Sob Olhar das Erínias — Parte XII
A chuva caia forte, acompanhada de trovoadas e ventos furiosos. Sob um grande guarda chuva, difícil de segurar devido ao vento, Agnes e Arthur seguiam depressa pelas ruas detrás da sua, rumo ao final da vila, onde começava um vasto campo sombrio.
Ressentida, Agnes desabafou:
- A culpa é minha! Terminei com ele hoje, de um jeito totalmente estúpido. Falei como se o ano que passamos juntos não tivesse significado nada. Claro que ele não receberia muito bem...
- Nada bem você quer dizer. - falou Arthur, ríspido.
- É, nada bem... Ele não aceita que eu quero ficar contigo agora. - ao escutar isso, Arthur sentiu seu coração pesar. - Quer dizer... Eu sabia que ele não ia entender, mas nunca imaginei que ele faria uma coisa dessas.
- Rá! Um namorado ciumento inconformado com o término da relação... Nada mais ridículo e comum... - disse o garoto,consigo, tentando acobertar a culpa de si mesmo.
- O que disse?
- Nada, nada. Só pensei alto... - e logo que, ao longe, avistou a silhueta capenga do galpão, coroando o alto dum morro, ele exclamou: - Olha lá! Dá pra ver que a luz está acessa!
Um rio traiçoeiro separava-os do objetivo, e para atravessá-lo havia uma ponte precária de madeira e cordas, que balançava ao vento. Estando Arthur à frente, cuidadosamente iniciaram o percurso por ela: qualquer passo em falso os lançaria direto na correnteza feroz do rio...
Quando já tinham passado da metade da ponte, a ventania tornou-se mais violenta. Intensificara-se tanto, que arrebatou de uma vez o guarda chuva de Arthur, e quase fez a ponte girar 90° graus no ar, obrigando-os a se agarrarem com todas as suas forças nas cordas para não despencarem rio abaixo. Enquanto a ponte ia de um lado a outro, como um barco viking fora de controle, Agnes gritava apavorada. E Arthur murmurava uma prece aos deuses, pedindo proteção.
O vento acalmou-se, e logo a ponte começou a diminuir o embalo. Apenas quando ela estabilizasse por completo, é que seguiriam adiante. Mas não tiveram tempo, o lado do qual vieram desabou. O abalo quase derrubou Arthur, e lançou Agnes num ponto frágil da ponte, onde ao pisar para tentar reequilibrar-se,arrebentou, deixando uma de suas pernas penduradas.
Nos moldes tradicionais de pontes,quando um dos lados desabara,já era para Arthur e Agnes terem caído com ponte e tudo no rio, mas a que se encontravam possuía uma armação superior de madeira e cordas que, mesmo em estado precário, suportou o abalo provocado pelo vento, salvando-lhes a vida.
"Não vai aguentar muito...", pensou Arthur, preocupado, observado o estado da armação, enquanto Agnes implorava socorro.
- Aguenta Agnes! - berrou ele, pondo-se em pé com cuidado. - Já chego aí!
Guiando-se pelos pontos que julgava mais seguro, alcançou a menina e, apoiando-a em si, ajudou ela a levantar e a sair da ponte. Tudo com muita cautela. Mal deixaram a ponte, a armação que a sustentava ruiu e ela veio abaixo, sendo devorada pela correnteza do rio.
Delicadamente, o jovem deitou Agnes na grama encharcada, sob a forte chuva, e perguntou:
- Tudo bem contigo?
- Sim... Só a minha perna... Tá doendo...
Ao mirar a perna dela, viu-a esfolada, toda ensanguentada, em meio ao jeans retalhado. Vendo acara de espanto do outro, a guria largou aflita:
- Tá feio, né? Deixa ver como tá...
Mas o rapaz não permitiu:
- Fique deitada. E quieta. Sei quem pode nos ajudar...
E afastou-se depressa. Um pouco distante da guria parou, daí voltou-se ao leste e uniu as mãos, como se fosse fazer uma oração.
Levantou a cabeça e declamou:
"A ti, Asclépio, clamo,
Filho de Apolo, o Radiante, que divina Koronis gerou nas planícies de Dótia.
Grande alegria és para os homens, cujos males dolentes apaziguas.
Glórias por todas as Eras a Tu, que não escondes o rosto ante o sofrimento mortal.
A vós suplico a manifesta presença, oh médicos dos médicos!"
No segundo seguinte, um raio caiu em uma árvore próxima, incendiando-a.
"Ele fez isso?! Nossa...", pensou Agnes, boquiaberta. "Mas o que ele pretende...?"
- Agora é só esperar. - falou o garoto, sentando-se ao lado dela. Agnes tentou fazer uma pergunta, mas Arthur calou-a dizendo que o silêncio era importante. Ele poderia chegar a qualquer momento. Mas se começassem a papear Ele não viria. Além de ser uma total falta de respeito.
"Ele quem, meu Deus?! Do que ele tá falando? Será que ficou maluco?" ,indagou-se a adolescente, angustiada. Mas não era por menos: ela ali no chão, ferida, Cristhian fora de si lá no galpão e o outro ali falando besteira. "É, acho que ficou biruta. Vou ter que ir me arrastando mesmo...
Quando fez menção de mexer, o rosto de Arthur iluminou-se, antes dele sair em disparada. A jovem levou um susto ao ver pra onde ele dirigia-se com tanta pressa. Perto da árvore que ardia em chamas, havia uma serpente gigante de luz. Imponente, observava o adolescente com atenção. Aos silvos,ela batia com a calda no chão.
Arthur parou ante a criatura e prestou-lhe uma profunda reverência. Então, de dentro da víbora, emergiu um homem a passos lentos. Ele era alto, robusto,de face serena,e já de meia-idade.Possuía compridos,e ondulantes, cabelos e barbas grisalhos.Usava um longo manto branco,pesado,que deixava descoberto o ombro direito e o peito.Em uma das mãos trazia um bastão de prata.Este,incrustado de rubis e repleto de entalhes misteriosos.
Parou próximo a Arthur, e fitou-o com seus intensos olhos azuis. Tal olhar deixou-o um tanto desconcertado, já que o homem parecia ver os seus defeitos mais escondidos. Entretanto, o deus abriu um sorriso e, numa voz grave e mansa, cheia de ternura, pediu:
- Por favor, segure para mim. - e passou-lhe o bastão.
Então encaminhou até Agnes, que não acreditava no que estava vendo. Quem era aquele homem vestido de uma maneira tão estranha? De onde ele veio? E aquela cobra de luz gigante? Será que no final eles não tinham despencado junto com a ponte e na queda ela não bateu com a cabeça, e agora estaria sonhando?
Não...a chuva que desabava, as trovoadas que explodiam no céu, e a dor em sua perna, eram bastante reais...
"Será o Deus?!", indagou-se a menina, estupefata."Então Eles são mesmo de verdade...?"
Asclépio agachou-se rente ao seu ferimento, e apenas neste gesto ela já pôde sentir um certo alívio.
Quando intencionou perguntar algo, o deus mirou-a e, amável, recomendou:
- Não fale, querida. Fique em silêncio até eu terminar. - e voltou a atenção à perna dela.
"Ora, querem que eu fique muda!", reclamou a menina consigo, cansada de mandarem-na calar a boca.
Outra vez o deus voltou-lhe o rosto e, no mesmo bom humor, respondeu:
- De maneira alguma, Agnes. O caso é que este plano mais denso do qual opero habitualmente. Sendo assim, preciso de maior concentração para utilizar meus poderes de maneira eficaz. - e voltou a estudar a perna dela.
"Ele... Ele leu minha mente!", admirou-se a adolescente.
Asclépio pôs uma das mãos sobre o ferimento e fechou o cenho, concentrado. Então, dela começou a irradiar uma luz vívida, muito quente, que em instantes sarou a lesão e sumiu com o sangue, deixando como se nunca antes tivesse havido nada ali.
O deus ergueu-se, deu meia-volta e se afastou devagar, nos mesmos passos tranquilos em que se aproximara. A chuva caia pesadamente agora, e relâmpagos riscavam os céus, um atrás do outro. Contudo, mesmo debaixo daquela chuvarada, Asclépio não se molhava.A chuva simplesmente desviava dele.
Agnes sentou-se depressa e começou a analisar sua perna, a qual ainda conservava no local curado, o calor da luz de Asclépio. Vendo-a nova em folha, sorriu, e, após fitar o deus, murmurou emocionada:
- Obrigada...
Asclépio parou, virou-se a garota e, satisfeito, acenou com a cabeça. Daí retomou o caminho em direção de Arthur.
"Apesar de estudá-los há tempos, de interagir com eles desde pequeno, presenciar uma ação divina tão de perto, é outra coisa...", afirmou-se o rapaz, maravilhado com a grandeza de Asclépio. E de todos os deuses em geral.
Ao pegar de volta seu bastão, o deus gentilmente agradeceu:
- Obrigado, filho. - e rumou a serpente cintilante.
Arthur, alegre, largou:
- Sou muito, muito grato nobre Asclépio. Sei que não sou digno de tê-lo em minha presença. Aliás, no momento, de deidade alguma... - acrescentou,com o coração tomado de remorso.
Uma vez mais Asclépio deteve-se e, por cima do ombro, na mesma simpatia, disse:
- Ora, ninguém deve pagar pelos erros alheios. Cada um é responsável de si.
Então adentrou na cobra. Esta, num impulso violento, saltou pros ares e deu um mergulho rasante, desaparecendo logo em seguida junto de um silvar retumbante.
Agnes ficou ombro a ombro com Arthur e, fixa no ponto onde a serpente sumira,indagou deslumbrada:
- Era ele...?
- Sim... Na forma de um dos deuses gregos mais famosos: Asclépio, deus da Medicina. - respondeu o outro, cheio de respeito, também sem tirar os olhos donde a cobra desaparecera. - Aquele que cura os males e diminui os sofrimentos.
- Puxa...
- Vamos, Agnes. Cristhian nos espera. - lembrou o garoto, circunspecto, saindo andando.
- Ah, é... - concordou a guria, com certa amargura na voz - Ainda tem mais essa...
E seguiu adiante logo atrás de Arthur.