Construção
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague.
Música e Letra de Chico Buarque de Holanda
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Comentário do Tio Babá:
Brincando com as palavras, o Chico Buarque de Holanda fez uma letra para esta música, usando proparoxítonos nos primeiros trinta e quatro versos; e mais três quadras alternando o início com paroxítonas e os demais versos com oxítonas. São artistas dessa qualidade que nos fazem ter orgulho de sermos brasileiros. Lembrando: oxítonas são as palavras que têm a última sílaba mais forte (tônica); paroxítona são as palavras que têm a penúltima sílaba mais forte (tônica) e proparoxítona são as palavras que têm a antepenúltima sílaba mais forte (tônica). Como regra geral, todas as palavras proparoxítonas são acentuadas; os acentos podem ser os acentos “agudos” ou “circunflexos” na antepenúltima sílaba. O leitor pode tentar também imitar o trabalho literário de Chico Buarque, usando, por exemplo, frases com encontros de vogais, chamados de “ditongos crescentes”, ou seja, terminados em ia, ie, io, eu, ea, ua. Como sabemos (ou devíamos saber), sempre que escrevemos palavras paroxítonas terminadas em ditongos crescentes, é necessário colocar um acento na sílaba tônica. (Exemplos de ditongos crescentes: cartório, área, série, água,...). Alguns autores, como brincadeira, dizem que os ditongos crescentes podem ser transformados de paroxítonos para proparoxítonos, retardando a última sílaba isoladamente; assim a palavra “superfície”, por exemplo, possa ser dita ao invés de su-per-fí-cie, como su-per-fí-ci-e. A alegação é que, ao transformarmos a palavra paroxítona em proparoxítona, temos a certeza de que ela é acentuada. É isso!