A Guardiã do Fogo - Capítulo 2

A Anja

I

Descemos a colina depressa e, por mais que o senhor não conseguisse andar direito, estava quase correndo. Durante o percurso, ele parecia estar procurando alguma coisa nos túmulos. Após alguns momentos ele achou a sepultura que procurava. Era uma lápide média, bem feita, bem lixada, e, embaixo, uma foto da falecida. Ela era bonita, a foto antiga mostrava uma mulher de cabelos bem encaracolados e loiros, com olhos bem vivos.

– Pare, pare aqui. – falou cansado.

– Ok, ok. – ajudei-o a sentar-se encostado na pedra fria.

– Obrigado.

– Hã... O senhor está bem?

– Estou sim, bom, na verdade acho que preciso ir a um hospital, mas não é nada tão sério assim.

Aproveitei para ler o nome da pessoa, “Laura Andrade (1946-2005)”.

– Quem é ela? – perguntei curiosa

– A Laura? Ela... Era a minha esposa. – sua voz saiu rouca.

– Sinto muito.

– Tudo bem. Sabe... Eu a amava muito.

– Se não se importar com a pergunta, o que você estava fazendo na colina?

– Ah, moça. Se pudesse contar... Eu realmente contaria, porque afinal das contas, a senhorita acabou de salvar a minha vida.

– Mas por que não pode contar? Sei que tem algo acontecendo por aqui. Sinto isso. Tudo está muito estranho!

– Sabe, a minha querida Laura... Ela morreu porque contei tudo para ela, por isso prometi que não contaria para mais ninguém. – ele balançou a cabeça, triste.

– Mas...

– Não!

– Mas... Eu só...

– Eu preciso ir a um hospital!

– É verdade, não tenho como chamar uma ambulância daqui, não trouxe meu celular, mas, eu vou correndo até em casa e ligo de lá. E logo estarei de volta.

– Obrigado.

– Eu já volto, prometo! Não saia daqui!

– Cuidado, moça. – ele falou alarmado.

Acenei com a cabeça e saí correndo, ele havia parado no meio do cemitério. Corri, até que percebi que estava na frente do mausoléu da minha família. Ouvi soluços e choro vindo de dentro dele. Me aproximei e abri a porta. Estava escuro, a luz do Sol não conseguia entrar pelas janelas, parecia que algo a bloqueava. Havia uma espécie de fumaça, uma neblina, névoa, não sei ao certo. Havia também um cheiro de podridão no ar, era horrível, e começou a me dar enjoos. Não conseguia distinguir nada naquela escuridão, parecia que estava vazio. Senti que algo me puxava para dentro. Algo me chamava, tentei, mas não consegui resistir.

Fui entrando, hipnotizada, não consegui controlar o meu corpo, andei até o meio da sala e parei. Senti algo tentando se apossar do meu corpo, minha alma lutava violentamente contra esse invasor. Senti um mal-estar, quase vomitei. Senti minha alma fraquejando, um medo horrível invadiu cada parte do meu ser, o ódio me consumiu por inteira, toda minha esperança sumiu, e a felicidade evaporou-se. Mas ouvi algo atrás de mim, algo me chamando, tentei me virar para ver o que era, mas não consegui, lutei loucamente, apenas consegui virar o rosto e ouvi uma voz masculina calma e doce:

– Sofia... Sofia...

Virei mais, e vi um brilho muito forte. A sala toda se iluminou, e me senti abraçada por aquela luz, a minha esperança, a minha felicidade foram voltando, senti como se retornassem, como se fizessem parte de mim novamente. O ódio, a raiva e o medo foram todos sumindo. Minha cabeça doía, senti algo saindo de dentro de mim, formando uma fumaça roxa ao meu lado e, de repente, senti como se as luzes estivessem brigando entre si, mas não conseguia ver ou ouvir nada. Eu simplesmente desmaiei.

II

Quando acordei, estava de volta em casa. Me encontrei deitada no quintal, na grama. E minha mãe estava perto de mim, reclamando.

– Você sai de casa de pijama, não diz aonde vai, ou quando volta, ou qualquer coisa. E depois de algum tempo te encontro dormindo aqui na frente, na grama, no meio da tarde. Quer me explicar o que está havendo?

– Está tudo bem, mãe. – sentei.

– Não, não está tudo bem! O que está acontecendo, Sofia? Você sabe que pode me falar.

– Está tudo bem, mãe. É sério.

– Está mesmo? Você está estranha esses dias. Seu pai chegará de viagem logo e nós podemos te ajudar com o que estiver acontecendo, filha.

– Estou bem, mãe. Eu juro! – levantei e entrei em casa.

Tomei um banho para refrescar a mente. Enquanto a água escorria pelo meu rosto, fui pensando no que havia ocorrido. O que aconteceu comigo no mausoléu? O que eram aquelas luzes? E aquelas pessoas que vi no topo da colina?

Só havia uma pessoa que me poderia ajudar a entender tudo isso.

– Droga! O velhinho ficou lá me esperando voltar! Como pude esquecer dele?

Saí do banho apressada, vesti uma das minhas calças jeans e uma camiseta vermelha, enquanto colocava o meu tênis, gritei:

– MÃE, ESTOU SAINDO! NÃO SEI QUANDO VOLTO, SÓ VOU DAR UMA VOLTA! TCHAU!

Terminei de calçar meu tênis, guardei meu celular no bolso, e coloquei em volta do meu pescoço um colar com um pingente de dragão; presente da minha avó. Me sentia bem quando usava ele.

Enquanto passava correndo pela sala, avistei minha mãe entrando pela porta da cozinha, com uma expressão preocupada estampada em seu rosto.

– Para onde você vai?

– Vou sair, tchau!

– Sofia! Só me diga aonde vai!

Ignorei-a, e saí aos tropeços de casa. Corri rua acima e alguns minutos depois já me encontrava na frente do cemitério. Ainda estava trancado, e como da outra vez, pulei. Nunca me dei conta da agilidade que possuía, não achei que algum dia fosse conseguir pular aquele portão. Só hoje, já era a segunda vez que o fazia. Corri até o túmulo da Laura. Estava vazio. Então, corri até o topo da colina.

Quando cheguei lá, dei uma olhada em volta. Não havia ninguém, nem nada. Nada de velas, galinhas, sangue, ou desenhos macabros. Parei cinco segundos para respirar. Fiquei atormentada. O que aconteceu com o velhinho?

Não sabia mais o que fazer.

Foi então que tive uma ideia absurda.

Desci correndo a colina, desviando de túmulos, lápides e árvores. Parei na frente do mausoléu da minha família, respirei fundo, coloquei minha mão na maçaneta, e tentei girá-la. A porta estava trancada.

– Droga! Droga! Droga!

Forcei a porta. Nada. Dei alguns passos para trás, tomei certa distância, corri e me joguei contra a porta. Isso produziu um estampido. Girei a maçaneta de novo e entrei. Estava um pouco escuro. Mas na minha frente, virada para a janela, havia um ser.

III

Tinha grandes e nuas asas negras, que deveriam ter aproximadamente quatro metros de envergaduras. Elas não estavam completamente abertas. Caindo no meio das asas, lisos e compridos cabelos negros, que bebiam a luz que o iluminavam. Eles terminavam quase na cintura dele... Ou dela. Seu vestido terminava um pouco abaixo dos joelhos, e também possuía duas aberturas para as asas.

Eu congelei e fiquei fitando aquele indivíduo que se encontrava a alguns metros de mim. Fui sentindo minha respiração ficar cada vez mais rápida e curta, meu coração batia apressadamente.

Ao perceber que eu estava lá, aquela... coisa se virou, ficando de frente para mim, me encarando nos olhos. Era uma mulher muito jovem e linda, tinha os olhos de um azul como a cor do céu em um belo dia de verão. Seus lábios, finos, pouco carnudos, mas de um rosa-claro sereno. Sorria de um jeito que a deixava com um ar inocente e, ao mesmo tempo, atraente. Sua pele era macia como uma pluma e branca como a neve. Um colar de cristal vermelho na forma de uma rosa adornava seu delicado pescoço. Usava um vestido branco, de linho, igual aos dos antigos faraós; caía-lhe perfeitamente, como se tivesse sido feito sob medida. Nos pés, usava uma sandália de couro, que possuía tiras que envolviam seus tornozelos, formando laços.

E aquele magnífico ser estava ali, na minha frente sorrindo para mim.

– Olá, garotinha. – sua voz era envolvente.

Continuei em silêncio, chocada com o que eu estava presenciando.

– O gato comeu a sua língua? Não te ensinaram que é educado responder quando falam com você?

– Hã... Oi? – respondi incerta.

– Bem melhor, não concorda? – seus lábios se abriram um pouco num sorriso discreto.

– O-o que você é?

– Isso não é importante. – ela fez um movimento com a mão. – O que uma criança como você veio fazer aqui no cemitério?

– Eu não... Não sei. Só estava dando uma volta, já tenho que ir embora.

– Não, não. Você não precisa ir embora ainda. Que tal nos conhecermos melhor?

– Na verdade, a minha mãe já está me esperando, então... – virei devagar para ir embora.

Ela levou um segundo para passar por mim e parar entre a porta e eu.

– Por favor, me deixe ir embora, eu não fiz nada para você; não falarei nada sobre esse encontro. Por favor! – implorei.

– Fique. Você não está curiosa para saber o que sou?

– Na verdade, não. Por favor, minha mãe precisa de mim.

– Não se preocupe com isso, ela não vai se importar de você estar com uma amiga.

Dei um passo para trás por precaução.

– Qual é o seu nome, garotinha?

– So-Sofia.

– Olá, Sofia. Meu nome é Laurien. – ela passou por mim e andou até o fundo do mausoléu. Ficou passando a mão pelas suas lindas asas.

– Posso ir?

– É claro que não. Sabe... Há muitos anos procuro por alguém como você.

– Como eu? – questionei confusa.

– Sim. Sabe por que estou procurando alguém como você?

– Não...

– Porque quando olho ao seu redor consigo ver energia pulsando. – ela se virou e olhou no fundo dos meus olhos. – Eu sinto uma energia muito forte vinda da sua alma. E as fortes são as mais deliciosas.

Como assim da minha alma? Por causa do olhar ameaçador, dei um passo para trás, em direção à porta, mas Laurien foi mais rápida. A escuridão fria invadiu aquele mausoléu novamente.

– NÃO! Fique longe de mim! Me deixe em paz!

Ela começou a rir friamente, ouvi seus passos ecoando cada vez mais alto conforme ela se aproximava de mim. A escuridão era total, eu não conseguia enxergar absolutamente nada. O medo foi se apoderando de mim, lágrimas começaram a brotar dos meus olhos. Estava completamente apavorada!

– Não se preocupe, serei rápida, você não sentirá nada. – e deu uma gargalhada cruel.

– NUNCA! – foi aí que me lembrei do acontecimento na colina, e uma frase do velhinho veio na minha mente: “Reze moça... Reze”.

Fechei meus olhos, apertei meu medalhão entre as mãos, e comecei a rezar.

E continuei rezando.

Senti que ela estava extremamente perto de mim. Eu ainda estava chorando. Mas, conforme rezava, meu medo evaporava. No momento, eu não sabia o que estava fazendo exatamente.

De repente, Laurien soltou um grito apavorado.

Comecei a sentir alegria, e esperança. Abri meus olhos. Laurien cobria o rosto, da luz, com as mãos. Ela estava se protegendo da luz que emanava do meu medalhão!

– Você me paga! – e, em um rápido movimento, ela arranhou minha bochecha ao fechar as asas, desaparecendo.

Coloquei minha mão em cima do corte, um filete de sangue começou a escorrer entre meus dedos. O corte não foi tão profundo. De repente enfraqueci, vi a luz do medalhão se extinguir, e só a luz do Sol que entrava pela janela. Tudo começou a girar, minha visão foi escurecendo, e caí no chão, produzindo um baque; desmaiei.

Acordei horas depois. Estava na mesma posição de quando perdi os sentidos. Sentei e olhei para a porta. Ainda estava fechada. Passei os dedos pelo corte. O sangue estava seco, tinha escorrido pelo meu rosto.

Relembrei o que tinha acontecido. Tirei meu medalhão do pescoço. Era bonito, pertencera à minha avó; ela me dera quando eu ainda era pequena.

Era um dragão dourado, em seu corpo estava escrita uma frase em um dialeto desconhecido, minha avó nunca conseguiu decifrar. O cordão era de couro, e não possuía fecho, era uma peça única. Era grande o suficiente, para passar pelo meu pescoço, e vinha até o peito. Fiquei observando-o por alguns momentos. Depois levantei com dificuldade e, cambaleando, andei até uma tampa no canto esquerdo. Parei na sua frente, coloquei minha mão direita sobre o nome. Lia-se Lílian Mendes.

– Vovó...

De repente pareceu que eu havia voltado no tempo.

Era o meu aniversário de doze anos, já era noite, eu estava na cozinha comendo um pedaço do meu bolo de aniversário, floresta negra, meu preferido. E minha avó apareceu com uma caixinha de presente vermelha, com um laço rosa.

– Olá, querida. Parabéns!

– Obrigada, vovó. – sorri.

– Este é o meu presente. – ela me entregou a caixinha. De dentro tirei o medalhão de dragão.

– Obrigada, vovó! É lindo, mas você não vai mais usar ele?

– Não, querida. Ele é seu agora. Sei que um dia será muito útil para você, como foi para mim.

Fiquei encarando o presente e ouvi minha avó se levantando da cadeira. Tudo começou a embaçar e eu voltei para o mausoléu. Alguns dias depois desse aniversário, ela morreu de ataque cardíaco. Mas...

Olhei ao redor e senti uma fraqueza. Andei em direção à porta, girei a maçaneta. Trancada.

– Joça! – empurrei, mas parecia estar emperrada. Me afastei um pouco, corri e me joguei contra ela.

A porta nem se mexeu.

– Ai! – senti dor por estar fraca demais.

Olhei para as janelas, eram altas e pequenas demais. Eu não conseguiria passar. Comecei a gritar:

– SOCORRO! SOCORRO! Alguém me ajude, estou presa! SOCORRO!

Lembrei do meu celular. Estava sem área.

– Droga! É sempre comigo que acontece essas coisas.

Atravessei a sala, sentei encostada na parede, embaixo das janelas. De frente para a porta.

Lívia Fiedler
Enviado por Lívia Fiedler em 07/03/2015
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