MELEÃO
Alguns dos tios nunca abandonaram o defeito grave de botar apelidos nos outros, nos pequenos, por pura pirraça. E eles eram soltos da boca sem maiores cerimônias. Há momentos em que esses apelidos, muita vezes, são considerados como uma forma de carinho, mesmo com características insípidas, e com doses duplas de menosprezo. Às vezes uma única criatura possuía vários apelidos até que um sobressaísse sobre os demais, ganhando vida própria. Meleão, Pavão ou Marreco ocorreram muito a contratempo, entre brigas e rusgas com os grandes e com os pequenos. Meleão enfrentava a todos meninos de sua idade ou até mesmo muito mais velhos, em brigas de rolarem no chão quase que o dia inteiro. Bastava um deles soltar a alcunha, e ele brigava não por causa de nomes, mas, sim por uma questão de honra – tinha aprendido com os homens.
Meleão, ainda quente de briga, pensava com razão que briga estraga prazeres, caminhou em direção à lagoa, e passou pelo estaleiro de pescar que eles e seus irmãos construíram durante dias. Debaixo da moita de bambu comum avistava outra moita de bambu gigante – no outro lado da lagoa –, bem próxima da linha ferroviária. Teve logo a idéia de construir uma jangada. Com raiva de todos os meninos, fazia o trabalho sozinho de cortar e transportar aqueles bambus. Mas foi logo descoberto. E todos resolveram a ajudá-lo. Inclusive tio Lolival que, debaixo de boa sombra, argumentava sobre a atitude do sobrinho:
– Meleão, como você é pretensioso de querer construir uma jangada sozinho, tá até parecendo o Robson Cruzoé, sozinho numa ilha. Pensa ser dono do mundo?!
– Quem é Robson Cruzoé – Quis saber Gugulim.
– Robson Cruzoé é uma história de um livro que eu li, há muito, de um tal de Daniel, que conta que um homem naufragou, e todos os seus amigos que estavam na embarcação foram mortos afogados, Robson se salvou e ficou sozinho numa ilha no meio do mar.
– O mar é grande mesmo!
– Ah, é muito grande, separa até continentes.
– É do tamanho de onde? Daqui até no Jaleco?
– Ô tio, será que a gente pode fazer outro caixote que dá pra gente atravessar o mar e chegar em outro continente?
– Não, o mar é grande demais...
Todos riram, mas ali eram poucos os que conheciam o mar de perto. E o tio Lolival retoma a história:
– Então, Robson Cruzoé, explorando a ilha, descobriu em uma colina muitas árvores e teve a idéia de construir um barco. Ele demorou dias e fez um barco de porte médio que o levaria de volta à sua cidade. Mas acontece que sozinho não conseguiu carregar o barco até a praia da ilha. E semanas se passaram, meses, e o barco apodreceu. Ele só conseguiu sair dessa ilha quando já estava bem velhinho... Todos ouviam a história com bastante interesse e, ao mesmo tempo, davam os retoques finais na jangada de bambu gigante. Mas Gugulim, quando viu uma lontra no meio da lagoa, muito se assustou, pensava ser coisa do outro mundo, e subiu o barranco dos bambus e correu com a língua enrolada e tremendo de medo pra dentro de casa. Meleão ficou só observando o seu tio que lhe deu uma lição, desta até hoje se lembra.
Numa tarde dessas Meleão, que navegava e pescava na lagoa, de repente, em um anzol de espera, com isca de lambari, puxou forte. Ele conseguiu fisgar uma traíra de quase dois quilos. Se preza toda lagoa que tem o seu brejo.
Então Meleão e seus irmãos, conversando, tiveram a idéia de arrumar dinheiro, pensando no futuro. Já que não podiam ficar trabalhando para os outros e, muito menos, se divertindo o tempo todo em todos esses recantos da Pessegal.
Seu Esteves não soube, então, o porquê de eles, Mmamaú, Gugulim, Pilão e Meleão, resolverem de repente, quase fora de época, plantar um a roça de milho, feijão e tudo. O arado há muito nos guardados não saía para cortar um pedaço de terra cedido pelo avô. Numa roça perto da fazenda, com o milho já bastante em cumbuca e o feijão já de rama, uma faixa de terra, no limite da cerca, devido a muita pedra foi deixada de lado. Lugar também perto da parada de trem de passageiros, foi por eles perquirido e veio a constatação que os decepcionou um bocado – tinha muita grama e ervas daninhas e bastante pedregulho. Mas permaneceu a alegria de finalmente se tornarem posseiros, mesmo de um lote de terra ordinária.
O terreno em alguns dias fora destoucado, as enxadas usadas para capinar o laranjal e a horta foram utilizadas, a empreitada concluída por todos, que a eles foram também prometida toda a divisão da produção final, idéia capitaneada por Meleão. Plantaram então as sobras das sementes nas leiras recheadas de adubo – tudo doado pelo seu Esteves que se admirava muito com o início daquela pequena lavoura tardã. As pedras dali serviram para cercar a roça dos meninos. Ficou até bonita, saiu dizendo seu Esteves.
De manhã eles estavam lá, razão de fugirem do trabalho pesado da fazenda, e o melhor é que estavam com as mãos calejadas mas fazendo o trabalho em coletividade. Dona Ester preparava as marmitinhas com banana e broas e café em garrafa. Meleão com o seu relógio, no braço sempre de olho quando a fome vinha, mandava um dos irmãos ir até lá na cozinha trazer o almoço – coube este serviço a Mmamaú.
A roça vingou para o espanto do avô. Ele próprio, perplexo e ao mesmo tempo contente, foi o comprador da produção. O milho foi quebrado e o feijão soprado em separado, pouco depois da colheita geral da fazenda. Quase que as vacas invadiram a roça do Meleão, quando foram abertas as tronqueiras e porteiras para o aproveitamento da palhada toda. Meleão apressou seus irmãos na colheita da pequena roça, e somente ele fora elogiado.
No momento do pagamento da colheita que foi postergado por muitas vezes. Naquela noite, os irmãos de Meleão estavam na parada para despedir dele, que iria para a cidade grande estudar, e então pediram para ele fazer a divisão dos frutos da roça. Meleão pegou uma porção de notas novinhas de dinheiro, pôs na algibeira e despediu-se deles, dizendo que o dinheiro seria pouco para a compra de material escolar. Eles ficaram sentados no banco e ali permaneceram boquiabertos por alguns instantes. O trem de passageiros apitou e sumiu entre o bambuzal e sua luz ainda ao longe demonstrava o verde da paisagem até as vistas não alcançarem mais.
Subcapítulo VIII. BREJÃO do livro Um Carro de Bois que Transportava Logos, p. 104 a 106.
Autor do romance lírico infanto-juvenil Um Carro de Bois que Transportava Logos e de coletâneas como: Rio das Velhas em Verso e Prosa (Prêmio Projeto Manuelzão/UFMG/Morro da Garça/2006); Letras Mínimas (Ed.Guemanisse/2007); Elos e Anelos – Menção Honrosa (Teresópolis/2008).