindo, a Donzela afirmou:

- Para cada cego, há um que pode ver...

Ao prestar a atenção para onde a outra olhava, o garoto se surpreendeu: por que viu Agnes, seminua e de olhos vendados, sendo conduzida por dona Eda ao pentagrama de esmeralda. Os espectadores se mantinham e completo silêncio e muito atentos a movimentação delas.

- Sem dúvida este é um Ritual de Iniciação. Bem, pelo menos o final dele... Nossa, a Agnes sendo feita sacerdotisa e bruxa tão jovem...Quem imaginaria...Parabéns pra ela.

Alcançando a mesa, Eda soltou a mão da outra e apanhou o punhal. Encarou a garota e falou:

- Você está disposta a prestar o juramento? Se quiser desistir, este é o momento. Ninguém deve servir aos Deuses se não for por livre e espontânea vontade.Amor sincero é o que o Casal Divino deseja de seus filhos,qualquer coisa fora disso não lhes agrada.

- Sigo em frente em perfeito amor e confiança. - respondeu a outra, convicta.

- Estenda a mão! - ordenou a mulher, agressiva.

Ao fazê-lo, Eda desferiu um corte na palma da mão de Agnes. Doeu, mas a menina manteve-se firme.

- Deixe o sangue escorrer no espaço sagrado. Três gotas bastam.

Agnes descansou o braço. Depois que as gotas caíram, ela fechou a mão ensanguentada, contendo os demais pingos.

- Repita depois de mim: Eu, espontânea e solenemente, juro proteger, ajudar e defender minhas irmãs e irmãos da Arte. Sempre manterei em segredo tudo o que não deve ser revelado. Juro pelo ventre de minha mãe e pelas minhas esperanças de vidas futuras, ciente que tenho por testemunha os Grandes Deuses.

Repetido o juramento, Eda solicitou:

- Ajoelhe-se e coloque a mão sobre a cabeça e a outra sobre o calcanhar e reafirme a aliança.

Obedecido às instruções, Agnes asseverou:

- Tudo que está entre as minhas duas mãos pertence à Deusa!

Os presentes ao redor, constituintes do círculo, gritaram:

- Que assim seja! - e aplaudiram entusiasmados, enquanto a mãe de Arthur, emocionada, retirava a venda de Agnes e lhe dava um abraço apertado.

Bateu uma brisa, e, por um momento, o luar pareceu brilhar mais forte.

- Lindo... - murmurou a deusa, não menos comovida. Outra vez ela apertou a mão de Arthur e o mundo ao redor desfez-se e reconstruiu num piscar de olhos. Voltaram ao lago azul,mas agora com a água pela cintura.Então um nevoeiro cercou o lago,e da escuridão profunda que escondia a outra margem do lago,avançaram névoas espessas.

- Ele chegou. - informou a menina,sorrindo,vendo a onda nevoenta deter-se pouco depois da metade do lago.

Eis que lentamente e sem o mínimo ruído, emergiu da neblina uma gôndola de ouro. Guiando a embarcação, havia um velho barbudo, de longas e elegantes vestes negras,cujo único detalhe do rosto que o capuz não encobria,era mesmo a sua barba. Ela era comprida e prateada.Alcançava os joelhos.

Ele parou de remar, prestou uma reverência a Donzela e, com sua voz arrastada, avisou:

- Tudo preparado para a travessia. Quando quiser, my lady.

A garota deu um abraço apertado em Arthur e, amável, ao pé do ouvido dele, sussurrou:

- Hora de você ir.

- Compreendo... - devolveu o outro, acolhido pelo calor materno que dela emanava, junto de uma paz profunda. - Espero viver pra contar uma história diferente e mais feliz dessa que vivi.

Soltou-se da Deusa, atirou-se na água e nadou em direção do barco dourado e ao seu sinistro condutor. Ao subir na gôndola, viu Cristhian adormecido no fundo dela. Ele vestia roupas pretas, maltrapilhas,que estavam tão encharcadas quanto as de Arthur.

"Voltaremos juntos... Claro, não podia ser diferente...", pensou o garoto, conformado, antes de se deitar do lado de Cristhian.

Deu-lhe às costas e caiu no sono instantaneamente. Com uma reverência o barqueiro despediu-se da jovem e deslizou para o lado oposto da embarcação.

Começou a remar... Devagar e silenciosamente rumaram ao nevoeiro. Sem tirar os olhos deles, a Donzela sussurrou:

- O fim de uma jornada, e o começo de outra. Assim A Roda gira... Vá meu filho,vá...Eu estarei lá tentando te guiar.Quantas vezes forem necessárias...

Logo a gôndola desapareceu nas brumas, e a Deusa também sumiu. Lá no alto surgiu um fino crescente prateado, em meio às constelações.

O ciclo da vida recomeçara.

Gian Felipe Author e A.Henrique
Enviado por Gian Felipe Author em 13/03/2016
Código do texto: T5572074
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