ELE ME ODEIA - capítulo IX

Minutos se passaram e Dante e eu já havíamos desistido de tentar abrir a porta do escritório, quer dizer, de minha parte eu nunca quis que a porta se abrisse. Eu já estava sentada na cadeira da escrivaninha e Dante estava sentado no chão e encostado na parede. Ele fogou a gravata e soprou um ar de tédio, no que decidi quebrantar o silêncio e comecei a recitar:

- Estamos em pleno mar... Dois infinitos,

ali se estreitam num abraço insano, azuis, dourados, plácidos,

sublimes... Qual dos dois é o céu? qual o

oceano?...

E, fitando-me com bizarria, Dante perguntou:

- O que você está falando?

- Navio Negreiro... Tive que decorar esse poema na sexta série. Até hoje não esqueci.

- E você acha isso muito? Tive que decorar um discurso de Nelson Mandela de trás para frente! E ainda que passássemos dois dias presos aqui, eu não terminaria o discurso.

Olhei para Dante e meditei, sobre tudo o que eu havia lhe provocado e sobre tudo o que ele me provocou. Fui chegando mais perto dele, até eu já estar bem ao seu lado. Dante revirou os olhos e eu disse:

- Desculpa...

- O quê?

- Eu não quis acabar com a sua felicidade, esta nunca foi minha intenção...

Ele evitava me encarar e olhava para o outro lado. Continuei:

- Sei que gerei um vasto ódio dentro de você por mim, e te dou motivos, pois te afastei de quem você mais queria por perto. E com os meus tropeços acabei também te derrubando, te fazendo pagar pelas minhas falhas...

Agora Dante mirava o teto e eu sabia que ele estava relembrando de tudo o que eu lhe causara e do amor que perdeu por minha causa. Prossegui, dizendo:

- E sei que não importa o que eu faça, nem o quanto me esforce, nunca conquistarei o seu perdão, e não o espero! Somente almejo que você seja feliz... E mais nada.

Lágrimas escorreram de meus olhos, não pude evitar. Dante virou o rosto para mim e depois baixou a cabeça e falou baixinho:

- Eu não queria sentir tanta raiva assim de você, mas eu tinha muitos planos, maioria deles dependiam de mim para se concretizarem e, de repente, você aparta Júlia de mim, quando meus planos incluiam estar ao lado dela.

Eu baixei a cabeça, me sentindo muito mal, muito culpada. Mas, logo ergui o rosto e falei:

- Então me diz o que posso fazer para concertar isso! Me deixa encontrar Júlia e explicar tudo a ela ou, tentar convencê-la a te escutar! Posso fazer algo, eu posso!

- Tarde demais...

- Não, tem que haver algum jeito, algo que...

- Não!... Não há. Acabou tudo, tudo.

Encostei a cabeça na parede e fiquei a pensar por alguns minutos, assim falei:

- Eu sei o quanto isso te dói, também já passei por isso, cheguei a amar muito alguém e um dia o perdi de vez, mas foi pior, porque para mim não havia mais nenhuma chance.

- E por acaso há alguma chance para mim?

- Claro que há! Você sabe que tudo não passou de um mau entendido e que toda a culpa foi minha, por ter te roubado aquele beijo.

- Por que você fez aquilo?

Dante perguntou-me, intrigado, e olhando no fundo de seus olhos, que me lembravam águas tranquilas de um rio ao entardecer, eu apenas disse:

- Isso já não importa mais. A única coisa que importa agora é que eu preciso concertar o meu erro, preciso pagar eu mesma pelo que fiz e te livrar dessa dor! Vou fazer o possível para que você possa recuperar sua alegria, seu grande amor... E se lhe acabarem as esperanças, eu as buscarei para você, eu procurarei por elas e te trarei. E se você se cansar, eu correrei por você e lutarei por você e a minha dor será o seu sangue. Mas não desistirei, até que você tenha conseguido seu amor e ele tenha te curado.

Meus olhos estavam encharcados e as palavras iam caindo de minha boca como o véu da cascata. Dante estava a me fitar, ao que parecia atencioso e surpreso, suponho que não esperava o que eu disse. Um silêncio se fez, nada se escutava, a não ser as fortes batidas de meu coração. Eu olhava para a pintura poética no quadro da parede e tantas coisas, tantas palavras se misturavam em minha mente como aquelas cores incorporando um só personagem. Até que a voz de Dante foi a quebra do silêncio e apartou todas as cores... Ele disse:

- Eu ia pedir ela em casamento.

Olhei para ele e de imediato veio-me em memória a caixinha do anel que deixei cair dentro do boeiro, "como você é tonta, Iva" eu repetia para mim mesma em pensamento, sendo que estraguei tudo.

- E eu estraguei tudo.

Falei para ele, no que este não concordou e nem discordou, ficou quieto por mais alguns segundos e só depois me perguntou:

- Como você conseguiu recuperar o anel no bueiro?

- E o que isso importa? Não adiantou de nada.

- Você abriu o bueiro?

Olhei para ele e assenti e, com um simples sorriso, ele disse:

- Deve ter ficado toda cheirando a lama.

Eu sorri e falei:

- Acho que mais fedidos eram os ratos que circulavam por ali.

Dante olhou a hora em seu relógio de pulso e sem tirar os olhos dele, falou:

- Eu... Eu gostei do seu presente.

- Verdade?

- Verdade. Quer dizer, eu preferia um carro, mas...

(risos)

- Eu fiquei um pouco em dúvida se pegava o prata ou o dourado.

- Eu ganhei um prata do Edson.

Ele disse, com um sorriso curto. E concluiu:

- Mas suspeito que o dele já seja usado.

- Por quê?

- Bom, talvez porque faltava um ponteiro.

Eu ri, e tudo aquilo já estava me parecendo mais aconchegante, não via mais tantas nuvens negras e as palavras de Dante nem mais doíam em mim.

- E como está sua avó?

- Para ser sincera, não está tão bem... Sempre que vou visitá-la ela reage de forma estranha, como se nunca tivesse visto a mim.

- Eu sinto muito.

- Sabe, é estranho... Ela deveria estar comigo em casa, onde todos nós nos encontrávamos, onde eu sabia que sempre ao chegar do trabalho eu iria encontrar minha avó lá, em sua cadeira de balanço e meu avô ouvindo o rádio. Mas agora... Estou visitando um lugar que nunca precisei visitar antes e, sempre que vejo minha avó lá, me pergunto por que ela não está em casa.

- Deve sentir muita falta do seu avô também, não é?

- Sim, muita... Ele era meu segundo herói, o primeiro era meu pai, que sempre conseguiu honrar seu nome e sua família e ser um ótimo pai, e meu avô sempre conseguiu proteger-nos do medo, sempre cuidou bem da gente e da horta, sem deixar que as pragas a devorassem... Eu o amava muito.

Dante estava muito atencioso e ficou pensativo, mirando a escrivaninha. Eu então o perguntei:

- E o que você diz sobre os seus pais?

- Bom, você já deve saber que eles não são da Suíça...

- Humm...

- Mas são maravilhosos. Acho que não valorizo tudo o que eles são, acho que não os valorizo da forma que merecem.

- Por que você diz isso?

- Pouco os visito e... Sei lá, às vezes acho que sou um filho pouco merecedor de seu amor.

- Entendo... Posso te fazer uma pergunta?

- Já fez.

- Posso te fazer outra pergunta?

- Acabou de fazer.

Dante falou, com graça, então eu disse:

- Então, vou te fazer uma pergunta: por que você inventou aquelas mentiras para Júlia?

Dante emudeceu por um instante, não sabendo eu se aquela teria sido uma boa pergunta. Contudo, ele quis me responder, disse:

- Eu tive medo.

- Medo?

- Júlia sempre me pareceu muito educada, inteligente, delicada... Achei que haviam defeitos em mim que poderiam encomodar a ela...

- Então você inventou mentiras para ela ter uma outra impressão sobre você?

- É, acho que sim.

- Mas, não pensou que se um dia, talvez, se ela descobrisse, seria pior?

- A verdade é que eu nunca quis pensar nas consequências, achei que seria melhor ela viver com um mentiroso que "trabalha num teatro" do que com um cara chato que trabalha numa empresa de telemarketing.

Continua...

Lyta Santos
Enviado por Lyta Santos em 29/10/2015
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