Sob Olhar das Erínias — Parte V
Dentre a penca de estudantes tagarelas que deixavam o colégio, encontra-se Agnes, ladeada pelas amigas.
Logo que o trio convergiu a uma rua vizinha à escola, alguém berrou:
— Agnes!
Ao virarem, avistaram Cristhian.
Ele estava só e fumando.
— Vamo indo. — pronunciou Gabriela. — Tchau Ag.
— Cuide-se. — pediu Rosana.
— Tchau, gurias. — despediu-se Agnes, animada.
Ao alcançar o amado, beijou-o e largou:
— Teus amigos me disseram que tu foi embora mais cedo. Aconteceu alguma coisa?
— Nada de mais. É que eu tinha que pagar a guitarra que comprei do Vitor. E como a aula tava um saco, resolvi pagar o cara hoje mesmo. — prosseguiu, agora num tom mais meloso e com as mãos na cintura da garota: — Mas diz aí, pra qual casa quer que eu te leve? Pra tua ou pra minha...?
Após colocar a mão no queixo e adotar um gracioso ar pensativo, a menina, fazendo-se de boba, respondeu:
— Num sei... Já fui ontem... — em seguida que pôs os braços entorno do pescoço do rapaz e fitou-o com seus claros olhos verdes, junto dum sorriso convidativo, continuou: — Mas e seu eu topar, o que ganho? Hum...?
Cristhian a estreitou junto ao corpo e respondeu:
— Um filme daquele tipo que tu gosta, xis, refri, e, se quiser, minha companhia pelo resto da noite só no amorzinho gostoso...
— Se é assim... — prosseguiu ela, faceira, logo que deu-lhe uma beijoca:
— Vamos nessa!
— Beleza. Mas não vai avisar os teus pais? Se não tiver créditos, pode usar os meus.
— Não precisa,amor. Eu mando no meu próprio nariz. E pra eles tanto faz se tô ou não em casa...
— Tu que sabe.
De mãos dadas, partiram.
Quando Arthur entrou na rua de casa, começou a ouvir uns miados abafados. Algo quase imperceptível que ignoraria, se uma suspeita não tivesse passado por sua mente. Então parou, fechou os olhos e prestou atenção a derredor...
Passado alguns instantes, descobriu donde os fracos miados proviam. Era do cesto de lixo de uma residência, mais especificamente, dum grande saco preto.
Imediatamente Arthur franziu a testa e encaminhou-se a ele.
Tirou o saco da lixeira e levou-o para baixo da luminária do poste mais próximo. Agora podendo enxergar melhor rasgou-o sem piedade. Revirando o lixo, encontrou três mirradinhos filhotes de gato.
— Ô gentinha... — murmura, indignado, o garoto.
Casa de Arthur – Ateliê
— Mãe, vem vê uma coisa! — exclamou o jovem, interrompendo-a em sua costura.
Intrigada, seguiu-o até o quarto dele. Imitando seu filho, parou no limiar da entrada.
— Te apresento nossos novos moradores. — comunicou ele, satisfeito, apontando para o assoalho, onde, esparsos, os gatinhos bisbilhotavam o aposento. — Báh, nem sabe onde...
De repente, o celular de Arthur tocou.
Atendendo-o, interpelou:
— Alô? E aí, Apolo! O que manda? Capaz que não. Tu já da casa! Mas o que houve? Hum... Então tá. Até. – ao mirar sua mãe, avisou: — O Apolo vem aí depois.
— É? O que aconteceu?
— Não deu detalhes. Mas disse que tem a vê com a festa da Thalia. Apareceu um imprevisto.
— Xiii... Tomara que não seja nada grave. Gosto daquela menina. É uma pena pelo que ela e a família dela estão passando.
— É. Maldita crise.
Logo que voltou a atenção aos gatinhos, Arthur continuou:
— Voltando ao que eu tava dizendo... Nem imagina onde eu encontrei eles. Eu tava vindo pra cá, quando...
Casa de Cristhian — Sala
Enquanto Cristhian tomava banho, Agnes, sentada no sofá, lia atentamente a nova edição da Love Rock, uma das revistas adolescentes mais vendidas no mundo.
De repente, uma forte buzinada cortou sua concentração. Na mesma hora pôs-se de pé, jogou a revista no sofá e correu para o banheiro.
Parou a um palmo da porta e berrou:
— O cara dos lanches chegou! Cadê o dinheiro?!
Após desligar o chuveiro, Cristhian perguntou:
— O que foi?!
— Ai,saco, o cara dos lanches tá aí! Cadê o dinheiro?!
— No meu quarto! Tá na ultima gaveta do guarda- roupa! Pega cinquenta! — respondeu o rapaz, aos berros.
— Tá! — disse a menina, encaminhando-se a porta de entrada, no momento em que novamente houve a buzinada.
Ao sair na varanda, ela ao motoqueiro pediu:
— Só um instante!
O homem fez um sinal de positivo e Agnes voltou pra dentro.
Já no quarto, acendeu a luz, ajoelhou-se ante o armário e abriu a gaveta.
Quando procurava entre as diversas roupas amarrotadas, Agnes encontrou algo que fez seus olhos arregalarem-se de espanto e seu coração, por um momento, parar de bater. Encontrara um material odioso: uma pistola rodeada de dezenas de abomináveis pedras de Crack, embaladas em papel de alumínio, e uma dezena de tijolos da mesma droga, enrolados em sacos plásticos transparentes. Rente a um destes tijolos, havia um "bolinho" de dinheiro preso por um elástico.
Perplexa, sentou sobre as pernas e voltou o olhar para o chão.
E num gemido lamentoso, Agnes murmurou:
— Ah, Cristhian...
Agnes nada disse ou fez naquele momento perturbador. Pareceu que o chão havia sumido e o tempo parado. Sentia-se cair no mais profundo abismo e o coração foi tomado pela tristeza.
Quando as primeiras lágrimas começaram a fluir, a menina voltou a si. O roncar alto do motor da motocicleta do entregador a despertara.
Então, preocupada, ela soltou:
— Esqueci o cara lá esperando!
Depressa retirou cinquenta reais do bolinho de dinheiro e com força e desgosto, fechou a gaveta.
Lá fora, o entregador desceu da moto, foi à caixa presa na traseira do veiculo e retirou um refrigerante Pepsi de dois litros e um pacote branco arredondado. Este, possuía bem visível o logotipo do Tradições Lanches no alto, a única lanchonete da Vila Elza que possuía o exótico "xis" de siri, o preferido de Agnes.
Logo que a grota o pagou e ele deu-lhe o troco e as mercadorias, o homem, gentil, disse:
— Tenha uma boa noite!
— Tu também. — devolveu ela, num sorriso entristecido, antes de retornar a casa.
Mal largara as compras e o troco sobre a mesa da sala, Cristhian, trazendo uma caixa grande, desembocou no local.
— Pra ti, amor. — comunicou o garoto, contente, estendendo-a para a guria.
— O que é isso?— questionou a menina, ríspida.
— Heh, abra e vai saber. — respondeu o garoto, não se importando com a repentina mudança de humor dela.
Agnes pegou a caixa, sentou no sofá e abriu-a, descobrindo um gracioso par de botas pretas.
Percebendo o desânimo da garota, Cristhian perguntou:
— O que foi? Não gostou?
— Uhum. — seguiu, logo que deixou as botas de lado e, sem dirigir-lhe o olhar, franziu a testa:— Mas não quero.
— Por quê? — questionou o rapaz, surpreso.
Ainda sem olhar pra ele, Agnes respondeu:
— Por causa do que achei na tua gaveta! Nela encontrei mais do que cinquenta reais. Muito mais!
— Do que está falan...? — parou, arregalou os olhos e, junto a uma cotovelada no ar, bradou: — Puta que pariu! Esqueci de tirar os bagulhos de lá! Tsc! Não acredito!
— É, achei! — asseverou Agnes, agora fitando-o. — Me explica o que está acontecendo. Por que aquelas porcarias estão contigo?!
Ele puxou uma cadeira e sentou. Então, encarando-a, disse:
— Sabe que eu quero ter uma banda. Tenho o pessoal interessado, sei quais marcas de instrumentos que são boas e não muito caras, sei quem são e onde estão as gravadoras que lançam grupos do nosso estilo, conheço os festivais onde bandas como a minha se deram bem... Enfim, sei o bastante pra se tocar uma banda pra frente...
— Tá e o que mais falta? — indaga a garota, preocupada.
Num tom mais elevado e irritado, ele respondeu:
— O dinheiro! Tem que ter dinheiro pra comprar toda a parafernália e alugar os estúdios pros ensaios,gravar demos e outras coisas!
— O Diego e o Fabrício trabalham! Talvez se tu e o Paulo arranjassem um emprego, poderiam juntar o dinhe...
— Não! — vociferou Cristhian, interrompendo-a. — Com a merda de salário que tão pagando, levaríamos séculos pra arrecadar o que precisamos!E mesmo que tentássemos, teríamos de guardar quase todo o salário,o que o Diego e o Fabrício não podem fazer.
Agnes levantou-se de um salto e, reanimada, largou:
— Tá aí! Tentem conseguir o máximo que puderem e, já que teus pais ganham bem, eles cobririam o que faltasse.
Cristhian soltou uma gargalhada amarga, fazendo com que a expressão alegre da menina desaparecesse...
Daí mirou o teto e exclamou:
— Seria mais fácil pedir pro Papai Noel!
Pôs-se de pé, deu às costas a namorada e, por cima do ombro, declarou aborrecido:
— Eles não se importam com o meu sonho! Quando eu falava sobre a banda, parecia que não me ouviam! Só o que diziam era se não tava na hora de eu ir pro colégio, ou senão que tavam ocupados demais pras minhas bobagens, e coisas assim. Eles não acreditam em mim...! Mas eu mostrarei pra eles quem está com a razão! Muito antes do que imaginam!
Ao voltar-se a namorada, enérgico, prosseguiu:
— E o jeito que de eu fazer isso é pelo trafico!Dá dinheiro rápido, fácil, e o melhor... Em grande quantidade! — concluiu, com um sorriso enviesado.
Rapidamente Cristhian atravessou a sala até Agnes, pegou nas mãos dela, e, visando seus claros olhos verdes, murmurou convicto:
— Não vai ser pra sempre, amor... Vô ficar nessa até te o bastante pra tocar a banda pra frente. O que no máximo, seis meses consigo. Só seis meses...
Num brusco movimento ela desprendeu-se e afastou-se.
Nervosa, replicou:
— Acorda Cristhian! Seis meses são mais do que o suficiente para tu acabar morto ou preso! Tu tá pondo a corda no pescoço! Será que não consegue enxergar?
— Acha que sou burro?!— interpelou bravo. — Claro que sei disso! Mas sô esperto! E não tô sozinho na parada...
Após jogar-se no sofá e visar o chão, num tom mais controlado, continuou:
— Não importa o que diga Agnes, já tomei minha decisão.
Tremendo de raiva ante a estupidez de Cristhian, Agnes cerrou as mãos e torceu a cara. Aí lhe deu as costas e, cabisbaixa, começou a chorar...
Fez-se um silencio sepulcral.
Então, a passos pesados, a menina foi ao quarto do garoto e voltou com sua mochila. E sem dizer nada, foi embora.
Irado, o rapaz pegou um almofada e arremessou-a na janela junto a um berro:
— Merda!