A ORDEM DAS VALQUÍRIAS - EM BUSCA DAS VALQUÍRIAS ( cap 2)

Carne defumada, frutas, pães e um cobertor feito de pele de urso. Estas eram as provisões que estavam no bote que Jaime preparou para a minha viagem.

- Cadê os remos? - perguntei.

- Não vai precisar deles. - respondeu Jaime - Você estará a favor do curso d'água. Somente fique atenta para os pontos de orientação que combinamos.

- Eu sei, eu sei. - já estava sem paciência - No início do segundo dia passarei pela ponte de Fornovo e após o fim do território das dríades terei que alcançar a margem e abandonar o bote.

- Por quê? - ele já sabia a reposta, tivemos aquela conversa inúmeras vezes e mesmo assim ele insistia em certificar se eu havia entendido tudo.

- Porque o rio deságua no mar.

- Preste muita atenção neste detalhe. - mais blá blá blá do Jaime - Quando abandonar o bote será tarde da noite do segundo dia, não esteja dormindo neste momento. Se for para o mar se perderá para sempre.

Pulei no bote antes que ele repetisse outra advertência.

- Adeus Jaime! - falei enquanto ele empurrava a embarcação para longe da margem. - Até daqui a quatro anos.

- Lenna! - esta foi sua última advertência. - Não deixe esta criança que existe em você morrer. - e sorriu.

Eu podia parecer animada naquela manhã mas estava enganando a mim mesma. As memórias do massacre do meu clã me atormentavam e tudo o que eu queria era ficar sozinha. Na verdade eu queria morrer, desejava ter partido com os meus pais naquela balsa funerária. Fiquei observando as águas do Prata e pensei que se me afogasse ali talvez acreditassem que o bote tinha virado e eu pereci numa tragédia heróica. Poderiam até fazer canções sobre o infortúnio do guerreiro da convocação. Já havia feito mais do que era capaz. Iniciei a unificação do meu povo, a partir daquele momento eles poderiam resolver as coisas, eu seria apenas um estorvo.

Meu corpo pesava. Deitei-me no bote e esperei, mas não sabia exatamente o quê. A morte talvez. Não tinha fome e perdi a noção do tempo. Não sabia quando estava dormindo ou acordada. Com sorte estaria em sono profundo ao passar pelo último ponto de orientação e desapareceria no mar.

Acordei com o som dos pássaros e a luz fraca do sol nascente aquecendo minha pele. Ainda estava viva. O bote passava embaixo de uma ponte de pedras em forma de arco. Meu coração queria sair pela minha boca de tão forte que começou a bater.

Ao final da ponte, em um dos lados, estava o deserto e no outro havia uma mata alta onde estava Fornovo, em ruínas mas ainda imponente. A cidade dos meus ancestrais demonstrava sua força mesmo naquele estado, como se as almas dos fornovenses realmente fossem para lá após a morte como nas canções. Talvez seja este o verdadeiro motivo pro império não ocupar nossa cidade, eles não suportam a pressão com que o povo livre, mesmo após a morte, continua a guardar o seu lar.

Eu senti algo que pensara ter perdido, uma imensa vontade de viver. Chorava de emoção e arrependimento por ter agido de forma tão covarde no dia anterior. Cada geração do povo livre esperou pela convocação desejando ser a escolhida e eu, que estava vivendo aquele momento, não tinha o direito de recusar o sonho de uma nação. Foi diante das ruínas de Fornovo que escolhi viver, escolhi lutar pelo meu povo e participar da retomada da nossa terra natal.

Fiquei em pé no bote admirando a cidade até que não fosse mais possível vê-la. Só então me dei conta do quanto estava faminta pois não havia consumido coisa alguma desde a minha partida. Comi um punhado de carne defumada com pães, Jaime não pusera água nas provisões porque podia consumir do rio.

O Rio Prata nasce nas Montanhas de Prata, no oeste do continente. Uma região rica em um metal utilizado pelos ferreiros na confecção de armas e armaduras caríssimas, ou por ourives na fundição de souvenirs. Baldur detém as montanhas sob seu domínio. Tem o título de cidade mais bela do continente. Seu brilho refletindo o luar a faz parecer uma estrela na terra. Eu mesma passara horas admirando a luz de Baldur nas noites de lua cheia.

Sedimentos das montanhas vinham com as águas e, assim como Baldur, o rio refletia o brilho lunar fazendo-o parecer um lindo tapete prateado. Infelizmente era época de lua minguante na minha viagem à terra das valquírias.

Mordiscava uma banana ao pôr do sol quando avistei o território das dríades, Floraterra. Não podia cair no sono pois aquele era o ponto mais importante da minha jornada.

A noite caiu sobre mim e tive a sensação de estar sendo observada. Ouvi dizer que as dríades eram espíritos da natureza que tinham uma ligação com as árvores. Eu tinha certeza que estavam me observando. Me arrependi por não ter trazido uma lança. Ao menos teria uma arma.

Muito tempo passou e a floresta parecia não ter fim. Quando pensei que nada podia ser pior do que estar sozinha e desarmada em um frágil bote sem remos, à noite, sendo observada por seres misteriosos, veio uma tempestade que fez a embarcação perder a estabilidade. Eu era jogada de um lado para outro por causa dos movimentos bruscos do bote que já começava a encher de água. A correnteza, antes serena, estava muito violenta. Eu sabia nadar mas tive muita dificuldade pra alcançar a margem. Agarrei-me numa grossa raiz e escalei para escapar das águas turbulentas.

"Saiu da panela pra cair no fogo." É o que diria minha mãe sobre esta ocasião. Eu tinha uma habilidade incrível para me meter em encrencas. Primeiro me transformei no lendário guerreiro da convocação e depois quebrei o Tratado da Fênix.

Estava ensopada e descalça, vestia apenas um vestido de pano. Decidi seguir em frente próximo a margem, tendo o Prata sempre a minha direita até a saída da floresta mas após uns cinco passos fiquei desorientada. Olhei para o rio mas não o encontrava. Não compreendia, não caminhara para a esquerda nem para a direita, apenas segui em frente mas não podia enxergar nada naquela escuridão. A sensação era de estar no centro de Floraterra. Senti uma imensa vontade de sair daquele lugar urgentemente, então corri para frente mas não avancei um passo sequer. Algo bloqueou meu caminho, senti galhos e folhas obstruindo minha passagem mas tinha certeza de que não estavam antes ali.

De repente um relâmpago iluminou e por um breve instante pude ver o contorno das árvores, mas não foi apenas isto. Tive a impressão de que tinha alguém na minha frente. Então percebi algo fosco que pareciam duas pedras de âmbar a poucos centímetros do meu rosto. O relâmpago seguinte me revelou que aquelas pedras eram olhos.

Aquela coisa estava imóvel, apenas me observando sem piscar. Fui me acostumando com a claridade intermitente que a tempestade oferecia e pude analisar melhor a floresta. A coisa não tinha corpo, era um rosto que se projetava para fora do tronco de uma árvore. Ela tinha folhas acima da cabeça que me faziam lembrar os cabelos de uma pessoa. A lembrança que tenho daquela época é de que era o rosto de uma menina de madeira com cabelos de folhas e olhos de âmbar.

Fiquei radiante, aquilo devia ser uma dríade. Eu era o primeiro ser humano em muitas gerações que via uma delas.

- Olá! - chamei com a ingenuidade de toda criança. - Eu sou Lenna, filha de Erik e Emma do clã Carvalho.

A dríade abriu a boca. Imaginei estar olhando para o interior oco de uma árvore, seus galhos e folhas agitaram-se violentamente e um vento forte e constante soprou na minha direção. O som daquele vento era tão alto que eu não ouvia mais os trovões. Havia algo estranho naquele som. Percebi sussurros.

- Você... Não é um... Carvalho. - dizia a voz. - Eu sou... Um carvalho.

A dríade fechou a boca e no mesmo instante a árvore acalmou-se cessando o vento e deixando retornar os sons da tempestade. A árvore tinha mesmo o formato de um carvalho e logo entendi o que ela queria dizer.

- Não sou um carvalho como você. - expliquei. - Carvalho é como minha familia é conhecida no reino dos homens.

O rosto abriu sua boca novamente e o vento trouxe a voz outra vez.

- você é um... Humano... O que faz... Aqui? Não... Devia estar... Você... Estava na água... Por quê veio... Para cá?

Expliquei que estava indo para a terra das valquírias e que fui pega pela tempestade.

- Fez certo... - ela disse - Salvou... Sua vida... Humanos vivem... Pouco.

- Me ajuda por favor! - supliquei - Preciso encontrar as valquírias.

- Sim. - ela respondeu. - Eu sou... Carvalho... Você... É carvalho... Somos... Família.

Assim como eu me encontrei no centro da floresta, de repente estava fora dela e uma planície de grama baixa se estendia na minha frente. A chuva tinha cessado, o que me deu calafrios porque perdi completamente a noção de tempo e espaço dentro de Floraterra.

Após caminhar bastante eu senti todo o cansaço me afligir. Pensei em procurar um local para dormir e continuar pela manhã mas logo mudei de idéia pois estava sem comida e o rio já estava longe demais para obter água.

Continuei caminhando naquela paisagem monótona que apresentava algumas ondulações. Quando cheguei no topo de uma destas ondulações eu olhei para trás e pensei ter visto algumas silhuetas por um breve instante. Andei um pouco mais e na próxima elevação tornei a olhar para trás. Novamente as silhuetas estavam atrás de mim mas desapareceram no segundo seguinte. Primeiro pensei que fossem feras do campo mas elas não se escondem quando caçam, apenas se aproximam lentamente fazendo o menor ruído até estarem numa distância em que possam dar o bote. Depois pensei que poderiam ser as valquírias mas elas usam cavalos, a não ser que eles sejam treinados para não fazer barulho, podemos ouvir o som destes animais a uma enorme distância. Eu acompanhei meu pai e meu irmão em muitas caçadas e a tática era sempre a mesma, eles seguiam a presa até ela encontrar um local para se refrescar e descansar, ficando com a guarda baixa, aí atacavam.

Passei a correr, quando estava perto do cume de uma elevação eu rastejava e quando o transpunha corria novamente. Estava fora de questão me entregar ao cansaço. Estava sendo caçada.

- Este é o fim da tua jornada!

Um homem gritou estas palavras no momento em que senti uma picada nas costas que me fez cair com a face na grama.

- Ei chefe! - disse um deles - É uma dos selvagens.

- Vai valer um bom dinheiro. - disse outro.

Deixe-me ver! Eu também nunca vi um selvagem. Estamos ricos! - Eram algumas das frases que eles diziam enquanto se aproximavam apressadamente de mim.

Um homem retirava a adaga que usaram para me atingir quando um gordo que parecia ser o líder deles se aproximou dando ordens.

- Thomas faça um curativo nela!- ele apontou para um homem que tirava uma garrafa de uma bolsa.- ela é muito valiosa, não podemos arriscar.

Eles comemoravam, rindo e falando alto até que uma grande seta surgiu com forte zunido e atingiu Thomas, que caiu sem vida. Um segundo depois outra grande seta atingiu mais um deles. Todos tinham olhares aterrorizados enquanto ouviam galopes de cavalos. Um cavalo saltou por cima de mim e derrubou o homem que removeu a adaga das minhas costas, a amazona que o montava fez um movimento em arco com o braço no ar que tudo que eu percebi foi uma luz como um raio passando pelo pescoço do líder, fazendo-a voar pelos ares. Seu cavalo se apoiou somente nas patas traseiras relinchando enquanto ela brandia sua espada fazendo os outros fugirem. Quando o cavalo desceu as patas dianteiras, esmagou o crânio do homem que havia derrubado ao saltar sobre mim.

- Eles estão fugindo! - disse a mulher.

- Não por muito tempo. - falou outra que só naquele momento pude ver. - Cuide dela que eu cuido deles.

Esta outra mulher bateu com os calcanhares nas laterais do seu animal impelindo-o atrás dos fugitivos. Ela não segurava as rédeas pois com a mão esquerda segurava um arco longo e com a outra ajeitava uma flecha no cordame. Foi um cerco mortal. Pela distância só ouvi os gritos desesperados dos homens enquanto a mulher e seu corcel davam voltas em torno das vulneráveis presas que tombavam uma após a outra.

- Está ferida?

Fiquei tão distraída com a matança que acontecia adiante que tinha esquecido que uma dessas mulheres tinha ficado para me dar assistência.

- Minhas costas.- respondi - Esta queimando.

Ela correu até seu cavalo, havia uma pequena bagagem na parte posterior de seu dorso e ela tirou uma mini bolsa de lá. enquanto ela caminhava observei bem. Ela vestia couro negro. Um colete, calças e botas, tudo de couro negro e bem ajustado em seu corpo. No lado esquerdo, presa ao cinto, estava sua espada embainhada. Seu cabelo era uma enorme trança. Percebi, quando ela se aproximou para cuidar da minha ferida, que em suas costas tinha um escudo redondo de ferro.

Ela limpou o ferimento, mastigou algumas ervas e cuspiu nele. Quando estava enfaixando o curativo a outra mulher retornou. Vestida como a que ficou comigo, o mesmo penteado. A diferença estava nas armas, notei que ela não carregava um escudo nas costas pois ali estava a aljava das flechas que usou, na lateral de seu cavalo tinha uma lança de fácil alcance, diferente das grandes setas que usaram no início do combate.

- Ela está bem? - perguntou a arqueira.

- Sim. - respondeu a outra. - E eles? - ela olhou na direção de onde a amiga veio. - Como estão?

A arqueira sorriu.

- Só posso dizer que estes sequestradores não vão incomodar ninguém mais.

- Hum... - estava com medo de interromper o humor sádico delas. - Vocês são quem eu penso que são?

- Se esta se referindo as valquírias. - ela disse enquanto guardava o seu kit de primeiros socorros na bagagem em seu cavalo. - Então somos quem você pensa que somos.

Um alivio recaiu sobre meu coração. Fiquei muito contente por estar em segurança. A partir daquele momento iniciou minha história como a Valquíria Escarlate e o treinamento em busca da habilidade necessária para retomar Fornovo e vingar o meu clã.

R Martins
Enviado por R Martins em 03/01/2016
Reeditado em 26/03/2016
Código do texto: T5499195
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.