Sob Olhar das Erínias — Parte II

09h00min - Casa de Artur - Quarto dele

O despertador tocou. Após um bocejo junto de uma espreguiçada,Arthur levantou,apanhou o relógio barulhento de cima da mesa de cabeceira e desligou-o. Depois de pôr o objeto de volta no lugar, abriu a janela.

Nesse momento, uma brisa leve e agradável passou por seu rosto, ao mesmo tempo em que os feixes cálidos do sol penetravam com intensidade no aposento, inundando-o de luz.

De olhos fechados, esboçando um fino sorriso, inspirou com prazer o ar a sua volta e, depois de solta-lo lentamente, exclamou alegre:

— Bom dia, Deuses!

Encaminhou-se ao guarda-roupa, donde pegou uma toalha felpuda e vestes limpas. Escolheu boas roupas: hoje iria sair. Largou tudo sobre a cama, calçou os chinelos e, de cima de sua escrivaninha, apanhou um cesto abarrotado de frutos e flores diversas.

Então foi para o pátio.

Pôs a cesta ao pé de uma árvore e se prostrou rente a ela. Então tocou a grama com carinho, fechou os olhos e curvou a cabeça.

Em seguida,declamou:

"Grande Deusa,

Senhora que dá toda a vida,

Dê-me hoje e todos os dias,

A força dos Céus,

O brilho da Lua,

A transparência do Ar,

A clareza do Fogo,

A profundidade das Águas,

A estabilidade da Terra,

A firmeza da rocha,

Que assim seja, e assim será!"

O vento soprou leve e fresco. Arthur, alegre, abriu um fino sorriso, antes de se levantar e encaminhar-se a área mais ensolarada do terreno. Mais especificamente,numa plantação de girassóis.

Ao chegar nela,contemplou o céu azul,ergueu os braços e,sorrindo,recitou:

"Ó Cornudo das áreas selvagens,

Senhor do Sol ígneo,

Evoco sua proteção e poder para mais um dia começar,

Que com os raios do esplendoroso Sol,

A sabedoria, a força e os talentos dormentes neste singelo filho,

Acordem, cresçam e se se multipliquem,

Ó Nobre Antigo,

Que assim seja!"

Terminado, foi tomar banho.

Numa das ruas adjacentes ao supermercado Dellaziere, achava-se o Cyber Vision, a Lan House mais frequentada da Vila Elza. Vivia cheia. Tanto que para conseguir uma vaga era preciso marcar hora com antecedência.

Esse sucesso espantoso devia-se a vários fatores, sendo três deles determinantes na vitória sobre os concorrentes: o ar condicionado frio/quente, os computadores potentes, atualizados constantemente com o que havia de recente dos aplicativos mais procurados pela garotada (baixadores de vídeo e música do You Tube, novas expansões de jogos RPG on-line e de tiro em primeira pessoa, etc.) e o melhor, o baixo preço pelo acesso. A hora custava apenas um real...

Entretanto, mesmo essas coisas todas não seriam o bastante para provocar movimento tão intenso desde a abertura até o fechamento.

Então, o que estaria acontecendo?Qualquer um que olhasse sem hipocrisia para a sociedade atual, logo descobriria a resposta...

Educar no século XXI era trabalhoso e desnecessário. Estando a tecnologia a todo vapor, seria até tolice. Existia a web para livrá-los dessa responsabilidade, os videogames, e a boa e velha TV. Com "babás" tão encantadoras e eficientes como essas, só pais estúpidos se preocupariam em transmitir valores e normas aos filhos, além de lhes impor limites.

Cristhian estava no Facebook quando três adolescentes, "Beltrano", "Sicrano" e "Fulano", aproximaram-se e o cumprimentaram. "Fulano", de olho no monitor, comentou:

— Olha os peitão da mina!Quem é essa gostosa?

— É a Sheila, uma amiga lá de Alvorada. Por acaso, encontrei ontem com ela na mesma loja que eu tava escolhendo umas bota pra Agnes.

— Ela tem namorado? — perguntou "Beltrano", interessadíssimo.

— Tinha. Sabem o Igor? Era ele.

— Aquele mangolão?! — soltou "Sicrano",embasbacado. — Báh... Bom, agora tu vai pra cima, né?

— Capaz que não... — admitiu ele, babando pelas fotos da guria. — Deixar essa carne de primeira pra outro, sendo que eu posso comê, nem a pau!

— E a Agnes? — questionou "Sicrano".

— Fica como tá. Consigo dar conta das duas tranquilo. Só uma não saber da outra e já era... Até porque dar um chute na Agnes ia ser burrice. Ela bem tri. E, podem crer, na cama é uma leoa!

— É isso aí. — apoiou "Fulano", entusiasmado. — Quanto mais, melhor!

— continuou, ao fitar o estojo dum instrumento musical, encostado na parede, perto de Cristhian: — E isso aí? É uma guitarra?

— É. Comprei do Vitor. - respondeu, digitando os dados para o acesso do seu perfil no Facebook - Ele disse que dá pra pagar ele depois. Parceiro o Vitor.

— Então vai montar uma banda, né? — perguntou "Fulano".

— Aham! E já tenho até o nome: Cólera. Só tá faltando encontrar um vocalista pra gente começar.

— Falando nisso, a banda do Yuri vai tocar na festa que vai tê lá na casa do Paulo, no sábado. — informou "Beltrano". — Os caras são bons. Aparece por lá com a Agnes.

— Vamos, sim. As festas do Paulo são as melhores. Cerveja e vinho não faltam!

— Vai demorar muito aí? — quis saber "Fulano".

Logo que atentou para a tela do computador, respondeu:

— Vou. A Sheila acaba de ficar on-line.

Depois de despedir-se dos garotos, entusiasmado, voltou-se para o chat do Facebook.

Casa de Arthur

Em frente do espelho do quarto, Arthur desferiu a última penteada. Em seguida puxou o celular do bolso e olhou a hora. Então livrou-se do pente e deixou o cômodo.

Mas,no segundo seguinte, deteve-se e voltou. Foi até a estante, pegou um colar prateado de uma das prateleiras e colocou-o, deixando-o pendente sobre o peito o pentagrama, uma estrela de cinco pontas que ocupava o centro de um círculo.

Entre os ignorantes, um símbolo do mal usado pelos seguidores do diabo para representar sua devoção a ele.

Já para aqueles que não temeram o desconhecido e, de corações e mentes abertas, dedicavam-se aos estudos do oculto e deles retirava o melhor para si e para todos aqueles que lhe eram caros, sabiam o que o pentagrama era um talismã de diversas funções benéficas cujo uso comum era para proteção mental, espiritual e física.

Mas claro, sua função sempre dependerá do caráter de cada um...

Arthur fechou as mãos sobre o talismã e desculpou-se:

— Quase que te esqueço, amigão. Foi mal!

Pelo interior da residência chegou ao ateliê de sua mãe e, interrompendo a conversa dela com suas clientes, interpelou:

— O que tem que trazer do mercado, mãe?

— A lista tá em cima da mesa da cozinha, querido. — respondeu ela, para e seguida recomeçar a parolar.

Supermercado Dellazieri — Hortifruti

Em quanto aguardava a sua vez de pesar, ouviu uma voz feminina, brava, soltar:

— Ai... Bosta!

Ao virar-se na direção do xingamento, avistou Agnes. Resmungando, a garota catava (de várias esparsas) batatas do piso.Imaginando que logo algum funcionário ou mesmo um cliente a ajudaria, ignorou-a.

Mas por via das dúvidas, olhou em volta. Fizera bem, pois o que vira provou que a menina estava só: dois dos empregados, batendo papo, passaram perto da adolescente fingindo que não veem e, indiferente à situação da jovem, achava-se um casal escolhendo cebolas, estas, adjacentes às batatas...

"É... Caminhamos cada vez mais pro individualismo absoluto, pensou o rapaz, franzindo a testa," Depois reclamam por se sentirem tão sozinhos..."

Estacionando seu carrinho num ponto onde não atrapalhasse ninguém, Arthur, desanimado, pensou: "Sobrou pra mim. Justo a namoradinha do Cristhian... Ai,ai... às vezes não gostaria de ter certos conhecimentos..."

— Acho que precisa de uma mão aí, né? — inquiriu ele amistosamente, apanhando algumas batatas.

— É... Valeu... — agradeceu a outra, pondo as batatas que já pegara de volta no lugar. — Ei, eu te conheço! Não é o guri novo que chegou ontem na minha turma?

— Eu mesmo. — respondeu ele, botando as batatas no "batateiro".

— Veio de onde? — indagou Agnes, recolhendo mais uma porção dos legumes.

— De lugar nenhum. — respondeu Arthur, fazendo o mesmo que ela. — Sô daqui da Vila. Só não frequentava o Nísia Floresta. Eu estudava no Universitário, em Alvorada.

— É aquele colégio na parada 49?

— Isso. — confirmou o rapaz, colocando, ao mesmo tempo em que ela, as batatas de volta no seu lugar. — Eram as últimas, né?

— Deixa vê... — falou a menina, olhando cuidadosamente em volta.— É, terminamos.

— Bem, então vou voltar pra "turma da balança". Até.

— Tá. Se vemo de noite. Obrigado.

Momentos mais tardes,quando Arthur, carregado de sacolas, encaminhava-se a saída, alguém gritou:

— Ah, caralho!

Tal palavrão chamou a atenção o garoto, bem como de todas as pessoas ali próximas. Viu Agnes, afoita,procurando algo nos bolsos e, preocupada, falar a guria do caixa:

— Acho que esqueci o dinheiro em casa... Pera aí,deixa ter certeza...

Notando a cara de impaciência do povo atrás da garota e sentindo pena por ela encontrar-se numa situação um tanto constrangedora, Arthur ponderou consigo: "Ai... minhas economias...!"

— É, ficô em casa. — afirmou a jovem. — Então vô deixa as compr...

— Eu pago pra ela! — declarou Arthur, austero, aproximando-se.

Agnes e a garota do caixa fitaram-no, abismadas.

— Não, você não pode. — disse Agnes. — Quer dizer...Por quê? Mal nos conhecemos...

— Ele quer te comê! — berrou um adolescente bobão, pertencente à fila do caixa vizinho a do deles.

— Eu se tivesse dinheiro faria o mesmo! — proferiu outro bestão, detrás daquele que acabara de manifestar-se. — Hummm... Que gostosinha...

— Não se metam, babacas! — vociferou Agnes.— Tô falando com ele!

— Olha Agnes, digamos que prefiro assim. — disse o jovem, antes de retirar o celular do bolso, mira-lo e, surpreso, largar: — Dez e meia! — prosseguiu, ao visar a garota do caixa: — Por favor, cobre logo aí. Pagarei no cartão.

— Como queira. — falou a garota do caixa, dando início ao processo na tela do seu monitor.

Logo, Agnes e Arthur saíram do supermercado.

Então, gentil, ela agradeceu:

— Obrigado de novo.Muito bacana o que tu fez. Hoje lá na aula te reembolso. Quanto deu mesmo?

— Vinte cinco com oitenta. Mas me dá vinte que fica tudo bem.

— Não. Pagou vinte cinco com oitenta, terá os vinte cinco com oitenta.

— Tá bom. Até de noite então. — despediu-se, antes de sair andando apressado.

— Até... - pronuncia a garota, sorridente, vendo-o ir.

— QUEM É ELE?! — esbravejou Cristhian, detrás dela.

— Ah! — exclamou a guria, virando-se de sobressalto, lançando as compras no chão. — Pirô, Cristhian?! Quer me matar do coração?!

— Não se faz de loca! — desembestou ele, agarrando o braço dela. — Quem era aquele cara que tu tava conversado, hein?!

— Ninguém. Só um colega do colégio...

— Não mente pra mim! — bradou o adolescente, sacudindo-a. —Tive várias vezes na tua sala, e nunca vi ele! NUNCA!

— Para com isso! Tá loco?! — vociferou a jovem, desvencilhando-se num puxão. — Não conhece o guri porque ele chegou ontem na turma!

— Acha que sô trouxa?! O jeito que olhava ele ir, não era de alguém que acabou de conhecer! Ao contrário, era como se...

Num pulo, Agnes agarrou-se no pescoço dele e, carinhosa, murmurou ao pé de seu ouvido:

— Tolinho... Acredita mesmo que eu te trocaria por outro? Ainda mais por alguém que mal conheço? Eu te amo...

— Não sei... Vi o modo que olhava pra ele... Não gostei nada... Tu parecia fascinada...

— Agradecida, na verdade. Ele me deu uma baita ajuda ali no Dellazieri.

— Hum... O que aconteceu? — questionou o rapaz, não acreditando muito.

Após dá-lhe uma beijoca, ela disse:

— Vem comigo até em casa, que no caminho te conto.

— Tá. — assentiu o garoto, circunspecto.

Ao recolherem as compras, foram-se.

Gian Felipe Author e A. Henrique SR
Enviado por Gian Felipe Author em 07/10/2015
Reeditado em 07/10/2015
Código do texto: T5407586
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