O MENINO QUE ESPERAVA DEMAIS - PARTE II
 
Então a espera continuava. A transição da adolescência para a idade adulta estava começando a acontecer. Seu corpo estava ficando definido, as espinhas já não estavam mais ali em seu rosto, ele definitivamente tinha se transformado num lindo cisne. Responsabilidades aumentavam para qualquer jovem nessa idade, mas Dudu podia ser encontrado novamente na frente da televisão. Ele fazia uma espécie de transferência de interesses e corria pra onde era mais adequado, sempre com a mesma expressão e paciência.
- Veja! Ele está voltando pra gente!
- Eu falei pra você! Ele não consegue ficar longe! É a nossa beleza, ela chama esse menino!
- Ainda bem! Eu já estava ficando entediada! Ele não é como os outros! Ele nos dá atenção, ele nos alimenta com a sua fome de desenhos, filmes, imagens.
A televisão agia como um sugador de energia, um parasita da mente, do coração, alienando o menino e colocando-o no caminho da involução.
Ver a vida correndo lá fora, exigindo pressa e ele ali sentado esperando sempre algo, irritava profundamente qualquer ser, fosse ele vivo ou não.
Enquanto Joaninha pecava por excesso de atitude, Dudu pecava por excesso de idealismo e omissão, como se algo muito bom estivesse pra acontecer, mas nada acontecesse.
- É a televisão que estraga esse menino – diziam os pais.
- Ela me faz companhia enquanto espero – retrucava imediatamente.
O que antes aparentemente eram manias de uma criança passou a ser sinais sérios de que Dudu pudesse estar doente, com alguma doença não identificada.
Não havia jeito de fazê-lo desistir, desistir de seus planos e metas, mesmo ninguém sabendo o que era. Não tinha amigos, já não se interessava pelos estudos, não queria saber de compromissos, não queria saber de mais nada, a não ser de esperar e esperar.
Certa noite acontecera algo que deixara os pais realmente preocupados.
Tinham pedido uma pizza como de costume, hábito pra juntar mais a família nas noites de sábado. Os pratos estavam na mesa, os copos, tudo arrumado com carinho por todos para um jantar especial, mas esses pequenos gestos e sutis intenções pareciam não afetar Dudu que mantinha sempre a mesma postura, típica de um eterno menino mimado. Ficara um bom tempo olhando para a pizza, obrigando sua mãe lhe servir após mirá-la com olhos de cachorro pidão. Ali na mesa, sua mãe engolia o choro, seu pai se sentia impotente.
No quarto, seus progenitores eram tomados por um sentimento de revolta misturado a um choro doído e sem esperança, embora a esperança fosse a última a morrer.
- Isso não pode continuar assim. Precisamos fazer alguma coisa.
- Vamos levá-lo ao médico.
- Acho melhor a igreja.
- Talvez um psicólogo.
- Eu conheço um terreiro bem legal e bem famoso.
Preparativos eram arranjados como se aquela família estivesse a caminho de uma missão quase impossível. E talvez fosse impossível de verdade, ainda que sem a figura do agente Ethan Hunt.
No consultório do médico (já não eram somente pernas, Dudu havia crescido, ele podia ver um homem impessoal que não olhava em seus olhos durante a consulta e pensou - Que médico era aquele?), ele era examinado cuidadosamente, mas nenhuma anormalidade havia sido encontrada em seu corpo.
- O problema não está no corpo. O filho de vocês está bem saudável. Acho que é algo com o psicológico - decretou o médico.
- Talvez com a alma – discordou a mãe.
Na igreja o padre (figura cansada e altiva com um olhar que mirava qualquer fiel da mesma forma com a mesma intenção e pensou – Que padre era aquele? Será que acreditava mesmo em tudo o que dizia?) perguntou a Dudu.
- Você acredita em Deus meu filho?
- Acredito no destino. Em algo bom reservado pra mim. Pelo menos minha vó sempre diz isso.
- Esse jovem tem Deus no coração (a conclusão era evasiva e rasa como um produto de R$ 1,99). Ele é bom. Vocês têm sorte de ter um filho assim. O problema não é espiritual. Vocês já o levaram no médico?
- Ainda falta o psicólogo – pensou alto o pai.
Na sala do psicólogo (pernas cruzadas, dedo nas têmporas, expressão de auto-suficiência, uma quase piedade com seus pacientes e pensou - Que psicólogo era aquele? Será que ele se achava capaz de enganar tudo e todos?) um vazio e silêncio imenso pairavam no ar. Intrigado com tamanha serenidade, o homem fazia algumas perguntas para Dudu.
- Como é o seu dia-a-dia?
- Você está namorando?
- O que você gosta de fazer?
- Tem muitos amigos?
- Aonde gosta de ir?
As respostas eram absolutamente pensadas. A relação com o psicólogo era manipulada. Naquele tipo de situação, o DEFENSOR, entrava em ação sob outra perspectiva, com outras cartadas e atitudes. Ele respondia tudo como se sua vida fosse absolutamente normal e não houvesse equívocos. A expressão tranqüila não entregava mentiras, porque Dudu não mentia, ele só omitia, distorcia um pouco e floreava de acordo com suas necessidades.
Do lado de fora o diagnóstico era o mesmo.
- O filho de vocês tem uma boa cabeça, emocionalmente tranqüilo, um pouco sonhador, mas quem não é? Seus olhos ficam dispersos quando fala. Tentem estar mais presentes, só isso.
- Não somos nós quem deveria estar mais presente – se mordeu por dentro a mãe.
- Onde está ele agora? – perguntou aflito a si mesmo o pai.
Pai e mãe se olhavam como quem buscava explicações. Pareciam querer uma situação séria, pareciam querer chorar por algo extremamente exagerado e criado para confortá-los, mas as coisas não funcionavam assim.
O mundo girava, as crianças cresciam, os adultos envelheciam, ruas eram fechadas, outras eram abertas, e mesmo Dudu acompanhando tudo isso, lá dentro, no seu coração, nada parecia mudar.
Seu ritmo de vida era mais devagar, quase em câmara lenta. Olhava-se no espelho e já começava a ver uma barba crescendo. A fase adulta entrava sem pedir a mínima licença.
Ele já estava com 25 anos e o mesmo rosto solitário continuava ali, na frente da TV, esperando, esperando, esperando, uma coca, um hambúrguer, um olhar, que o mundo viesse bater a sua porta. Pedindo, implorando sua nobre presença entre os mortais.
Seus pés viviam longe do chão, perto das nuvens, distante do mundo real. Talvez por isso ao ver filmes de heróis, idealistas, sonhadores, achasse que um dia pudesse ser um deles. Ter a missão de realizar algo importante perante a sociedade, perante sua amada. Ele queria ser visto, ouvido, venerado.
Um dia assistindo a sessão da tarde, cujo filme era “TOP GUN” com Tom Cruise, se imaginou na pele daquele que voava e deixava os corações femininos rolando pelo chão.
A menina mais bonita tinha dado lugar ao melhor emprego de todo o mundo. Piloto de avião como aquele personagem tão sedutor. Foi até o espelho, penteou o cabelo, passou gel, fez algumas poses de galã e pensou.
- Um dia... Não muito longe...
Sorria e caminhava com certo charme até sentar despretensiosamente de frente para a caixa de sonhos, a televisão.
Seu pai já pronto para dormir questionava.
- Filho, porque você não sai um pouco da frente dessa televisão?
- Pai... Com que roupa eu vou? São sempre as mesmas! Hoje estou com aquela tal de preguiça! E vai cuidar da sua vida! Pára de pegar no meu pé!
Embora fosse sempre tão conformado em alguns momentos como aquele, podia-se ver em Dudu um Q de revolta com as pessoas que insistiam em mudá-lo.
Parecia que as esperanças iam se esvaindo como água descendo pelo ralo. Ele parecia não perceber ou de repente não queria simplesmente.
Ele não saía de casa, não tinha amigos. A escola que ele pouco freqüentou ficou perdida lá atrás. Seus pais viam tudo isso e o que antes não tinham feito de verdade, agora é que não poderiam fazer.
Tinha virado em corpo um homem, mas sua cabeça parecia estar presa nos 10 anos, quando era apenas um garoto cheio de sonhos e ilusões.
Ali não muito longe, na vizinhança, Joaninha tocava o horror com seu gênio forte, fazendo e acontecendo diante dos olhos da samambaia verdinha. Apesar de ser anti-social, Joaninha fazia tudo e mais um pouco, inglês, natação, teatro, artesanato e ainda ia viajar. Seus pais não conseguiam controlar o ímpeto da filha, ímpeto esse incapaz de contagiar Dudu.
Joaninha estava namorando um rapaz bonzinho até demais, estava na faculdade cursando jornalismo, era culta na mesma proporção que era birrenta.
Dudu não fazia tanta coisa, aliás, não fazia nada, continuava assistindo seus filmes de realismo fantástico como quem buscava respostas ocultas para seus anseios.
- Esse menino não cresceu, continua a mesma criança de 15 anos atrás – concluíam os pais.
E com a língua mais afiada do mundo devolvia num misto de ingenuidade e ironia.
- Cresci sim e muito. Tenho 1,80m. Sou maior que vocês.
Era impossível não rir com a graça e simpatia do moleque, embora o quadro fosse grave. Quando criança era pequenino como um robbit de um dos filmes do Senhor dos Anéis, cabia num bolso, até mesmo no coração de alguém. Hoje já era grande, grande até demais, mas todo o porte físico contrastava com uma cabeça que teimava em permanecer no mesmo lugar.
Não adiantava, ele não queria enxergar as coisas. O sonho de alguém bater em sua porta e chamá-lo para ser piloto de avião alimentava ainda mais a sua espera.
A cena estava pronta na sua cabeça. Sentado no sofá, de repente um toc toc na porta, uma música de fundo como aquelas de filme de suspense, o caminhar lento, passo após passo, olhar tenso e cheio de expectativa, as mãos coçando diante do incerto, a respiração ofegante.
Ao abrir da porta, o carteiro.
- Correspondência para sua mãe. Tenho te visto pouco na rua. Está doente Dudu?
- Não. Estou bem. Obrigado.
A fantasia nem sempre casava com a realidade, mas ele acreditava como mesmo dizia, em algo maior, em caminhos certos por linhas ainda que tortas.
Em determinados momentos, uma enxurrada de críticas chegava aos seus ouvidos.
- blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá
blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá
blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá
blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá
blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá
blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá
blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá!!!
Sempre a mesma ladainha, o mesmo discurso no mesmo tom, com as mesmas intenções que pareciam aborrecer profundamente Dudu.
Simbolicamente falando, ele parecia um velho carro emperrado, enquanto todo mundo tentava fazê-lo funcionar a fórceps.
Não importava o que os outros dissessem, lá no fundo ele sabia que tudo ia dar certo, mesmo quando chegava diante do espelho e via uma expressão cansada e uma grande barba se formando. O tempo estava passando.
O ciclo da vida mais uma vez agia de forma implacável. Os rostos mudavam numa grande ciranda, o mundo mudava, porque assim tinha que ser, mas Dudu parecia parado no tempo, como congelado pelo feitiço de algum mago dos filmes de Harry Porter. As coisas só aconteciam a sua volta, pois lá dentro somente uma palavra reinava. Esperar.
A vizinhança era só novidade, Joaninha mesmo com seu gênio ruim, tinha conseguido se casar (seus pais tinham comparecido ao casamento um pouco contrariados em virtude da escolha alternativa da filha. Joaninha era muito anti-social e mandona, ela tinha feito questão de casar na praia em pleno luar, com uma enorme fogueira e amigos com violões animando a noite com Legião Urbana), a samambaia verdinha há tempos morrera e o interesse tinha que ser transferido para outra coisa. Na casa de Dudu seus pais demonstravam um cansaço de guerreiros batidos durante a batalha.
- Você imaginou que iria ser assim com ele?
- Não, mas podia ter sido pior.
- Por que você acha isso?
- Veja, nosso filho não tem ambições, ele tem um filme perfeito da sua própria vida na cabeça. Ele não conseguiria sobreviver sozinho, conseguiria?
- Acho que não.
- Eu tenho certeza que não. Ele não tem a coragem necessária aos sobreviventes, e se a tem, está guardada a sete chaves em um baú num buraco bem fundo.
- Mas nós podemos ajudá-lo.
- Esse é o grande segredo da vida. Um dia os pais precisam deixar os filhotes caminharem com as próprias pernas e é nesse dia que o filhote descobre o quanto consegue permanecer vivo.
- Não estamos sendo duros com ele?
- A vida não foi com a gente? E quando não tivermos mais aqui pra proteger nosso filho? O que acontecerá? Um apocalipse dentro dele? Talvez estejamos errados, mas esse é o nosso papel. Deixá-lo sofrer da forma mais justa possível. Não podemos viver por ele.
40 anos, essa era a idade do eterno DEFENSOR. Chamá-lo de Eduardo?
- Eduardo! – gritavam para o filho.
Era briga na certa. Mesmo com aparência de homem maduro, com seus cabelos grisalhos, ele fazia questão de ser chamado de Dudu, mesmo não sendo mais uma criança, embora se comportasse como tal em cenas bizarras e improváveis. Os desenhos da televisão ainda continuavam sendo sua paixão.
- Ele cresceu não é mesmo? – sussurra a tevê.
- Ele mudou muito! Olha só esses cabelos grisalhos! – respondia pra si mesma.
- A impressão que eu tenho é que fomos responsáveis por metade dessas mexas!
- Nós não o obrigamos a fazer nada!
- Eu sei, ele é o que é porque ele quis assim!
Quantas pessoas no bairro, na cidade, no mundo, já tinham perdido de alguma forma suas identidades com seus nomes verdadeiros esquecidos e substituídos por apelidos registrados ao vento. E muitos desses apelidos de certa forma influenciavam seus detentores na personalidade e nas ações que tomariam dali para frente.
Apelidos no diminutivo que levariam seus donos a desenvolverem posturas um tanto quanto passivas, ou apelidos no aumentativo que fariam seus corpos assumirem personalidades arrogantes, imperativas e autoritárias.
É claro que pra toda regra tinha exceções e com Eduardo era assim. Seu apelido não era nem de menos, nem de mais, era só um indicativo de que ele talvez nunca fosse crescer. Dudu não era dominado nem dominador. Era apenas um ser humano que pensava ainda viver na Terra do Nunca. Aos seus olhos o relógio do tempo estava descansando na barriga do crocodilo Tic Tac.
A TV permanecia ali lhe fazendo companhia, e ele permanecia ali esperando não mais pelo emprego de piloto de avião, mas sim por sonhos, sonhos que nunca conseguiu realizar.
Havia uma pequena listinha de tudo que ele desejava. À medida que ia conseguindo, ia riscando cada item com um lápis todo gasto. Ainda não havia riscos ali.
O lugar onde todos esses sonhos permaneciam adormecidos era um grande balão que saía da sua cabeça, esse balão o acompanhava onde quer que ele fosse. Era um balão de pensamento, mas parecia realmente um balão de verdade preso por um fio junto ao seu pescoço, concretizando suas vontades apenas no campo das idéias. Nunca chegavam a se materializar.
Eram tantas vontades que mal cabiam num só balão e de repente, mais que de repente transitava pra cima e pra baixo com muitos balões amarrados em seus pensamentos. Passado, presente e futuro misturavam-se sem ordem e preferência. Ele apenas queria e isso já era o suficiente.
Dudu já tinha desejado ter super poderes de verdade, como um X-Man, Super-Homem, Quarteto Fantástico, Homem Aranha, já quis ser veterinário e cuidar de todos os animais, quis fazer todos os esportes e ser um verdadeiro campeão olímpico, já quis plantar uma árvore, ter sua própria horta, pensou em escrever um livro, ganhar o prêmio Nobel, já quis fazer um filme e levar um Oscar, ficou imaginando com que mulher iria se casar e formar uma linda família, tentou adivinhar com que letra começaria seu nome e qual seria a cor dos seus olhos, pensou em morrer cedo, e como seria a morte tardia, desejou poder ver espíritos e falar com eles se realmente existissem, conheceu mentalmente cada país de cada continente desse vasto mundo, criou malas irreais com presentes irreais e fotos que nunca existiram mas que ele tanto queria que sim, quis ter uma banda de rock e ser aclamado por milhões de pessoas, sonhou em ser o menino mais popular da escola, ter todas aos seus pés, quis ganhar na loteria, ter muito dinheiro e comprar tudo para seus pais, poder dar um pouco de dinheiro para cada parente e amigo, desejou ter talento para cada coisa na vida, fazer de tudo um pouco, ser de tudo um pouco, realmente ser feliz como realmente não era, pediu em pensamento pra ser bonito, ter um corpo bonito, ser inteligente, ser bom e carismático, pensou em tantas coisas durante sua vida, principalmente quando adulto que podia quase sentir o gosto dessas realizações, ele quase podia sentir, mas não sentia. Era tudo ilusão. E tudo continuava igual. E o igual era tão chato.
Talvez pela idade do filho, talvez por um cansaço natural da vida, os pais já não reclamavam mais, só diziam.
- Esse menino... (Já haviam se rendido, mesmo Dudu sendo um homem, continuavam a chamá-lo de menino)
A continuação dessa frase era temida por eles. Era como se ao dizer coisas não tão bonitas do filho, fosse ser um sinal de mau agouro, maldição, praga, concretização de pensamentos indevidos. Todos sabiam sobre a velha força das palavras e por isso tentavam, se esforçavam ao máximo em amenizar o discurso a respeito da situação vivida por todos ali.
- ... um dia vai se arrepender de ter esperado demais.
Às vezes era impossível amenizar na tentativa de sacudir o mundo do filho.
- E o que tem demais eu esperar?
- Não tem nada...
Todos pensavam e todos sabiam que um dia, ele iria sofrer por conta dessa espera toda.
O mundo tinha sofrido severas transformações na política, cultura, culinária, esporte, ciência, moda e tecnologia. Velhas tendências haviam sido abandonadas e novidades de um esperançoso século XXI vinham à tona com força total.
A forma de conduzir o ambiente social e familiar também sofrera fortes influências dessas novas tendências. As pessoas começavam a se isolar, a conversar menos, a fazer as refeições juntas cada vez menos. O computador e a televisão mostravam-se como divisores de água nos relacionamentos entre as pessoas e esse fenômeno chamado de massificação e isolamento espontâneo ocorria lentamente e malignamente com o homem Dudu.
Sem amigos, sem esposa, sem filhos, sem emprego, com apenas uma televisão e uma esperança. Ele tinha fé em alguma coisa. Sabia que alguma coisa não iria deixá-lo sozinho. Sabia que seus sonhos um dia iriam chegar. Só não sabia quando. E isso às vezes o deixava triste. Era nessas horas que ele tinha em sua cabeça, relâmpagos de verdadeira lucidez, mas como os originais, cruzavam o céu e desapareciam na mesma velocidade que tinham aparecido.
Desde pequeno Dudu acreditava que algo o guardava 24h por dia, sem ao menos uma horinha de descanso e folga. Com ele o menino conversava através de sussurros pra que ninguém ouvisse e brigasse. Muitos chamariam de amigo imaginário, talvez uma loucura infantil, acontece que essa relação foi se desenvolvendo com o passar do tempo até os dias de hoje, numa crença e dependência que nem o homem-menino conseguia explicar.
É verdade que seu “amigo imaginário” não tinha tido trabalho algum, uma vez que Dudu sempre fora uma criança, jovem e adulto absolutamente tranqüilo, sem grandes e fortes emoções. Não se envolveu com drogas, com o crime ou com qualquer outra atividade ilícita e perigosa.
Do outro lado seu “amigo” fazia um esforço descomunal pra permanecer por perto. Seus superiores questionavam o porquê de tamanha preocupação para com um ser que não se esforçava nem um pouco em crescer como pessoa. A resposta era simples.
- Ele é um bom menino, uma boa pessoa, pra mim isso basta e pra vocês deveria bastar.
E realmente bastava. Estavam todos imersos em seus próprios egoísmos que se esqueciam que um dia tinham sido humanos e um dia precisaram de ajuda também.
E ao contrário do mundo astral onde tudo passava num piscar de olhos, no mundo real uma vida inteira tinha se passado. As pessoas se realizavam no trabalho, no amor e Dudu só esperava sonhos impossíveis. A cidade mudava o seu retrato, e o menino-homem (muitas vezes a ordem do que regia a personalidade dele alternava e misturava-se como num liquidificador pessoal) também, mas o seu retrato era um retrato sem cor, sem graça, sem vida. Sua casa, seu quarto, suas roupas começavam a ter um tom de sépia, desbotado pelo tempo. Ele já se mostrava cansado e o cansaço sempre trazia velhos temores, entre eles o de ficar sozinho. A solidão era considerada um grande mal do século.
Em algum lugar Joaninha tinha se tornado dona de uma empresa de moda, autoritária, arrogante, rígida e inflexível ao melhor estilo “O Diabo Veste Prada”, com direito a interpretações de uma vida real, muito melhor que o de Meryl Streep e seu cabelo branquinho como a neve.
Sua vida era uma revista colorida com os melhores vestidos do mundo, bem ao contrário de Dudu que sempre vislumbrava metas, mas sempre morria na praia, em expectativas frágeis e insólitas.
Joana e Eduardo refletiam o contraste entre o bem e o mal, entre a pobreza e a riqueza, entre o poder e o querer, entre o sonho e a realidade. Eles representavam a desigualdade que habitava o mundo sem dó nem piedade, embora tivessem algo em comum. Eram sozinhos mesmo cercados de pessoas.

CONTINUA
Kadu Leayza
Enviado por Kadu Leayza em 15/07/2015
Código do texto: T5311855
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