Capítulo 14 – Pai - Parte 2


Michel entrelaçou os nossos dedos e procurou meu pai com os olhos. Eu seguia seu olhar,e me sentia tão nervosa que meu estomago girava incansavelmente. Ele me olhou, colocou a mão no meu queixo e sorriu.

- Você já o achou? – Perguntei, tensa demais para corresponder ao sorriso dele. Michel respondeu, balançando a cabeça em um sim.

- Ele está na mesa próximo ao banheiro masculino. – Apontou com o dedo para o banheiro, eu localizei o lugar e respirei fundo. – Ei.

- Estou me tremendo inteira.

- Eu sei. – Então ele segurou o meu rosto, deu um sorriso que me fez sorrir também. Por alguns minutos vivenciei uma segurança que há anos eu não sentia. Selei nossos lábios, carinhosamente. – Vai lá.

- Obrigada... – Sussurrei, entre seus lábios. – Por tudo.

Michel beijou minha testa e se afastou, indo para uma mesa próximo a porta de entrada. Tomei o caminho do banheiro masculino e não precisei procurar muito. Só havia um homem sentado à mesa, de costas para mim. Seus cabelos eram grisalhos, a estatura encovada e tinha uma muleta pendurada na cadeira. Fiquei de frente para ele, mas olhando para o chão, quando ergui os olhos era o mesmo que olhar para os meus olhos, só que mais cansados e amargurados. Fui reconhecendo as semelhanças ditas por Michel e realmente não houve mais dúvidas de que era o meu pai.

Sentei-me a mesa, ainda o olhando. Ele segurou a xícara na mão trêmula. Seu rosto não transparecia qualquer coisa. Parecia um daqueles velhos que moram em casa sombrias e não gostam de crianças.

- Eu bem achei que aquele rapaz faria você vir aqui. – Sua voz era sarcástica. Não consegui responde-lo. – Imagino que tenha muitas perguntas, não?

Tentei imagina-lo mais novo, namorando minha mãe, mas meu cérebro não conseguia criar essa imagem. Balancei a cabeça, assentindo.

- Pergunte então.

A pergunta demorou alguns minutos para sair.

- Você nunca procurou ou manifestou qualquer interesse por mim... Porquê?

O homem sorriu, mas era um sorriso sem vida. Ele me olhou, inexpressivo.

- Como você lembra a sua mãe... De mim, apenas os olhos, o restante te faz uma cópia dela. – Ele soltou o ar que prendia. – É muito simples a resposta, mas não sei se está preparada.

Olhei rapidamente para Michel, que estava algumas mesas de distância da nossa. Voltei a olhar Gregório.

- Eu estou preparada. – Era mentira. Sentia que o peso da conversa me deixaria mal. O jeito que o homem age é quase como se não tivesse humanidade.

- Eu nunca quis ter um filho com a sua mãe. Quando ela engravidou cumpri com o meu papel de homem, te registrei em meu nome e ofereci a pensão. Ana Clara se recusou, disse, aos berros “se você não quer cuidar da nossa filha eu não quero seu dinheiro!”. Não pude fazer nada. Então me despedi dela desejando que tivesse uma vida boa. – Senti que me faltava o ar conforme lembrava das histórias contadas por minha tia. – Eu não posso dizer que sinto muito por ter sido ausente na sua vida, mas você ao menos parece ter vivido muito bem sem mim. E acredite... – Ele tossiu rouco. – Eu não seria um bom pai.

Não soube o que responder. De repente todas as perguntas que tinha para fazer haviam sumido. Gregório me fitou por um longo tempo, aguardando uma reação, mas continuei em estado de choque.

- Olha, garota. Eu não sei o que sua mãe e sua tia te contaram a meu respeito. Pelo o que conheci de ambas, é certeza que Clara disse que eu a abandonei e a Ana Paula te contou a história por cima. Que seria basicamente eu namorando com sua mãe, quando na verdade amava a sua tia. Sempre amei. Ainda a amo, apesar dela estar morta.

- Se você amava a minha tia, porque ficou com a minha mãe? – Demorei algum tempo para formular a pergunta, devido a revelação dele.

- É uma longa história, vou te dar um negócio que sua tia me deu, antes de pedir que a esquecesse e ficasse com sua mãe. Você foi fruto de um relacionamento curto e sem amor. - Não importa a idade que você tenha ou seu nível de maturidade, ouvir aquela frase me machucou de um jeito que eu não saberia lidar nunca. - Leia que entendera tudo.

Gregório abriu sua jaqueta e tirou de dentro um diário de capa vermelha. Ele o colocou na mesa.

- O que é isso? – Perguntei.

- É o diário da sua tia... Ela tinha 21 anos quando começou a escrever. Nele ela conta quando nos conhecemos e tudo o que você precisa saber.

Peguei o diário, olhei para ele por alguns minutos e coloquei em meu colo.

- Aquele rapaz é seu namorado? – Perguntou, referindo-se a Michel.

- Não.

- Ele a ama. É muito notável pelo jeito que se preocupa com você.

- Ele é só um amigo.

- Não é isso que parece. – Gregório deu um quase sorriso. – Bom, Maria Luíza não sei o que pensou quando veio até aqui, mas não posso ser o pai que você espera. Já se passaram muitos anos.

- Entendo. – Não sei como consegui responde-lo. Talvez seja porque ele fala a verdade. E a verdade realmente dói. – Eu só queria conhecer você. Minha mãe me falou muito pouco ao seu respeito.

- Eu não lamento a morte da sua mãe. Infelizmente, tenho minhas mágoas em relação a ela, mas você entenderá no diário.

Gregório se levantou, com dificuldade. Eu olhei para o diário.

- Se cuide, garota. E seja feliz. Seja feliz pela sua tia e por tudo que ela não pôde viver.

Aquelas palavras acabaram tendo um impacto imenso em mim. Tanto, que senti uma vontade gigantesca de chorar lembrando de minha tia e da forma que ela morrera. Gregório foi embora silencioso. Ele era só um estranho que tinha o mesmo sangue que eu. Nada mais do que isso. Alguns minutos depois Michel apareceu do meu lado. Eu me joguei nos braços dele como se fosse a última coisa da minha vida.

- Shh... Calma. – Ele murmurou, bem próximo do meu ouvido. A voz tão segura e acalentadora que me fez chorar na mesma hora. – Malu...

Eu não conseguia falar de tanto que chorava. Era aquele choro guardado há muitos anos. O choro de uma garota que cresceu sem os pais, depois perdeu alguém que considerava uma mãe. O choro de uma garota que tinha problemas amorosos, que tinha um passado a esquecer e um futuro a viver. E o futuro assustava.

Naquela noite dormi na casa de Michel. Bom, na verdade ele dormiu ou tentou. Eu passei a noite lendo o diário de minha tia. E graças a mim, Michel acordou pelo menos umas duas vezes com meus soluços de tanto chorar. Até que teve uma hora que ele decidiu ficar acordado, me ouvindo ler o diário, o que me fez chorar um pouco menos.

O início do diário de minha tia contava a adolescência dela vivendo no interior de São Paulo. Umas 20 páginas depois ela relata sua vida de universitária. E como dito por Gregório, ela conta como o conheceu. Ele era aluno de Biologia, e ela de Letras. Foi paixão à primeira vista, mas interrompida de forma brusca por minha mãe, que usando toda a sua persuasão fez minha tia desistir de Gregório e ainda os ajudou a ficarem junto.

“Gregório é tão bonito que diariamente me pergunto o que ele vê em mim. Ele tem olhos azuis sensuais, cabelos escuros, um jeito tão confiante, seguro. Combina tanto com a Clara. Ela tem a mesma confiança dele. Quando contei para minha irmã sobre Greg ela riu, disse que às vezes o amor é cego mesmo.”

O restante da folha era minha tia contando sobre os encontros dela com meu pai, e de como ela se sentia feliz ao lado dele. Parecia uma história bonita, até o dia que minha mãe o conheceu.

“Ana Clara passou o dia me perguntando sobre Greg. Eu não consegui sentir ciúme porque algo na troca de olhares deles me fez entender o porquê de eu sempre achar que eles combinavam. Ele fica bravo quando falo isso, mas é verdade. Eu teria coragem de desistir dele se me irmã pedisse. Clara sofreu tanto com a perda da nossa mãe, não posso contribuir para que ela sofra mais.”

Algumas páginas minha tia conta com mais detalhes de como vive um impasse no triângulo amoroso. Noites chorando por saber que acabaria desistindo do homem que amava. Até que cheguei no dia em que ela pede ao meu pai que a deixe para ficar com minha mãe.

“Greg e eu terminamos. Quer dizer... EU terminei com ele. Foi uma das coisas mais difíceis que já fiz na vida. E p deedi que ficasse com minha irmã. É o certo. Sei o que estou fazendo. Greg disse que não tinha o direito de lhe pedir isso... Mas algo me diz que ele fará o que eu pedi. Eu o amo, mas não sou capaz de dar a felicidade que ele merece. Na verdade não sou capaz de dar felicidade nem a mim mesma...”

A página seguinte, talvez a mais triste de todo o diário, minha tia contava como reagiu ao saber que minha mãe e meu pai tinham enfim, se envolvido.

“A definição mais certa para o que eu sinto é: quebrada. Completamente quebrada. Por mais que eu acredite que Ana Clara e Gregório sejam feitos um para o outro não consigo deixar de me sentir assim. Não chorei ou me lamentei para nenhum deles, mas só Deus sabe como estou por dentro. Eu jamais vou deixar de amá-lo. E sei que essa dor nunca será superada.”

- Malu... – Dei um longo suspiro, sentindo que mais uma crise de choro viria. Michel passou o nariz pela minha orelha e me apertou em seus braços. – Leia mais amanhã. Por favor, olha como você está!

Ele tirou o diário das minhas mãos e o colocou no criado-mudo ao lado de sua cama. Eu o abracei apertado, respirando seu cheiro e pedindo mentalmente para conseguir parar de chorar. Aos poucos Michel se deitou na cama me levando junto.

- Você quer água? – Ele perguntou, a voz tão carregada em preocupação e carinho que  quis não estar numa situação emocional terrível como essa. Ele segurou meu rosto me olhando com firmeza.

- Não... Eu vou ficar bem.

- Eu sei que vai.

Então Michel selou nossos lábios com carinho, depois me segurou pela cintura, me deitando ao seu lado. Sua respiração doce foi se misturando a minha, deixando-me inebriada. Michel tocou meu cabelo, me fazendo ficar sonolenta. Minhas pálpebras pesaram até que fui vencida pelo cansaço emocional resultando num sono intenso.



 

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 13/01/2016
Reeditado em 21/11/2021
Código do texto: T5509279
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