UMA NOVA ORDEM MUNDIAL
A data eu não tenho como precisar, sei apenas por ouvir dizer que o que passo a relatar, pode ser considerado a primeira tentativa de ruptura social na terra.
Segundo me foi dito, não se sabia como, nem de onde vinham tantos boatos. Sabia-se apenas que o cenário mundial não era mais o mesmo. Nos quatro cantos do mundo corria a notícia sobre um suicídio coletivo de milhões de espécies animais. Logo aqueles que serviam, pela força ou pela astúcia do oponente, de alimento fácil. Eram presas indefesas para os que lhes oprimiam da maneira que bem entendiam. Aborrecidas, já não suportavam mais tanta tirania, tadinhos! Iriam pôr um fim nisso tudo, eis o plano.
Não vou dizer que se tratava de um acontecimento apocalíptico porque neste momento da história sequer Deus havia dito: "façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra, etc etc". Não, não havia chegado ainda a nossa vez de dominarmos o planeta. Nessa quadra, eram os animais, somente eles, uns poucos é verdade, que reinavam soberanos na terra. E por causa daquele plano diabólico (força de expressão apenas, por favor), as feras, verdadeiros demônios, começaram a se preocupar e levar a sério a referida notícia.
Perceberam que a situação estava ficando fora de controle. Sem as espécies da base da cadeia alimentar, diziam, em pouco tempo não haverá mais vida animal no nosso planeta. Nós mesmos iremos nos matar uns aos outros e também iremos entrar em processo de extinção. É nossa a responsabilidade pela condução e solução do problema. Temos interesse capital nesta história. "A quem muito é dado, muito é cobrado", diziam profeticamente.
Precisamos fazer alguma coisa, disse o Rei Leão. Precisamos encontrar uma maneira de continuar do jeito que está e arredar esta idéia louca, insensata que toma conta das nossas vítimas, disse a águia. Preocupação compartilhada por cães selvagens, pelas demais aves de rapina, onças e pelas feras marítimas, enfim, passou a constar como de primeira ordem o assunto para todos aqueles que subjugavam as demais espécies.
Por causa desse aperreio, numa reunião secreta, ficou decidido um novo modelo de convivência que propiciasse paz aos demais bichos. (Mesmo que fosse uma paz aparente aos olhos dos incautos). E assim, a comissão provisória, eleita naquela oportunidade, despachou correspondência para cada lugar habitável na terra (eis donde surgiu a habilidade dos pombos-correios) pedindo o comparecimento de um representante de cada espécie para participarem de uma assembleia "constituinte" a fim de estabelecer uma NOVA ORDEM MUNDIAL, o que faria dissipar de uma vez para sempre aquela ideia aterradora que ameaçava a vida em nosso planeta.
Atendendo ao chamado, todos os seres se fizeram presentes, alguns com desconfiança, o que era natural. Não compreendendo o motivo daquela reunião, outros se perguntavam o que estavam tramando e o que queriam aqueles tirânicos. Nesta hora, o falcão, secretamente, tomou nota dos descontentes para providências posteriores.
Foi um sucesso sem precedentes aquela ideia, pois as aves, os mamíferos, os répteis, os insetos, sim, eles também, toda a fauna terrestre reunida, logicamente cada espécie se fazendo representar por um indivíduo, conforme fora estabelecido pela comissão provisória constituinte. (ideia que fora aprimorada depois por Noé noutro evento a ser contado no futuro)
Pedindo silêncio, o Rei da selva, que até aquela data desrespeitava e convivia em guerra com todos, disse que iria presidir a reunião em razão do posto que anteriormente ocupava no reino animal, e que por uma questão de ordem dos trabalhos, informava que havia se reunido com as aves de rapina e com o governante dos mares, o tubarão, (que sinalizou afirmativamente para os presentes lá de longe, dando um salto acrobático no mar) e que juntos resolveram estabelecer regras para a boa convivência de todos. E que aproveitava a oportunidade para pedir desculpa, na qualidade de presidente, em nome das demais feras, pelo terror, pela tirania, pelas vidas que foram ceifadas num passado remoto ou próximo, a depender da habilidade de cada um dos presentes em lembrar os fatos aterradores. (A emoção tomou conta de muitos naquele momento). Pediu ainda que todos fizessem um esforço para conceder o devido perdão, o que, aliás, estava previsto no documento a ser aprovado, num capítulo denominado "Ato das Disposições Constitucionais Transitórias" que trazia regras sujeitas a morte, provisórias é claro. Ao ouvir isso, houve um início de tumulto, dissipado com as devidas explicações do sentido dado a morte naquele momento. O que não evitou, considerando a insistência reclamatória, o desaparecimento de alguns insufladores.
Além do mais, nesse capítulo, disse o presidente da sessão, haveria um salvo-conduto para os que aprovassem a referida ordem mundial, informação que fora recebida com aplausos e que em muito facilitou o andamento dos trabalhos. Finalmente o silêncio se deu.
Depois de explicado o fundamental e aprovado, com algumas ressalvas que serão explicadas noutra oportunidade, a nova ordem mundial fora estabelecida entre vítmas e algozes de tal maneira que todos teriam direitos e obrigações e que imperaria o PRINCÍPIO DE IGUALDADE, uma demonstração de humildade por parte dos que se despiam do poder até então possuído, sendo que "a regra da igualdade principiológica não consistia senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam." Como quem não entendesse nada, o asno pediu para que se lhe explicasse de outra maneira, para ver se ele assim compreenderia o sentido da pedra angular deste novo sistma. Nesta hora, não suportando tanto lero lero, o representante das preguiças já estava dormindo, conforme observou a coruja. O relator, um urso branco, já meio abusado com aquele questionamento, hábito antigo que deveria ser controlado, disse que "nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. Ou seja, tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real." Foi quando, morto de vergonha, o jerico murchou as orelhas, balançou o rabo e calou.
Ninguém entendeu porra nenhuma, mas aprovaram assim mesmo, tendo em vista a garantia de vida dada no Ato das Disposições Transitórias e mais uma vez a nova ordem se revelou como sendo a velha apenas com uma nova roupagem.