Capítulo 2 – Irremediavelmente amigos
Nunca fui uma grande fã de viajar de avião, mesmo que vivendo na Alemanha eu tenha sido uma grande usuária desse meio de transporte. Com isso acabei sentindo um alívio descomunal ao finalmente pisar no Brasil, mas depois lembrei o que tinha me levado a voltar e acabei tendo um enjoo crônico. Arrastei minhas malas e me sentei no primeiro banco que vi, de frente a uma lanchonete cheia de coisas gordurosas com preços altíssimos.
Vi uma garotinha de aparentemente 5 anos estava abraçada com a mãe, seu semblante era assustado. Acabei lembrando de uma garota loira com 17 anos, completamente sozinha na vida, mas acompanhada de um estranho prometendo que a tornaria uma grande mulher. E cumpriu sem pedir nada em troca. Graças a esse homem eu pude conhecer vários países, tive um estudo extraordinário, aprendi a falar outras línguas, vivi tudo o que a vida foi capaz de me dar e ainda quero mais. Agora eu sou uma mulher de 24 anos, com uma carreira, uma vida financeira tranquila para nunca morrer de fome e que não superou antigos traumas do coração. E não parece que superará tão cedo.
Veja bem, não é que eu já não tenha tentado todo método possível para esquecer. Eu apenas não consigo. Esquecer é um processo que talvez exija enfrentar o próprio trauma. Eu tive o melhor namorado que uma mulher é capaz de ter (Thomas aprendeu a falar português por minha causa onde diabos um homem faz isso por uma mulher?) e falhei com ele em proporções inimagináveis. E apesar disso, o vi chorar feito um bebê pelo fim do nosso relacionamento.
Respirei fundo e estiquei as pernas olhando para os meus próprios pés. Concluí que minha bota não combinava muito com o calor que fazia em São Paulo. Olhei do outro lado do aeroporto e vi um grupo de meninas risonhas cheias de cartazes em mãos, com certeza esperavam por alguém bastante querido e senti um tipo de tristeza inexplicável por não ter ninguém esperando por mim.
- Não é hora para isso, Maria Luíza. Não é hora para isso. – Murmurei, baixinho e então me levantei. Nesse momento meus olhos pousaram em dois rapazes. Um era bastante alto, tinha cabelos escuros e bem cacheados e mantinha o mesmo físico que eu já vira antes. A única coisa que mudara fora o modo de se vestir. Era o típico jovem paulistano. A linha tênue entre o despojado e o quase-sério. O outro tinha o estilo geek, de altura mediana, o considerado jovem moderninho. Meu coração disparou dolorosamente conforme as características do mais alto ficavam mais fortes. Os dois trocaram um selinho rápido e o rapaz moderninho foi em direção a pista de embarque. Eu presenciava uma despedida.
Como se meus pés tomassem vida própria puxei minhas malas e fui em direção ao rapaz de cabelos enroladinhos. Meu coração ainda batia desesperadamente. Eu o vi sentar em um banco vazio, parecia desolado e tão preso ao seu próprio momento que nem viu quando me sentei ao seu lado.
- Confesso que fiquei um pouco comovida com a despedida. - Comentei, bastante cínica. O olhar de meu velho amigo Bernard Sartori encontrou o meu e novamente os flash's de lembranças vieram com toda a força. Ele abriu a boca duas vezes, depois franziu o cenho, olhou para o meu cabelo loiro, que estava preso em um rabo de cavalo e arregalou os olhos amendoados. Até que novamente me olhou fixamente e ficou ainda mais branco se é que isso é humanamente possível.
- Jesus Cristo, Maria Luíza! – Exclamou, completamente surpreso. Por um momento quis não odiá-lo por fazer parte de um passado que eu lutava para esquecer.
- Olá, velho amigo! – Dei meu melhor sorriso. – Surpreso?
- E-eu pensei que você estivesse morta... – Tentei não me abalar pela forma sincera com que Bernard falava. “Ele também faz parte de tudo. Ele também me magoou. Ele é como o Michel.” – Deus do céu eu estou feliz por ver você!
- Pena que não posso dizer o mesmo de você, não é? – Desviei o olhar por alguns segundos. Bernard me olhou, confuso. – Ah, qual é. Você nunca foi muito meu fã. Vamos cortar o falso sentimentalismo.
- Eu aprendi a gostar de você, mesmo que quase sempre você agisse como uma cadela imbecil, como faz agora!
- Claro, eu finjo que acredito.
- Qual é o teu problema, garota?
Aproximei meu rosto ao dele, que não recuou e ainda sustentou meu olhar.
- Eu quero que você e seu amigo sofram bastante.
Bernard novamente franziu o cenho, depois balançou a cabeça e riu. De quê, juro que não sei. Algumas coisas não mudam, como o fato de eu ser uma piada para ele.
- Ah, eu já entendi tudo. É bem previsível mesmo. Estou lidando com a Emily Thorne versão olhos azuis. Você voltou para eliminar seus antigos “inimigos” do colégio, é isso?
- Você está achando engraçado?
- Faz oito anos que eu não a vejo! Éramos adolescentes quando toda aquela merda entre você, Michel e eu aconteceu! Supere isso!
Durou cerca de 5 segundos para minha mão virar contra o rosto de Bernard. O tapa deixou marcas.
- Me diz uma coisa, Bernard... – Murmurei em seu ouvido, ele fechou o punho na mesma hora. – Michel sabe que você é bissexual?
Se um olhar pudesse exterminar alguém, o de Bernard seria um. Ouvi sua risadinha irônica e sensual me lembrando do porque eu fui atraída por ele durante tanto tempo.
- Pelo jeito não.
- Você quer mesmo se vingar, não é? Do que exatamente? De 3 anos no ensino médio que resultaram em você apaixonada pelo Michel?
- VOCÊ E O MICHEL FIZERAM DA MINHA VIDA UM INFERNO!
- INFERNO? - Eu sabia que tinha cerca de mil pessoas nos olhando, mas eu precisava gritar com ele. - SUA VACA DESPREZÍVEL! É VERDADE QUE EU TENHO MINHA PARCELA DE CULPA COM VOCÊ, MAS, SE COLOCARMOS NUM PAPEL VOCÊ ME INFERNIZOU MUITO MAIS! VOCÊ SIMPLESMENTE SUMIU NO DIA DA NOSSA FORMATURA DO COLÉGIO, DEPOIS ME APARECE OITO ANOS QUERENDO MUDAR O QUE JÁ ESTÁ FEITO!
Gargalhei alto, mas não foi sincero porque eu tremia de tanto nervoso. Bernard estava me forçando a lembrar do pior dia da minha vida. Fechei os olhos e a voz de minha tia soou em meus ouvidos.
“Eu amo você minha querida, eu amo muito você, prometa que vai se cuidar...”
Quando abri os olhos, lágrimas brotaram em meus olhos, mas limpei rapidamente. Estou no Brasil há menos de uma hora e já estou fraquejando. Bernard, tão nervoso quanto eu, balançou a cabeça. Estava transtornado.
- Você quer mesmo vingança, dá para ver nos seus olhos... – Eu olhei fixamente para frente. – Você precisa disso, não é?
- Você só precisa saber que sei do seu maior segredinho. E se não quiser que seu grande amigo saiba, é melhor agir conforme a banda toca. E no momento EU sou a banda. - Tirei um cartão empresarial meu da bolsa e coloquei na mão dele. Levantei-me da cadeira e o olhei. - E ah, esse encontro fica só entre nós. Nos veremos em breve, Bernard.
Levantei da cadeira e saí com minhas malas em direção à rua. Desde que conheci Bernard essa foi a primeira vez que numa discussão a última palavra foi a minha.
O táxi estacionou em frente a um belo condomínio de luxo localizado na zona Sul de São Paulo. O prédio parecia ter mais de 15 andares e era bem arborizado e seguro. Creio que com isso Immanuel esperava que eu o odiasse menos por ter me feito voltar ao Brasil ou então quer me provocar ainda mais. O taxista desceu com minhas malas, (pelo menos com as coisas mais importantes, já que o restante viria em dois dias) e eu o paguei. Quando parei em frente ao portão, o porteiro sorriu gentil até demais para o meu gosto. Logo lembrei que no Brasil algumas pessoas são extremamente felizes. O homem tinha idade para ser meu tio ou pai, sei lá.
- Bom dia, meu nome é Ma..
- Dona Maria Luíza, não? Eu já estava ciente da sua chegada! Entre, entre, por favor! Vou te dar a sua chave. – O homem me puxou para entrar e tagarelou até entrarmos no saguão do prédio de como ficava contente quando chegava morador novo, e de como o comprador do meu apartamento fora gentil quando viera aqui.
- Calma! – Eu exclamei, parando no meio do caminho. – Como era esse homem?
- Ele tinha um jeitão de estrangeiro, depois descobri que era alemão. Era bem alto, cabelo preto e um olhar bastante sério, mas era bastante educado. Faz uns 3 meses que esteve por aqui.
O maldito já planejara tudo. Como alguém pode ser tão canalha e doentio? Há 3 meses a diretoria anunciou que haveria mudanças na presidência da Babinsky Marketing & Publicidade e eu me lembro de receber a notícia que concorreria à presidência com Immanuel. Foi então que de amante, virei a inimiga dele, e no momento em que eu deveria ter declarado derrota, resolvi afronta-lo. E isso resultou na minha volta ao Brasil.
O porteiro pediu para um rapaz subir comigo para me ajudar com as malas, tenho certeza que o ouvi me desejar uma ótima estadia, mas não tive forças para respondê-lo. Eu mal cheguei no Brasil e já quero voltar para Munique. Abri a porta do apartamento automaticamente que nem prestei atenção aos detalhes que me rondavam. Immanuel Babinsky tinha conseguido se livrar de mim com a mesma facilidade que uma barata pode ser morta por um ser humano.
Sentei-me no sofá fervilhando de um ódio que só Immanuel e Michel eram capazes de me fazer sentir. Fechei os olhos com força tentando apagar todos os momentos que vivi ao lado dele.
E mesmo assim as memórias começaram a surgir...
A primeira vez que eu o vi foi no elevador da BMP. Eu já ouvira histórias sobre o cruel e impiedoso filho do dono, mas nunca o conhecera pessoalmente. Na época eu ainda era apenas a secretária de seu pai, mas isso não o impediu de flertar comigo de todas as formas. Ao contrário, por eu ser brasileira, Immanuel Babinsky achou altamente atraente a conquista. E eu, inocente e completamente vulnerável no auge dos meus 20 anos adorava a forma com que ele era capaz de me despir apenas com o olhar. Não era paixão ou amor, era sexo, era uma atração física completamente diferente do que eu já havia sentido. Era uma submissão. Immanuel alimentava meu ego fazendo eu me sentir desejável e atraente, mesmo que isso não fizesse muito sentido.
- Engraçado como sempre nos encontramos no elevador, Maria Luíza. – Ele disse, com um meio sorriso nos lábios. Como haviam muitos brasileiros trabalhando na empresa, Immanuel sabia falar português. Me permiti perder o ar enquanto olhava toda a beleza daquele homem. 1.80, ombros largos, pele morena, o cabelo era escuro, bem liso e um tanto arrepiado. Olhos escuros e enigmáticos. Lábios sensuais. Um conjunto de uma obra que era de enlouquecer qualquer mulher. Ou menina. O que era meu caso.
- É verdade! Bom dia, Sr. Immanuel.
- Senhor não, pode me chamar apenas de Immanuel. – Sorri, condescendente. Ele me provocava alguns arrepios que eu não sabia definir se eram de prazer ou medo. Na verdade, vendo a minha própria história como uma leitora, era medo e prazer que eu sentia. E o mais irônico é que eu precisei dele para me tornar uma mulher de verdade.
O meu medo me dizia diariamente que eu deveria fugir de Immanuel e a curiosidade me obrigava a conhecer um mundo novo. E eu conheci.
Era final de ano na Alemanha, a empresa trabalhava a todo vapor para uma campanha natalina. A maioria dos funcionários fazia hora extra, mas naquele dia só eu e Immanuel ficamos trabalhando até tarde. Ainda me lembro com detalhes de como tudo começou. Lembro dele me chamando até sua sala, depois a trancando com um controle eletrônico e me dizendo em alemão que precisava de mim e que eu também precisava dele. E não era preciso ser fluente em alemão para saber o que aqueles olhos queriam.
Ainda tentei fugir alegando estar comprometida. Em resposta ele apenas rira. Eu sabia que Thomas odiava os Babinsky por antigas rixas familiares. Sabia que Immanuel achava meu namoro com Thomas uma piada. Sabia que aquela traição seria meu abismo pessoal. E eu vivi aquilo com a maior intensidade possível.
Immanuel veio em passos lentos até mim, eu tentei sustentar seu olhar, mas não tinha coragem. Era tudo muito surreal. Ele sorriu diante do meu impasse interior e então abriu meu vestido com uma única puxada. Seu olhar foi de uma admiração sincera e sensual. Eu mal conseguia respirar ou me mover.
- O que você quer, Maria Luíza? – Ele perguntou, ao pé do meu ouvido. Seu sotaque alemão arrepiando todo o meu corpo. Sua mão deslizou por minha barriga, fazendo-me arfar. – Me diga.
A resposta pareceu ter saído do fundo da minha garganta.
- Eu quero ser sua.
E a partir daquele não era mais a brasileira que tinha deixado para trás um passado recheado de traumas. Naquele momento eu era a garota que começava a ter um caso com o filho do dono da empresa. E que também inocentemente assinava um contrato com o diabo e não sabia disso.
Balancei a cabeça várias vezes, tentando me afastar dessas lembranças. Notei um bilhete em cima da mesa de centro da sala e ao abri-lo, dei um grande sorriso. Era de Paulo Lemos, o homem que eu substituiria na chefia da BMP brasileira.
“Querida Maria Luíza,
Aguardamos com ansiedade a sua chegada na empresa.
Com carinho,
Paulo Lemos.”
Nada como um novo local de trabalho para esquecer de velhos inimigos. Pelo menos, temporariamente, é claro.