O MENINO QUE ESPERAVA DEMAIS - PARTE I
 
Desde o início dos tempos, o homem foi jogado aos leões para caçar, sobreviver e se superar. Enquanto batalhas épicas eram realizadas, suas mulheres os esperavam em suas casas cuidando dos filhos, preparando o alimento que sobrara, rezando para que voltassem sãos e salvos.
A dinâmica dos sexos havia sido traçada. Homens iam à luta e mulheres ficavam a esperar. Séculos depois, com o quadro social do mundo vertiginosamente alterado e trocado, uma pergunta grita aos quatro ventos.
- E se o homem desistisse de correr atrás de seus sonhos e ideais?
Talvez mais uma pergunta coubesse nesse contexto.
- Alguém viria ao se encontro para socorrê-lo?
Silêncio.
A porta de entrada do hospital abriu devagar, revelando um homem carregando numa cadeira de rodas, sua mulher grávida com respiração pesada e expressão de dor. À medida que a recepção ficava mais perto, um rastro de sangue que vinha debaixo da cadeira de rodas ia ficando para trás. Por um instante homem e mulher ficaram ali parados olhando para a trilha em vermelho. A mão da mulher por baixo do vestido se banhava por inteira, liberando quase que instantaneamente um grito ferido e contínuo.
De repente acordou. Estava ainda no quarto quando adormecera. Olhou para a camisa e nela podia identificar uma grande mancha de baba ressecada. A sua frente, histérica, estava sua mulher com sua enorme barriga soltando gritos lancinantes. Foi ao seu encontro como que pedindo desculpas por ter caído no sono.
Pelos corredores da maternidade ouvia-se apenas um grito monstruoso de quase tortura medieval, e a esse urro misturavam-se vozes em burburinhos entoando uma única lamentação.
- Um filho não deveria deixar uma mãe esperando tanto tempo. Parece um capricho, uma birra. E ele ainda nem nasceu.
Nenhum outro assunto ou ação tinha espaço nos corredores, quartos, salas de espera, que não fosse o desafio que a criança ainda não nascida impunha a todos.
Podia-se ver senhoras falando com crianças como se ali naquele momento estivesse acontecendo uma pequena contação de histórias fantásticas. Casais conversando ao pé do ouvido como se ali estivesse ocorrendo mais uma discussão de relação, mas não era nada, nada daquilo, era uma surpreendente vontade de fazer aquilo, nada. Era uma vontade vinda de dentro daquela sofredora mulher por meio de um bebê absolutamente irredutível.
No quarto a mãe pingando em bicas pela testa mudava a expressão de dor a cada tentativa de parir, mas seu esforço não era o suficiente. E embora a frustração fosse gritante, a teimosia respondia ao coro que vinha de fora.
- Ele vai sair! Ele vai sair! Por bem ou por mal! Dessa vez ele sai!
Em segundos o quarto estava a gargalhadas e por mais que a situação se mostrasse cômica, a postura do médico era de precaução.
- Não adianta. Ele não quer sair. Parece estar esperando ser retirado. Que dia é hoje mesmo?
- 12 de abril - Alguém respondeu.
- Ele é um ariano, um teimoso – Devolveu o médico.
Não havia mais dúvidas. A criança não iria sair por livre espontânea vontade. Haveria de ser por cesariana. A expressão da mãe não era mais de dor, era de conformismo, de uma imensa e inacreditável decepção.
Passados preocupantes dias, uma vez que era necessário esperar a hora certa de tirar o filho (a), tudo estava preparado para o esperado rompimento do casulo, apelido dado pelas vozes que vinham dos corredores da maternidade.
No dia 17 de abril o casulo finalmente estava sendo rompido. A criança um menino, continuava sendo ariano e teimoso, e aquele simbólico casulo partido não seria o último reduto de seu filho, não seria a última bolha de proteção.
A porta de um dos corredores abriu como que cuspindo o homem e sua euforia.
- Nasceu! É um menino! – Comedido soltou aos risos.
Não se via nenhuma comemoração evidente, apenas sorrisos discretos, apertos de mãos e punhos cerrados. Do lado de fora do hospital a soltura de fogos de artifícios era algo evidente e incontrolável. Era uma justa comemoração ao nascimento do impossível.
Neste mesmo dia quando o casulo rompera, outra grávida havia dado entrada no hospital e ao contrário do atual quadro de espera, o que se podia ver na mais nova mãe era uma situação muito diferente, uma adrenalina fora do normal e de qualquer contexto.
Ela não chegara numa cadeira de rodas, mas andando com uma vitalidade inverossímil. Sua voz ecoava por todo o hospital, seus gritos feriam todos os ouvidos presentes. Podiam-se sentir tímpanos sendo rompidos com fúria.
- Minha filha não quer esperar! Ela quer nascer! Pelo amor de deus! Eu preciso de um médico! Minha barriga vai explodir!
Imediatamente todos se colocavam a disposição da grávida que continuava urrando. E como numa cena do teatro do absurdo, não tinha dado tempo de chegar até a sala de parto. A cabeça de sua filha já estava quase toda pra fora, segundos depois de ser colocada numa cadeira de rodas.
A imagem era até certo ponto assustadora. Muito sangue, olhares esbugalhados, expressões céticas do que ali estava sendo presenciado, mas assim como Eduardo, Joana vinha ao mundo para simplesmente fazer a diferença.
Em um quarto percebia-se um silêncio angelical, no outro um choro agudo e estridente que não deixava ninguém por dias dormir. Era como se a criança tivesse sempre fome, sono, carente de colo e carinho. Era como se Joana ao contrário de Eduardo sempre quisesse mais.
Por conta do barulho Joana tinha sido convidada a se retirar do hospital (a comemoração com os fogos de artifícios tinha sido tão intensa quanto no nascimento do menino que não cansava de esperar), deixando toda a atenção para o pequeno Eduardo, que em pouco tempo tornara-se uma celebridade, não dessas de capa de revista, de jornal ou reality shows, mas sim uma excentricidade daquele pequeno mundo, moldado pela boca daquelas pessoas. Um capricho das estrelas, uma lição do universo.
A façanha do pequeno Eduardo correu de casa em casa apenas por alguns dias, pois toda novidade tinha seu prazo de validade, e Eduardo era apenas a novidade do momento. As pessoas tinham seus compromissos, seus problemas, seus próprios sonhos para realizar.
Ao menino de olhos negros como o cosmos e expressão contemplativa, estava destinada uma casa, pais que o amavam, uma vida praticamente perfeita, sem esforços e sem frustrações.
E com pouco tempo de vida, Eduardo tornara-se Dudu, uma criança sem consciência, mas com uma trilha de sonhos já traçada no destino, no seu interior.
Nos primeiros dias Dudu transitava de colo em colo sem escalas em Moscou. Como ainda era um ser frágil, suas ações eram as ações de seus pais, suas vontades eram involuntárias, condicionadas por seu cerebelo, sua caixa de comandos pré-determinados.
Tudo era tão normal e marcado como numa peça de teatro, que a personalidade peculiar de Dudu ainda não se sobressaía perante a rotina da família e da vizinhança. Sua presença passava invisível lado a lado de pequenos detalhes perdidos ao olhar humano.
Nos primeiros meses o que deveria ser uma vida de choros e noites em claro, tornara-se um mar de tranqüilidade jamais imaginado e cultivado a cada pequeno gesto, a cada nova e surpreendente cartada de Dudu.
A cada dia todos esperavam ansiosamente por algo que viesse tumultuar suas vidas como se aquilo fosse a esperança do real nascimento de uma chama.
Mas nada acontecia, não ocorriam impactos, terremotos, maremotos, incêndios, nada, talvez o fim do mundo sucumbisse a uma calmaria que emanava alucinantemente do menino.
Sua expressão transmitia paz, uma quase palidez imutável. Parecia que ele estava sempre à espera de alguma coisa. Do carinho perfeito, da água do banho no ponto certo, da papinha numa dose exata, da cama mais que fofinha, da virada cronometrada do dia para noite. A impressão que todos tinham é que Dudu não se contentava com pouco, mas também não reivindicava por mais. Era como se deixasse tudo nas mãos de um ser maior, mas ele não tinha ainda consciência de que ser era aquele, tão pouco sobre sua existência.
E ao contrário da maioria das crianças, seu desenvolvimento e crescimento não foram recheados de descobertas e acontecimentos fantásticos. Tinha tudo a sua volta, tudo o que um piá de prédio poderia ter a sua disposição e talvez por isso não houvesse a necessidade de sair à caça.
Nas brincadeiras de playground, o menino não quebrava pernas ou braços, não ralava joelhos porque simplesmente não havia brincadeiras, tão pouco, estripulias.
Ali perto, uma vizinha bem diferente tomava corpo. Era Joaninha, menina de personalidade oposta a de Dudu. No dia-a-dia da menina sempre algo novo e improvável acontecia. Seus pais sempre tinham o que contar para os parentes e vizinhança, no mesmo tom de reclamação.
Algum garoto com o dente quebrado, algum bicho desaparecido, brinquedos no alto do telhado, outras crianças correndo para seus pais com os rostos inundados de lágrimas.
Fisicamente Dudu e Joaninha revelavam suas diferenças, diferenças que desenhavam com exatidão suas respectivas personalidades e posturas diante da sociedade.
Ele era moreno claro, cabelos curtos pretos, olhos fortes e tristes ao mesmo tempo, boca carnuda, sorriso misterioso e bonito, corpo frágil como se fosse quebrar a qualquer instante, usava sempre as mesmas roupas, porque não tinha motivo pra comprar novas, elas sempre estavam bem conservadas.
Ela era morena clara, cabelos castanhos encaracolados na altura dos ombros, olhar bravo, expressão fechada pra quem quer que fosse, curiosa, geniosa, encrenqueira, querendo tudo pra ontem e com seu círculo de amizades restrito a uma samambaia, sua melhor amiga. Suas conversas eram unilaterais. Joaninha falava, falava, falava e a samambaia verdinha somente escutava sem retrucar. Seu corpo era encorpadinho, uma pequena tora ambulante capaz de atropelar tudo que passasse pela sua frente. Suas roupas nunca eram as mesmas, porque nenhuma sobrevivia mais que poucos dias.
A velocidade com que as coisas aconteciam era muito diferente em ambos os apartamentos. Era um equilíbrio tão inesperado e engraçado, que poderia servir para um filme qualquer, uma comédia romântica sobre opostos, encontros e desencontros.
Dudu se mostrava contemplativo com a vida, com seus medos e anseios. Ele era um rio cursando em plena primavera, tranqüilo, sem pressa, um risco calculado em meio a tempos de tormenta.
Alguns anos já haviam se passado, e o piá de prédio tornara-se mais um cidadão massificado e engolido pela tecnologia, pela televisão. Ela era sua ligação com o mundo, numa transição de imagens que ora passavam devagar e ora rapidamente. Era na frente dela que ele, o menino Dudu, se encontrava sentado com um controle na mão e olhos hipnotizados pela tela hiper colorida. Cores que saltavam da grande caixa e passeavam pelos olhos negros como o cosmos.
- Olha que menino bonito!
- Você viu o jeito que ele olha pra gente?
- Ele está olhando só pra mim!
- É pra mim que ele está olhando!
- Pra mim!
- Pra mim!
- Pra mim! Hum, mas nós somos uma só bela e encantadora criatura! Vamos tentar falar com ele?
- Ei menino!
- Ô moleque!
Ao contrário do que imaginamos, os objetos inanimados possuem vida, e durante uma desatenção nossa, seus corpos caminham, seus rostos se revelam, suas vozes confabulam. Esses seres são vaidosos, carentes de cuidado, de atenção, de carinho.
Frente a sua televisão, Dudu mostrava uma energia, voracidade e flexibilidade incríveis na relação corpo-sofá e o que esse objeto podia lhe proporcionar de aconchego. Em determinados momentos a impressão que se tinha era que o sofá podia ser controlado pelo menino numa mistura quase metamórfica.
Ali, protegido em sua casa, estava ele, um menino cheio de sonhos e repleto de ilusões. Achando que tudo aconteceria exatamente como em sua mente.
Chegava o dia, caía a noite, os passarinhos cantavam alegremente e ali estava ele, assistindo toneladas de desenhos, desejando tudo e evitando o mundo, se protegendo daquilo que acreditava ser seu inimigo.
Ora criaturas imensas, com o triplo de seu tamanho, os adultos, com poderes capazes de com apenas algumas palavras o deixarem sozinho no quarto, ora criaturas pequenas como ele, que se usavam de um único artifício, chorar e xingar até conseguir o desejado.
A vida de Dudu, um garoto de apenas 9 anos era assim, pelo menos na cabeça dele, uma interminável luta do DEFENSOR, super herói especialmente criado por ele, contra a conspiração mundial dos seres gigantes e agregados.
O DEFENSOR nasceu durante uma tarde de castigo. Sentado num cantinho do seu quarto com o ventilador ligado refrescando todo o ambiente, Dudu imaginava seus “inimigos” se reunindo em alguma cidadela do mal ou sala da injustiça, bolando planos pra enfraquecê-lo. Ele tinha mais medo dos do seu tamanho, porque dos gigantes é que não tinha. Afinal, aonde seus olhos não conseguiam alcançar, seu coração não podia temer.
A mãe (ela pra Dudu era um par de pernas ambulantes (seu campo de visão não chegava tão alto assim) calçando um par de sandálias e com suas saias passando um pouco dos joelhos) que sempre ficava em casa enquanto o marido (ele pra Dudu era também um par de pernas vestidas com calça social e um par de sapatos pretos) se matava de trabalhar, não se conformava com a falta de atitude do filho perante o mundo.
- Já para o quarto! Não sai de lá enquanto não chorar, espernear, ou quebrar alguma coisa!
- Tá bom mãe!
No quarto Dudu parecia disposto a atender ao pedido da mãe, mas não exatamente de acordo com as palavras proferidas. Ali surgia uma forma de se defender dos adultos, das crianças e do que viesse pela frente.
Imaginou-se num filme do Homem-Aranha, com os créditos iniciais da Marvel, seus conflitos familiares, o acaso agindo implacavelmente e algo singelo lhe servindo de inspiração para o seu uniforme. Como se auto-intitularia de Defensor, pensou que sua roupa teria que ser uma boa proteção para o seu ainda frágil corpo.
Passou a tarde toda revirando seu quarto, correndo invisível pela casa, buscando todos os tipos de artifícios materiais e confeccionando uma fantasia (a intenção era ser parecida com uma armadura do filme Gladiador, com todo o seu glamour, imponência e detalhes ricos, dando certo status e pregando respeito àquela figura) tosca com tudo que chegasse aos seus olhos.
Ao final da transformação, Dudu parecia mais uma alegoria de carnaval ambulante, com signos aos montes e significados sem alguma relevância ou nexo. Nota zero.
Era preciso testar a funcionalidade do DEFENSOR, testar se haveria algum super poder a ser descoberto. Ao sair do quarto de forma tranqüila e alegórica, Dudu podia sentir a fúria de sua mãe, fúria essa anulada instantaneamente com uma única frase vinda do menino.
- EU NÃO QUERO!
Por alguns instantes a mãe ficou ali parada atônita sem respirar, boquiaberta com o grito do filho. Era um misto de admiração e susto com o que acabara de ouvir.
Tinha dado certo. O DEFENSOR tinha um único super poder, o poder da negação. Ele tinha a capacidade de fazer qualquer um se afastar. Isso possibilitava que o garoto pudesse fugir para o seu mundo quase autista, um mundo onde não havia diálogo, era uma perturbante solidão.
Os pais, é claro não entendiam o lado de Dudu, assim como Dudu não entendia a preocupação dos pais. Na vida era preciso correr sempre atrás de alguma coisa, mesmo não sabendo se bom ou ruim. Era preciso correr.
Mas com ele as coisas não funcionavam assim, como na velocidade do mundo moderno. As coisas demoravam tal qual uma carta por pombo correio, a travessia de um continente para o outro como antigamente, as horas de um dia e as eras de um tempo.
Com o passar do tempo e o garoto completando seus 10 anos, começava a ficar claro na cabeça de todos, quem seria Dudu.
Não o DEFENSOR, como ele se auto-intitulava, porque para um menino não existia perigo suficiente para enfrentar, mas sim um menino quase sempre triste, solitário, quieto e, sobretudo que esperava pequenos milagres acontecerem num passe de mágica.
Certo dia, Dudu encontrava-se como de costume na frente da televisão (uma enorme televisão de tela plana, caixas de som em volta, uma estrutura cinematográfica ao bel prazer do menino), assistindo a nova versão da “A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE” de Tim Burton. Seus olhos brilhavam com tantas cores, doces e fantasia que emanavam da tela.
Mal ele sabia que aquilo que estava sentindo, era no fundo uma artimanha de uma criatura muito vaidosa, a própria televisão, que conversava consigo mesma misturando-se ao som vindo das caixas pra que suas palavras não fossem descobertas.
- Não pensei que fosse tão fácil!
- Toda criança gosta do surreal! Nós só precisamos alimentar!
- E nunca mais ficaremos sozinhas?
- Nunca mais!
As risadas que misturavam alegria e uma inocente maldade não podiam ser escutadas, pois Dudu estava imerso em imagens inventadas pelos gigantes.
Era um mundo absolutamente fantástico, mundo esse cortado pela falta de luz que pairava sobre o bairro.
Em instantes sua morada já abrigava algumas velas. Lá fora, uma chuva torrencial castigava a cidade. A água escorria pela janela, desenhando figuras estranhas que juntamente com as velas, os trovões e a pouca luz, davam um ar de filme de terror. Daqueles impossíveis de escapar e cujo serial killer poderia ser Jason Voorhees, Michael Myers ou Freddy Krueger.
Sentado junto à janela estava agora Dudu, contemplando os caminhos de água no vidro que separava o mundo externo do interno. As nuvens escuras choravam ao mesmo tempo litros de águas que beijavam chãos, telhados e plantas. Na cabeça do menino, as imagens do filme marcavam com força e devoção. Como que numa química perfeita, esses elementos, reais e imaginários, fundiam-se aguçando ainda mais os “delírios” de Dudu.
Nos dias subseqüentes já não se vestia mais de DEFENSOR, isso já havia perdido a graça. A televisão companheira fiel e diária tinha que se contentar com um pouco de solidão, mesmo sabendo que o menino iria voltar mais cedo ou mais tarde para ela.
E quando não estava na escola, na casa da avó ou em algum outro lugar costumeiro, Dudu podia ser encontrado sentado ao lado da janela da sala, olhando fixamente para o céu, a espera de alguma coisa impossível, a espera de uma mágica, de um milagre, de um doce milagre, que para ele não era milagre algum, era uma certeza que viria em breve, fosse por e-mail ou sedex.
Seus pais se questionavam.
- O que ele tanto espera?
- Parece esperar que algo caia de repente do céu, mas o que?
- A grande chuva de chocolate! - respondia para os pais num tom sereno e de esperança.
Essa chuva tinha forma, consistência, cheiro, gosto e dimensão. Dudu conseguia visualizar cada detalhe, cada parte que se desenhava em sua mente. Uma chuva marrom como o mais delicioso chocolate caindo aos montes, prédios inteiros cobertos por intermináveis camadas, bueiros entupidos, a fome sendo extinta de forma cremosa e suculenta.
Como na grande chuva de sapos do filme “MAGNÓLIA” que representava o fim para um novo começo, milhões de confetes misturavam-se a chuva simbolizando talvez o exagero, a gula, o castigo pra quem teimava em sonhar sem limites, sem sensatez. Mas em sonhos, pelo menos nos do garoto não existia tempo ruim, nem negatividade. A chuva de chocolate era uma celebração a perfeição da vida e de tudo que realmente podia acontecer.
Todo dia junto ao seu corpo, Dudu deixava a postos baldes e baldes de limpeza, panelas, recipientes, qualquer coisa que coubesse algo líquido, qualquer objeto disponível dentro de casa. O resultado não poderia ser outro. Sua mãe ficava louca com o caos que se instalava ali.
Mas do mesmo tamanho que era exagerado o seu plano, era a frustração que aos poucos inundava seu peito, coração. Sonhadores costumam não aprender com os erros, por que sonhar é uma necessidade de ir à busca de algo melhor, sonhar é criar um mundo mental perfeito, com cores e final feliz. Para sonhadores sonhar é viver uma realidade que ainda está pra acontecer.
O tempo foi passando, e Dudu começou a crescer. A chuva de chocolate (essa que nunca aconteceu de verdade), algo normal no sonho de qualquer criança, foi dando lugar a outras prioridades, fantasias da puberdade, da adolescência.
Ao passar para adolescência seu corpo esticara, era agora um menino alto e magricela onde espinhas apareciam como um formigueiro em erupção e os hormônios se revelavam romanticamente. Por anos especificamente, cadernos, lápis e poesia tornaram-se obsessões em sua vida.
Dudu escrevia para alguém que nunca se revelava. Seus pais perguntavam sempre a mesma coisa e obtinham sempre a mesma resposta.
- Pra quem você está escrevendo filho?
- É poesia?
- Não me perturbem! Está vindo a inspiração!
E punha-se a escrever quase que em transe. Seus cadernos formavam pilhas e pilhas. Seu quarto já estava lotado, sem espaço, e olha que ele era tão pequeno, que mal cabia o menino. Suas pernas começavam a ficar pra fora da cama e dormia abraçado a palavras, sonhando rimas, desejando um único certo alguém.
O despertador tocava sempre às 6 da manhã, anunciando a mesma rotina. Tomar banho, engolir o café, escovar os dentes, ajeitar a mochila e ir para a escola. E o que para muitos era um sacrifício, como para Joaninha (ela odiava a escola, assim como odiava todas as coisas na sua vida, talvez a única coisa que tivesse sua atenção e amor de verdade fosse a samambaia verdinha), por exemplo, para Dudu era um enorme prazer. Não pela fome de aprender, nem pela fome em si, tão pouco por amigos e amigas, até porque não os tinha.
Os olhos claros, o rosto branquinho, o sorriso maroto, o jeito de menina inteligente, o uniforme passadinho e cheiroso, o rosa dando o tom do material escolar, a impossibilidade de ser tocada, tudo isso, todas essas formas e adjetivos o inebriavam, numa mistura de êxtase e medo de rejeição.
A menina mais bonita da escola, a menina perfeita era o seu grande sonho de consumo, embora essa figura inexplicavelmente não existisse, era como se fosse uma projeção do seu inconsciente, uma miragem que formava o único elo dele com a escola. Uma miragem construída a partir de todas as meninas imperfeitas que estudavam ali.
Mesmo não sabendo tocar nada de violão, Dudu fingia arrasar nas cordas e escrevia “lindas” canções para a amada. Obviamente era a escola a maior punida com seus delírios. Era uma tortura ouvi-lo cantar. Tinha dias que Joaninha passava por ele e resmungava.
- Tá cantando pra quem piá? Vai cantar mal lá em casa viu!
Mas as reclamações de Joaninha entravam por um ouvido e saíam pelo outro. O amor é cego já dizia alguém e no menino esse sentimento era potencializado. Exagerado, assim podia-se dizer. Diziam e ele não ligava.
Ele via e ouvia sua amada desfilar pelo pátio, pelos corredores, ao som de Garota de Ipanema ou Mina do Condomínio (essa última era mais conhecida entre os jovens). Seus olhos brilhavam, sua boca parecia não querer fechar nunca mais.
- Oi! Estou linda hoje não estou? Depois a gente se fala tá bom? Quando eu tiver um tempinho. Tchau!
Ele não tinha tempo hábil para responder. Aquilo não era um diálogo. Era um monólogo cuja única intervenção do menino era um ruído sem nexo, quase um gemido de timidez e medo. Não importava se a menina lhe dirigia uma, duas ou nenhuma palavra. Não importava qual fosse a intenção e se realmente a tinha. Acreditava nesse “amor” e isso por enquanto lhe bastava.
Na sala de aula, outras meninas chegavam até ele e demonstravam interesse pelo primeiro beijo, fosse delas, fosse dele, mas ao que parecia não era do interesse de Dudu outra menina a não ser a que ele tinha idealizado na cabeça, tão pouco beijar outra que não fosse aquela boca perfeita, de contornos bem definidos, rosada e com gosto de morango (sim, ele podia sentir até o gosto, sua imaginação não tinha limites).
Ao chegar em casa mais quilômetros de cadernos eram escritos e empilhados e isso gerava grande preocupação em seus pais que comentavam.
- Devemos ir falar com ele?
- Não sei. O que seria apropriado falar nessa hora?
- Sexo? Amor?
Chegar até o filho era uma tarefa muito difícil, ele parecia viver numa bolha, num casulo que talvez só o tempo pudesse transpor.

CONTINUA
Kadu Leayza
Enviado por Kadu Leayza em 15/07/2015
Código do texto: T5311850
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