O MENINO QUE ESPERAVA DEMAIS - PARTE III
 
Sentado a um velho sofá desgastado pelo tempo, vivendo ainda no mesmo lugar, em frente à mesma televisão ultrapassada (os sussurros e confabulações tinham parado há tempos, talvez até mesmo aquela velha caixa de sonhos tivesse se cansado da mesma rotina sem perspectivas), estava o velho-menino a espera de alguma coisa, vivendo sua terceira idade, uma melhor idade que não era tão boa assim. De seu rosto a felicidade tinha ido embora. Seu único porto seguro agora era a velha roupa que cobria seu corpo. Uma boina preta, uma camisa branca com um pulôver azul por cima, uma calça branca já bem amarelada e um desgastado sapato marrom.
Dudu já não tinha mais expectativas, pois as expectativas tinham lhe cansado com uma chegada que nunca aparecera de fato.
Por isso ele não estava mais a espera de sonhos, mas sim a espera de algo que vivera ao seu lado todo aquele tempo como uma sombra esperando somente o momento certo para se apresentar. Tinha chegado à conclusão que o melhor era de alguma forma partir, que nada mais podia ser feito.
A morte era sua visita mais que esperada, uma entidade, uma força que vinha buscá-lo para um mundo além desse. Ela era apenas uma presença que sentia, mas não tinha consciência de suas intenções, da sua data de chegada, nem mesmo dos sussurros que ela soltava no calar da noite e nas horas de desesperança, por incrível que pareça, fato raro em sua vida.
No cemitério com sua bengala, sentado numa cadeirinha de madeira que ficava escondida numa árvore perto dali, orações saíam de sua boca emanando paz e amor, em seguida seus olhos miravam as lápides de seus pais travando um diálogo saudoso, triste, conformado e pálido como sua face enrugada e tranqüila. Seus pais tinham morrido não fazia muito tempo.
Tinham lhe deixado a casa e tudo que dentro dela se encontrava. Não havia dívidas, pois eles sabiam que Dudu não teria como pagá-las. Em cima da estante uma foto em família de uma felicidade que nunca havia sido sincera. Nas lápides flores perfumavam uma tristeza velada, uma saudade que doía no peito do velho-menino.
- É tão estranho, não sei por que vocês se foram tão cedo, porque me deixaram aqui sozinho. Quando me lembro de vocês meus olhos querem chorar. Eu sei. A vida que brinca com a gente e nós que não queremos parar de brincar. Está tudo por aí. Restos de lembranças que do céu tão cinzento estão a cair – murmurava quase que num tom poético e nostálgico entoando uma melodia triste.
Tanto o pai quanto a mãe não tinham morrido de doença, acidente, ou outra fatalidade qualquer. Eles tinham simplesmente levantado de seus corpos durante o sono dos justos e caminhado até o jardim de flores amarelas com um fundo de céu branco.
Dudu encontrara seus corpos no dia seguinte e por ter sido sempre um ser emotivo, chorou por muito, muito, muito tempo praticamente inundando sua casa, a vizinhança, a cidade inteira, provocando o caos, deixando tudo em estado de sítio. Seu choro era de um desespero profundo, mais do que pela perda, pela certeza de que um buraco negro em sua vida abria-se a sua frente.
Pela primeira vez um ato seu interferia de forma contundente na vida de todos a sua volta. As pessoas viviam junto com ele a tristeza do luto, mas nada era capaz de confortá-lo. Ele precisava passar por aquilo sozinho. A saudade era grande, amava seus pais e era recíproco, mas eles não tinham lhe esperado. Tinham ido embora por um caminho sem volta e de algum lugar torciam por uma grande reviravolta, embora nessa trama a possibilidade de um final surpreendente fosse improvável.
Os dias foram se amarelando e se apagando como um álbum esquecido na gaveta. O hoje passou e chegou o amanhã. Durante todo o tempo Dudu parecia congelado e estacionado em suas emoções.
E só quando a tristeza de não ter vivido o suficiente começou a querer explodir em seu coração, foi que o velho-menino se mostrou arrependido de ter esperado tanto tempo, por coisas que pra se ter, era preciso lutar e muito.
Em algum lugar longe dali, a velha Joaninha transformava-se também. Num ser melhor, mais feliz, mais amável e carinhosa consigo mesma, com os outros e com uma nova samambaia verdinha que habitava sua aconchegante casa.
Olhando para o seu reflexo no espelho, o velho Dudu viu que não tinha feito nada de sua vida, que não tinha sido nada na vida, que esperar não era ser paciente, esperar era abrir mão do seu destino.
Sentiu uma presença atrás de si. Era a morte com seu manto, com seu sorriso frio e doce. Por um bom tempo se olharam fundo nos olhos e telepaticamente conversaram, sabiam exatamente o que precisava ser feito.
Abraçada por sua áurea negra, a morte caminhou lentamente até o velho Dudu. Ao chegar perto perguntou.
- Vamos?
- Não! Ainda não está na minha hora! Não é tarde pra mim!
- Você não está entendendo!
- Parece que é você que não está entendendo! Eu não vou! Me dê a chance de tentar!
E a morte entregou uma corda para o velho Dudu que a segurou firme, como se aquela corda fosse o último cordão umbilical dele com a vida.
E o velho Dudu sorriu e lutou contra um destino pré-determinado.
E o velho Dudu sabia que era bobagem se entregar.
E o velho Dudu viu que sim, que podia pelo caminho voltar.
E o velho Dudu decidiu não ser mais velho.
E o jovem Dudu decidiu viver a vida que lhe restava.
E o jovem Dudu decidiu não mais desejar a morte.
Que ela corresse atrás e que se quisesse pegá-lo, que fizesse de tudo, menos esperar. Afinal, o DEFENSOR estava cansado, mas não vencido, só que aquele sentimento era algo exclusivo de seu coração. A realidade era um pouco diferente. Dudu tinha perdido a luta. A morte ao se aproximar sentenciou.
- Eu volto em 24h. Espero te encontrar aqui.
- Estarei aqui – respondeu com os dedos cruzados atrás das costas.
Vinte e quatro horas, ele só tinha esse tempo pra enganar a morte. Tentou ficar imaginando planos e mais planos pra não ter que morrer.
Talvez se forjasse a própria morte poderia escapar dessa, mas não podia dar certo. A morte devia saber exatamente quando cada pessoa da terra passava dessa pra melhor, afinal ela era a responsável.
- Que idéia besta – pensou.
- E se eu matar a morte? Matar a morte? – aos risos.
- A morte já está morta! – se achando a pessoa mais idiota do mundo.
Estava num beco sem saída e sabia disso, nenhum plano, nenhuma idéia, nenhuma mágica seria capaz de salva-lo, talvez nem um milagre. E foi quando no dia seguinte a morte apareceu novamente pra ele que Dudu viu passar pela sua cabeça um filme inteiro da sua vida. Ele deu então um pause com o velho controle da televisão. Aquele controle havia perdido o sentido.
Lá de baixo, na rua, um controle podia ser visto voando pela janela até se estatelar no chão. Na cabeça uma imagem permanecia congelada, impedindo a chegada do fim. Ele não pretendia ver os créditos finais. E diante das súplicas, a morte tocada por algum tipo de sentimento resolveu lhe dar um bônus, um prazo pra reais realizações.
- Você tem uma semana, uma semana pra fazer o que você não fez a sua vida inteira.
- Obrigado – respondeu sorridente.
Ele ficou acordado quase a noite inteira, fazendo uma listinha de tudo que queria fazer naquela última semana de vida. Tirou apenas um cochilo rápido pra voltar a escrever. As tarefas mal cabiam na folha de papel.
O dia estava clareando e mesmo tendo dormido pouco, Dudu levantou sorridente da cama, foi até a cozinha pra preparar o café e começar sua jornada. De repente percebeu algo na geladeira. Aproximou-se e pegou um pedaço de papel preso por um imã junto à porta. Apenas uma frase escrita.
- Comigo não tem segunda chance. Desculpa.
Não havia assinatura alguma, e nem precisava. Dudu deu um sorriso sacana como quem tivesse sido enganado de forma bem arquitetada. Subiu as escadas vagarosamente até o seu quarto, abriu a porta e olhou para a cama. Alguém estava deitado nela. Reconhecia os velhos sapatos marrons desgastados pelo tempo. Atrás de si um enorme clarão engoliu o apertado aposento. Em segundos já não podia-se mais ver o velho Dudu ali.
 
DEPOIS DO FIM

Depois que o corpo de Dudu foi encontrado em seu quarto, a imprensa do país inteiro cobriu aquela fantástica história dando o mesmo título para todas as matérias. O MENINO QUE ESPERAVA DEMAIS. Não se falava em outra coisa, principalmente em função dos bizarros acontecimentos que Dudu mesmo depois de morto enfiava goela abaixo de todos.
Foram meses de espera até o corpo ser liberado pelo IML e por alguma razão inexplicável, seu corpo não sofrera com a decomposição. No velório acompanhado por uma multidão, a mesma multidão teve que esperar por horas a fio até conseguir ver o cidadão mais famoso do país. A demora para liberação do portão principal nunca foi explicado. No enterro, no melhor cemitério da cidade, o buraco da sepultura era menor que o caixão que carregava Dudu. Por alguma razão estranha não havia pás disponíveis ali, o que forçou as pessoas a terem que esperar pelo menos um fim de semana até alguém conseguir cavar e aumentar o buraco pra que Dudu finalmente fosse enterrado.
Anos depois de sua morte, seu túmulo continuava ali, intacto. E sobre ele, uma pequena rosa branca, que nunca morrera e que estava à espera de alguma coisa, mas isso nunca ninguém soube dizer o que era.
Em algum lugar do céu não podia-se encontrar Dudu. Ele havia sido enviado novamente a Terra. Pra fazer o que, só perguntando pessoalmente a ele, mas pra isso alguém teria que encontrá-lo.
Não seria difícil. Era apenas necessário mirar nos olhos de alguém e tentar descobrir se ali morava o negro como a luz do cosmos.
Kadu Leayza
Enviado por Kadu Leayza em 15/07/2015
Código do texto: T5311857
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